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Archive for julho \29\-03:00 2011

O título destas páginas, tiradas da obra de Garrigou-Lagrange, é de nossa autoria. Julgamos que, embora escritas em 1928, permanecem impressionantes por sua atualidade e vigor.
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A mortificação, assim como a humildade, estabelecidas de um modo permanente na vida religiosa pela prática dos três conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência, são coisas tão contrárias ao espírito mundano que este se esforçará sempre por negar-lhes a necessidade. O naturalismo prático sempre renascente sob uma outra  forma — que se chame “americanismo” quer “modernismo” — deprecia sempre a mortificação  e com ela os votos religiosos nos quais pretende ver não um nascimento para uma vida nova mas um entrave ao bem que cada um deve fazer em torno de si.
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Por que, dizem, falar tanto em mortificação se o Cristianismo é uma doutrina de vida? Ou tanto de renúncia se o Cristianismo deve assimilar toda atividade humana em lugar de destruí-las? Ou falar tanto de obediência se o Evangelho é uma doutrina de libertação? Tais virtudes passivas não têm maior importância senão para espíritos negativos, incapazes de empreender qualquer coisa e que não têm senão a força da inércia.
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Por que, acrescentam, depreciar nossa atividade natural? Nossa natureza não é boa? Não vem de Deus? Não se inclina a amar seu Autor mais do que a si mesma e acima de tudo? Nossas paixões ou emoções, isto é, os diversos movimentos de nossa sensibilidade, desejo ou aversão, alegria ou tristeza, etc., não são, do ponto de vista moral, nem boas nem más, só se tornam boas ou más conforme a intenção de nossa vontade que consente nelas, desperta-as, modera-as ou não as modera. E então não há que mortifica-las, cumpre apenas regula-las, são forças a utilizar, não a destruir. Não é este o ensinamento de Santo Tomás, tão diferente, acrescentam, do de tantos outros autores espirituais, notadamente do autor da “Imitação” 1.III,c.54, onde ele trata “dos diversos movimentos da natureza e da graça” em termos tais que fazem pensar naqueles que usarão mais tarde os jansenistas?
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Por que, continua o naturalismo prático a dizer, combater tanto o julgamento próprio, a vontade própria? É lançar-nos no escrúpulo e pôr-nos em estado de servidão que destrói toda espontaneidade.
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Porque condenar a vida do mundo, uma vez que é no mundo que a Providência nos colocou não para o combater mas para melhora-lo? O valor da vida religiosa se mede por sua influência social e para exercer esta influência ela não deve ser coibida por estas preocupações excessivas de renúncia, mortificação, humildade, obediência. Ela deve, ao contrário, deixar se desenvolver ao máximo o espírito de iniciativa, todas as aspirações naturais que nos permitirão compreender as almas do nosso tempo e entrar em contato com este mundo que nós não devemos desprezar mas tornar melhor.
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Netas objeções formuladas no final do século passado pelo chamado “americanismo”, retomadas pelo “modernismo”, a verdade está habilmente misturada com a falsificação. Chegam até a invocar a autoridade de Santo Tomás.
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Pelo fato de que as emoções ou movimentos da sensibilidade, que Santo Tomás chama paixões, são forças a utilizar e não destruir; pelo fato de que cumpre regula-las e não mata-las, não se deve esquecer que estas paixões, quando não estão muito bem disciplinadas pela temperança, pelo desapego, pela castidade, pela força, pela paciência, pela humildade, pela doçura, pela justiça, pela obediência e pelas outra virtudes, animadas todas pela caridade, tornam-se as raízes de uma multidão de defeitos ou vícios. As virtudes, quer teologais, quer cardinais, e também as que se vinculam a estas, devem quase sempre, evitar dois vícios contrários; ora, esses vícios e suas conseqüências que subsistem em nós devem ser não somente velados, regulados ou moderados mas extirpados. Para se ver qual é, segundo Santo Tomás, o papel da mortificação inspirada pela virtude da penitência em espírito de reparação, bastaria enumerar os vícios dos quais ele trata em sua Suma Teológica, IIa., IIae.: os sete pecados capitais que nascem das três concuspicências e que têm cada um seis ou sete filhos muitas vezes piores que os pais que os engendram. Esta terrível progenitura dos pecados capitais, tal como descrita por Santo Gregório Magno, conta mais de 40 vícios que, felizmente, ao menos não são conexos como ocorre com as virtudes, porque o reino do mal não poderia ser uno como o reino do bem uma vez que ele se distancia da unidade. A matéria para mortificação está esparsa de um lado e de outro, mas hélas, ela não falta digam o que disserem os amantes do “caminho curto e fácil” para ir a Deus.
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O naturalismo prático também repete, muitas vezes, este princípio de Santo Tomás: “A graça não destrói a natureza mas a aperfeiçoa”. Também dizem que os movimento da natureza não são tão desregrados como afirma o autor da “Imitação” e que é preciso o pleno desenvolvimento da natureza sob a graça. Como falta aí o verdadeiro espírito de fé, falseia-se o princípio de Santo Tomás que se invoca. Ele, Santo Tomás, fala de “natureza” no sentido metafísico da palavra e não no seu sentido ascético, isto é, fala da natureza humana como tal, aquela que corresponde à definição abstrata do que é um homem, portanto fala da natureza no que ela tem de essencial e boa, obra de Deus que deve ser, é claro, aperfeiçoada pela graça e não destruída por ela. Ele não trata aqui da natureza humana enquanto decaída e ferida, como ela está, de fato, concretamente, depois do pecado de Adão, deformada por nosso egoísmo às vezes inconsciente que se mistura a muitos dos nossos atos. Ora, é dessa natureza ferida, cujos ferimentos custam a cicatrizar, que falam as obras ascéticas e místicas como a “Imitação”  e elas não fazem outra coisa senão redizer o que também ensina Santo Tomás a respeito das seqüelas do pecado original e de nossos pecados pessoais (Ia., IIa., q. 85-86).
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Estas conseqüências do pecado, enquanto representam uma desordem, devem ser destruídas, evidentemente. E esta destruição é obra da graça que não somente nos eleva mas também nos cura, “gratia sanans et elevans”.
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Um excelente mestre de noviços dizia a um jovem aturdido que repetia o princípio “a graça não destrói a natureza” que “Não somente não a destrói mas a reconstitui, restaura-a, destruindo os germes de morte que nela estão e, em seguida, ela a aperfeiçoa tanto mais quanto aquela salutar destruição foi radical, como o mostra a vida dos santos”. É neles e não alhures que é preciso ver o que deve ser o “pleno desenvolvimento da natureza sob a graça” para não falsear tal desenvolvimento completamente, destruindo natureza e graça sob o pretexto de não destruir nada.
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O equívoco mais ou menos desejado e mantido pela morna mediocridade a respeito das diversas acepções da palavra “natureza” não tarda a manifestar suas desastrosas conseqüências. A árvore se julga pelos frutos. Querendo muito agradar o mundo, estes apóstolos de novo tipo, em lugar de converter, saem convertidos por ele. Vimo-los, primeiro, ignorar as conseqüências do pecado original. A ouvi-los, o homem nasce bom, como diziam, os pelagianos e depois dele Jean Jacques Rousseau. Vimo-los, depois, esquecer a gravidade infinita do pecado mortal, como ofensa feita a Deus. Eles não mais o consideraram senão pelo lado humano e exterior, pelo mal que ele nos causa visivelmente na vida presente. Daí em particular desdenharam a gravidade dos pecados do espírito: incredulidade, presunção, orgulho e as desordens que são suas conseqüências. Em terceiro lugar e pela mesma razão desdenharam a elevação infinita de nosso fim sobrenatural; ao invés de falar da visão beatífica e da vida da eternidade puseram-se a falar de um vago ideal moral, tingido de religião, onde desapareceu a oposição radical entre o céu e o inferno.
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Enfim, em quarto lugar, os escritores principais, tornou manifesto o seu princípio: o naturalismo prático ou, o que é o mesmo, a negação prática do sobrenatural, princípio que às vezes se confessa sob a seguinte forma: “A mortificação não é da essência do Cristianismo”.
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É claro que estas invenções mais ou menos habilmente expostas não têm nenhuma relação com a vida e a doutrina de Nosso Senhor e dos Santos. O Salvador não desceu à terra para fazer uma obra humana de filantropia mas uma obra divina de caridade. Ele a realizou falando aos homens mais dos seus deveres que de seus direitos, dizendo-lhes da necessidade de morrer completamente para o pecado para receber em abundância uma vida e quis lhes testemunhar seu amor até morrer sobre a cruz para resgatá-los. Os santos seguiram-nO, estão todos marcados com a efígie de Jesus crucificado, todos amaram a mortificação e a cruz, tanto os santos da Igreja primitiva como os primeiros mártires como os da Idade Média, como um São Bernardo, um São Domingos, um São Francisco de Assis ou aqueles mais recentes como um São Bento José Labre ou o Santo Cura D’Ars.
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É que Nosso Senhor havia dito “dirigindo-se a todos”; “Se alguém quer vir após mim que renuncie a si mesmo, tome cada dia sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar sua vida, perde-la-á e aquele que perder sua vida por minha causa, salva-la-á. De que serve ao homem ganhar o universo se se perde a si mesmo?” (Luc. IX, 23).
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(extr. de L’Amour de Dieu e la Croix de Jesus, vol. I, pág. 286, Ed. du Cerf. Tradução: PERMANÊNCIA)
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Fonte: FSSPX 

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Por Santo Afonso Maria de Ligório

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Ego diligentes me diligo; et qui mane vigilant ad me, invenient me — «Eu amo os que me amam, e os que vigiam desde a manhã por me buscarem, me acharão» (Prov. 8, 17)
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Sumário. Se uma mãe não pode deixar de amar seus filhos, quanto mais não nos amará a Santíssima Virgem, que no Calvário, juntamente com Jesus Cristo, nos gerou para a vida da graça, entre as mais acerbas dores? Ah! se fosse reunido em um só o amor que todas as mães têm a seus filhos, não igualaria o amor que Maria tem a uma só alma. É justo portanto que ao amor da divina Mãe corresponda o nosso. Sim, minha santa Mãe, depois de Deus, amo-vos de todo o coração mais que a mim mesmo, e pronto estou a fazer tudo por vosso amor.
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I. Afim de compreendermos de algum modo o muito que nos ama nossa boa Mãe, Maria, consideremos as principais razões deste amor. — A primeira razão é o grande amor que ela tem a Deus. O amor para com Deus e para com o próximo, como diz São João, se contém no mesmo preceito, de sorte que, quanto cresce um, tanto o outro se aumenta. Hoc mandatum habemus a Deo: ut qui diligit Deum, diligat et fratrem suum (1 Jo 4, 21) — «Nós temos de Deus este mandamento, que o que ama a Deus, ame também a seu irmão». Pelo que, assim como entre todos os espíritos bem-aventurados não há quem ame a Deus mais do que Maria, assim tampouco temos, nem podemos ter, quem, depois de Deus, nos ame mais do que esta nossa Mãe amorosíssima.
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Além disso Maria nos ama, porque, afim de nos gerar à vida da graça, sofreu a pena de ela mesma oferecer à morte o seu querido Jesus, consentindo em o ver morrer diante dos seus olhos, à força de tormentos. Como frutos, portanto, da oferta dolorosa da Virgem, somos-lhe excessivamente caros, porque lhe custamos tantas angústias e dores. — E mais ainda, porque o próprio Jesus Cristo, antes de expirar, nos entregou a ela por filhos, na pessoa de São João, dizendo-lhe como último adeus: Mulher, eis aí teu filho (Jo 19, 26).
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Disto nasce uma terceira e mais poderosa razão pela qual somos tão amados de Maria: vem a ser que todos nós somos o preço da morte de Jesus Cristo. Se uma mãe visse um servo remido por um seu filho à custa de trinta anos de prisão e de trabalhos, quanto estimaria o servo por esta só consideração! Quanto mais deverá então a divina Mãe estimar nossas almas, vendo que o Verbo Eterno não desceu do céu à terra e se fez seu Filho, senão para as salvar à custa de todo o seu sangue! Eu vim salvar o que estava perdido (Lc 19, 10) — «Salvum facere quod perierat».
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II. Numquid oblivisci potest mulier infantem suum (Is 49, 15) — «Acaso pode uma mulher esquecer-se de seu filhinho». Se uma mãe, assim nos diz a Virgem, não pode deixar de amar o fruto de suas entranhas, quanto menos poderei eu esquecer-me de vós, meus filhos diletíssimos, eu, que tantas razões especiais tenho de vos amar? Ah! se o amor que todas as mães têm aos seus filhos, todos os esposos a suas esposas, e todos os anjos e santos a seus devotos, se unisse em um só amor, não chegaria a igualar o amor que Maria tem a uma só alma. É pois de justiça que ao amor de Maria respondamos com o nosso.

Sim, minha Mãe amabilíssima, é mais que justo que eu vos ame! Não quero descansar, enquanto não estiver certo de ter alcançado o amor, mas um amor constante e terno para convosco, ó minha Mãe, que com tanta ternura me tendes amado, ainda quando eu vos era tão ingrato. Que seria agora de mim, se não me tivésseis amado e alcançado tantas misericórdias?

Eu vos amo, minha Mãe, e quisera ter um coração capaz de vos amar por todos aqueles infelizes que não vos amam. Quisera ter uma língua que pudesse louvar-vos por mil, afim de fazer conhecer a todos a vossa grandeza, a vossa santidade, a vossa misericórdia e o amor com que amais aqueles que vos amam. Se eu tivesse riquezas, todas as dispenderia em honra vossa. Se tivesse súditos, quereria fazê-los todos amantes vossos. Quereria finalmente, por vosso amor e para glória vossa, dispender até a vida, se necessário fosse.

Em suma, minha Mãe, desejo primeiro aqui na terra, e em seguida no céu, ser, depois de Deus, quem mais vos ame. Se este desejo é por demais audaz, é porque vossa amabilidade, e o amor especial que me haveis demonstrado, m’o inspiram. Aceitai-o, pois, ó Senhora, e em prova de que o aceitastes, obtende-me de Deus o amor que vos peço, visto que tanto agrada a Deus que se vos tem. (*I 23.)

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LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Segundo: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 193-195.

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Fonte: Mulher Católica

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Neotomismo, uma ideologia?

Lutero diante de Tommaso de Vio, o Cardeal Caetano

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Sidney Silveira
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Envia-me um colega o texto do professor Olavo de Carvalho em que se afirma ipsis verbis o seguinte: “O tomismo é filosofia em sentido pleno; o neotomismo é, ao contrário, um movimento cultural e político — ideológico, em suma — voltado à difusão dessa filosofia, tomada como solução pronta de todos os problemas e, portanto, esvaziada de boa parte de sua substância filosófica”. No mesmo texto, dá-se claramente a entender que o único tomismo verdadeiro é (ou foi) o de Tomás de Aquino; os demais seriam uma espécie de degenerescência com fins meramente ideológicos, no sentido de algo descasado da realidade e voltado a uma práxis coletivista sem qualquer compromisso com a investigação filosófica. [1]
Decididamente, nenhuma dessas assertivas do conhecido professor é verdadeira: em primeiro lugar, o tomismo histórico existiu desde a morte do Doutor Comum da Igreja, nascido e crescido da pena de filósofos e teólogos simplesmente geniais (e não de “ideólogos”), comparados aos quais um Kant, um Heidegger, um Zubiri, um Descartes, umHusserl, etc. são tímidas formigas. O tomismo, como veremos, foi uma corrente filosófica genuína e profunda, e mais: ele foi importantíssimo para o Ocidente, e isto graças ao esforço e ao engenho de homens extremamente talentosos que:
a) primeiramente, procuraram compreender o incomensurável tesouro encerrado nos escritos do mestre medieval;
b) depois, difundiram-no como puderam, enfrentando as dificuldades intrínsecas à interpretação dos textos de Tomás;
c) e, por fim, utilizaram-no em defesa da fé e contra as heresias que, ao fim e ao cabo, afastam o homem do seu fim último: Deus. Nesta primeira fase, Godofredo de Fontaines, Egídio Romano e Giovanni Capreolo estão entre os nomes de maior destaque. O leitor contemporâneo acostumado a filosofias sem a menor preocupação de escapar à equivocidade, e portanto alheias ao denodado trabalho de formular os conceitos com clareza, precisão e sistematicidade, ao deparar-se com textos de um dos três autores acima mencionados é capaz de assistir ao suicídio coletivo de seus neurônios, totalmente desafeitos das abstrações metafísicas com maior autonomia de vôo.
Outro ponto: sem a defesa da obra (e da pessoa) do mestre medieval feita por estes e por outros discípulos, Santo Tomás de Aquino dificilmente teria sido resgatado do ostracismo em que os inimigos quiseram jogá-lo, a ponto de ficar proscrito por cerca de 50 anos, até ser reabilitado com a sua canonização e posterior acolhimento da doutrina por parte da Igreja, que fez grande justiça ao transformá-lo no Doutor dos doutores, ou seja, no Doctor Communis Ecclesiæ. Ora, como o próprio Aquinate ensinou em vários de seus escritos, Deus age por causas instrumentais segundas — e serviu-se desses homens excepcionais para que a philosophia perennis não submergisse à tsunami humanista anticivilizacional que culminará, séculos depois da morte de Santo Tomás, no liberalismo clássico e nas várias revoluções vomitadas de suas negras entranhas.
Para ter-se uma vaga idéia da importância desta pujante corrente filosófico-teológico-magisterial que começa imediatamente após a morte de Tomás — e caminha de forma não linear, porém contínua, no decorrer dos séculos —, ressalte-se que, sem o tomismo, não teria havido historicamente o Concílio de Trento, ou seja, a Contra Reforma — reação firme e magistral da Cristandade ao humanismo que, conforme diz o Pe. Álvaro Calderón na obra-prima A Candeia Debaixo do Alqueire, representava a violenta reação da carne às duras exigências do espírito (cristão); uma atitude de retrocesso a apostasia, de orgulho, de ódio à autoridade espiritual. Nesta fase o grande nome é, sem dúvida alguma, o notável Tommaso de Vio, o Cardeal Caetano, exegeta, filósofo, teólogo, professor e, além de tudo, personalidade marcante de uma época capital da história eclesiástica. Aqui, assumindo-se ou não a crítica de Cornelio Fabroao suposto caráter “aristotelizante” da obra de Caetano, o fato é que se trata de um gigante — do teólogo de quem Lutero, obstinado em suas incontáveis heresias, literalmente fugiu apelando ao Papa, para evitar o confronto direto. Algo similar ao que, séculos antes, havia ocorrido com o lógico Abelardo, diante de São Bernardo.
Apenas para citar um tema e não estender por demais este breve texto, as obras de Caetano e de Francisco Ferrariense (outro profundo filósofo tomista da Segunda Escolástica) acerca do princípio de individuação — e contra os erros implicados no conceito formalista dehæcceitas, de Duns Scot — são de grandíssimo interesse filosófico.Somente quem não as leu poderia insinuar tratar-se de “ideologias”, o que é uma espécie de desonra à nobreza destes homens e ao seu grande talento especulativo. A prova disto nós a daremos no decorrer dos próximos anos, editando alguns textos desses filósofos simplesmente estupendos, inéditos em línguas vernáculas. Um trabalho civilizatório e de defesa da fé, seja no âmbito eclesiástico (hoje infelizmente assaz envenenado por teorias desde sempre condenadas pelo Magistério), seja fora dele.
Pois bem. Naquilo que é, para alguns historiadores, a chamada “Terceira Escolástica”, surge João Poinsot, conhecido como João de Santo Tomás, a quem cabe perfeitamente o epíteto de gênio. O seu Cursus Theologicus, monumental tanto em tamanho como em profundidade, é uma das obras que adquirimos recentemente na íntegra, e está “na fila” para ser editada em diferentes volumes, quando a Deus aprouver (e se providencialmente conseguirmos recursos financeiros para tanto). A beleza, a precisão, a concisão, a clareza expositiva e a harmonia dos conceitos filosóficos de João Poinsot nos autorizam a elencá-lo entre os notáveis da história da filosofia, infelizmente pouco conhecido. O seu Cursos Philosophicus é outra obra que — quem sabe antes de morrer — apraza a Deus editarmos (digo “antes de morrer” porque este é um trabalho para anos a fio).
Pois bem, tendo à frente estes e outros grandes filósofos, o tomismo vai sendo estudado nas academias e seminários católicos ao longo de vários séculos, e é também acolhido de forma cada vez mais solene pelo Magistério (o que, longe de torná-lo vazio, estático ou desinteressante, lhe dá uma pujança tremenda). Chegamos então ao século XIX e ao Papa Leão XIII, que na famosa Encíclica Aeterni Patris, diante dos perigos do modernismo teológico que, já então, se imiscuía nos meios católicos, ordena em palavras simples mais ou menos o seguinte: as filosofias cujos princípios são contrários ou derrogatórios da fé devem ser preteridas, em favor do ensino de Sto. Tomás de Aquino em todos os seminários católicos. Naquela época, o ditado Roma locuta, causa finita era quase um decreto pétreo, razão pela qual houve um salutar rejuvenescimento do tomismo.
A partir deste documento papal nasce e se desenvolve o que hoje se convenciona chamar de neotomismo, corrente cuja força será quase totalmente podada quando o modernismo for consagrado no Concílio Vaticano II, e os seminários abrirem, a partir do final dos anos 60, os gonzos ínferos de um sem-número pseudofilosofias e da nouvelle théologiedenunciada pelo tomista Garrigou-Lagrange (a meu ver o maior teólogo do século XX). Infiltradas no seio da Igreja, essas filosofias criarão algo que o Pe. Álvaro Calderón chama, com humor ácido, de consenso “plurânime” dos teólogos, ou seja: uma verdadeira babel doutrinária cujos reflexos são sentidos hoje por qualquer pessoa de bom senso que se veja na contingência de assistir à Missa reformada de Paulo VI, ler os documentos do Magistério conciliar, confessar-se com padres modernistas — muitos dos quais “aboliram” o pecado e a penitência de seu ofício —, ver a arte produzida pela nova estética católica, etc.
Em suma, o neotomismo produziu alguns dos maiores filósofos do final do século XIX e do século XX, os quais estão muitíssimo além dos manuais a que chamo jocosamente de “coleção primeiros e últimos passos”, engendrados por historiadores da filosofia em geral anticristãos, para quem o mundo começa no século XVI. Pierre Mandonnet, G. M. Manser, o já citado Garrigou-Lagrange, Gredt (que escreveu toda a sua densa obra em latim), Santiago Ramírez (este último, autor do fabuloso De analogia secundum doctrinam aristotélico-thomisticam, outro sonho nosso de edição) e Cornelio Fabro são apenas alguns dos exemplos de autores extraordinários, sobretudo se comparados à maior parte do que se produziu no século XX: de Husserl a Sartre; de Heidegger a Ortega y Gasset. Abro aqui um parêntese para dizer que não incluo Jacques Maritain nesta lista, mas isto será tema para outro texto.
Por fim, não sei se o nobre professor Olavo de Carvalho ainda mantém a opinião do texto supracitado (que, pelo visto, foi escrito há tempos, razão pela qual pode ser que ele tenha revisto este parecer). Mas como este seu texto é bastante difundido e diz respeito a um tema tão importante para a história da filosofia — e também para a história da Igreja, o que implica dizer: para nós católicos —, vimo-nos compelidos a mencionar apenas alguns exemplos do tomismo histórico, que, se porventura foi utilizado para a defesa da fé e dos Dogmas, não implica dizer que o tenha sido de forma “ideológica” ou “política”.
A menos que concebamos a política de uma perspectiva liberal (condenada pelo Magistério), quer dizer, como algo não necessariamente ordenado ao poder espiritual participado por Cristo à Santa Madre Igreja.
Ao modo de um Dante ou de um Thomas Morus.
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[1] Aqui, não custa lembrar que “ideologia” é um termo plenamente assimilado pelo jargão da filosofia política a partir do francês Antoine Destutt de Tracy, que na bolorenta obra Elements d’ideologie (1801) afirmara ser a ideologia “uma filosofia primeira em substituição a qualquer metafísica”.
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Dom Williamson
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El “Comentario Eleison” del 18 de Junio prometió cuatro números del “Comentario” que mostrarían lo “desorientado” que está el Papa Benedicto XVI en su “manera de pensar”. De hecho presentan un resumen del precioso tratado acerca de su pensamiento, escrito hace dos años por Mons. Tissier de Mallerais, uno de los cuatro obispos de la Fraternidad de San Pio X. El tracto del obispo, La Fe Puesta en Peligro por la Razón, le llama “sin pretensiones”, pero de hecho expone bien el problema fundamental del Papa – como creer en la Fe Católica de manera tal que no se necesiten excluir los valores del mundo moderno. El tracto muestra que esa manera de creer necesariamente está desorientada, aún si el Papa de alguna manera aún cree.
Se divide en cuatro partes. Después de una importante Introducción a la “Hermenéutica de la Continuidad” de Benedicto XVI, Mons. Tissier revisa brevemente las raíces filosóficas y teológicas del pensamiento del Papa. En tercer lugar expone sus frutos para el Evangelio, para el dogma, para la Iglesia y la sociedad, para el Reinado de Cristo y para los Novisimos. Concluye con un juicio moderado de la Fe “renovada” del Papa, bastante crítico pero en su totalidad respetuoso. Empecemos con una síntesis de la Introducción:
El problema básico para Benedicto XVI, como para todos nosotros, es el choque entre la Fe Católica y el mundo moderno. Por ejemplo,  el ve que la ciencia moderna es amoral, que la sociedad moderna es secular y la cultura moderna multi-religiosa. El especifica que este choque se da entre la Fe y la Razón, entre la Fe de la Iglesia, y la Razón tal como se concibió a partir de la Ilustración del siglo XVIII. Sin embargo, el está convencido de que estas pueden y deben ser interpretadas de manera que se puedan unir armoniosamente. De ahí su participación intensa en el Vaticano II, un Concilio que también intentó reconciliar la Fe con el mundo actual. Mas los Tradicionalistas dicen que el Concilio falló debido a que sus mismos principios son irreconciliables con la Fe. De ahí la “Hermenéutica de la Continuidad” del Papa Benedicto, un sistema de interpretación para demostrar que no existe ruptura entre la Tradición Católica y el Vaticano II.
Los principios de la “hermenéutica” de Benedicto se remontan a un historiador alemán del siglo XIX, Wilhelm Dilthey (1833-1911). Dilthey sostenía que debido a que las verdades se presentan en la historia, pueden ser entendidas únicamente en su historia, y las verdades humanas no pueden ser entendidas sin el involucramiento del sujeto humano contemporáneo en esa historia. Así es que para trasladar la esencia de las verdades pasadas al presente, uno necesita quitarle todos los elementos que pertenezcan al pasado, hoy en día irrelevantes, y reemplazarlos con elementos de importancia para el presente que se vive. Benedicto aplica a la Iglesia este doble proceso de purificación y enriquecimiento. Por una parte la Razón necesita purificar a la Fe de sus errores pasados, por ejemplo su absolutismo, mientras por otra parte la Fe necesita lograr que la Razón modere sus ataques a la religión y recuerde que sus valores humanos, libertad, igualdad y fraternidad, se originaron todos en la Iglesia.
El gran error del Papa en esto es que las verdades de la Fe Católica, sobre las cuales se fundó la civilización Cristiana y sobre las cuales sus restos débiles aún descansan, tienen sus orígenes de ninguna manera en la historia humana sino en el seno del Dios inmutable. Son verdades eternas, desde la eternidad, para la eternidad. “El cielo y la tierra pasarán, pero mis palabras no pasarán”, dice Nuestro Señor (Mateo XXIV,35). Ni Dilthey ni, aparentemente, Benedicto XVI pueden concebir verdades más allá de la historia humana y por encima de todo su condicionamiento.
Si el Papa piensa que al hacer dichas concesiones a la Razón sin fe, atraerá a sus adeptos hacia la Fe, que lo piense de nuevo. ¡Simplemente despreciaran a la Fe aún más !  En el próximo número, las raíces filosóficas y teológicas del pensamiento de Benedicto.
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Kyrie Eleison.
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Fonte: SPES

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Fonte: Contra Impugnantes

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Fonte: Contra Impugnantes

Sidney Silveira

O despotismo caracteriza-se pela imposição de políticas que não se orientam pela verdade — ou seja: que não tenham como referência a realidade mesma das coisas. Por isso, um poder de governo (potestas regendi) sem nenhuma referência ao ensino da verdade (potestas docendi) será sempre tirânico, ainda que se trate de uma tirania da maioria teleguiada, como é o caso das democracias contemporâneas, onde o descasamento entre o ético e o político é essencial, e o povo, mera massa de manobra de minorias infrapolíticas altamente organizadas e financiadas. Se isto vale para o plano político, muito mais valerá para o espiritual-noético ao qual a política está por natureza subordinada.

Platão — o pagão Platão! — já ensinava que só pode haver república quando os homens se reúnem em torno da verdade. E tinha razão nisto o notável grego, pois, de forma diametralmente oposta ao que propugnava Maquiavel, a verdade é o critério da política, o pilar sem o qual sequer pode haver civilização. Em suma, uma política baseada em mentiras ou em erros se voltará sempre contra o bem comum e se porá a favor das oligarquias, a favor dos tiranos, dos corruptos, dos imbecis que se inebriam com o poder e vendem a alma por trinta dinheiros, fomentando a ruína geral. É este o exato momento em que as arbitrariedades passam a dar o tom da política, e em que a verdade começa a se tornar uma impossibilidade social; e defendê-la, um grande risco.

Pois muito bem. Feito este preâmbulo em que está implicada a necessária ordenação do político ao espiritual, cumpre-nos dizer: toda a luta iniciada por D. Marcel Lefevbre — devida à reviravolta magisterial dos documentos do Concílio Vaticano II e de todos os que se lhes seguiram — se deu no plano doutrinal, e não no terreno político. Ou seja, o aspecto político dessa luta sempre ficou num patamar adventício e secundário, como aliás deve ser, de acordo com a reta razão. Neste contexto, o x da questão da FSSXP criada por D. Lefevbre nunca foi do tipo “político-partidário”, mas a necessidade de preservar a Tradição e manter íntegras todas as notas essenciais da Igreja — que estavam sob gravíssimo risco de perder-se em poucos anos, devido ao modernismo “consagrado” pelas autoridades romanas que, desde o Concílio, passaram a ensinar doutrinas contrárias a dois mil anos de magistério eclesiástico.

Quando contemplamos, com o coração desapaixonado, o vendaval modernista, observamos que dada ficou de pé, nos últimos 46 anos:

  • Ø Novo Catecismo (um tratado de [má] fenomenologia totalmente inacessível à maioria dos simples fiéis);
  • Ø Novo Código de Direito Canônico (em que até a inversão da ordem dos artigos — estando as questões leigas à frente das eclesiásticas — indica o novo vetor da lei, isto sem falar em algumas adaptações sutis ao modo de pensar moderno e as teorias por ele informadas);
  • Ø Nova liturgia (protestantizada);
  • Ø Novos ritos de canonização (com a exclusão de etapas fundamentais);
  • Ø Nova ordenação sacerdotal (bem reduzida, na nova fórmula, e sem a devida ênfase ao fato de o padre ser ordenado para perdoar os pecados);
  • Ø Novo ministério dos sacramentos, propenso ao fomento de toda a sorte de escândalos (como os que hoje pululam nas dioceses);
  • Ø Novo ensino filosófico e teológico nos seminários (com a exclusão do ensino escolástico ou, então, sua adaptação forçosa às filosofias moderna, contemporânea e pós-moderna, ao modo de “diálogo”);
  • Ø Mil etecéteras e milhões de conseqüências práticas!

É fato inegável que a foice modernista alcançou todos os âmbitos da Igreja, desde 1965 (a propósito, ano em que nasci). O mais incrível é alguém não querer ver a íntima conexão entre a crise atual e as novas doutrinas, a nova teologia.

Agora, um dos bispos da FSSPX fez um recente sermão dizendo o seguinte, entre outras coisas:

“Roma é o centro do Catolicismo; é de Roma que a solução deve vir”.

Pronto! Bastou isto para uma plêiade de católicos neoconservadores (e também alguns padres tradicionais) dar mil “vivas” e fazer incríveis ilações pseudopolíticas sobre o benefício que um acordo entre Roma e a FSSPX traria para o orbe católico, em quaisquer bases. Acreditam estes amigos que, num passe de mágica, todas as inúmeras e fundamentais questões doutrinárias (referentes às verdade da fé, ao caráter da Igreja e ao valor mesmo do magistério conciliar) serão resolvidas pela oferta de postos eclesiásticos?

“Sejam caridosos e cedam”, dizem os ácidos críticos dos católicos que não cedem na doutrina, como se pudesse haver caridade sem verdade. Com relação a estes, o blog do SPES dá hoje uma resposta bem concisa e precisa: ou tudo o que ensinaram os padres tradicionalistas até hoje era falta de caridade, e os que nos acusam “de faltar a ela” mudaram de posição sem aviso prévio, ou, devido a uma ignorância quase invencível, nunca entendemos nós os seus ensinamentos anteriores. Tertium non datur.

Para mostrar que esta última opção não pode sustentar-se de forma alguma, o referido blog começará a publicar, a partir de hoje, uma série com esses ensinamentos, apontando sempre as fontes.

Finalizo dizendo o seguinte: é claro que rezamos por um acordo, mas não em quaisquer bases, e sim com a condição inegociável de que Roma retome a tradição bimilenar da Igreja, pondo fim ao modernismo fomentador de crimes contra a fé.

P.S. É evidente que é de Roma que a solução deve vir! Mas a solução não é, como frisamos, política — e sim doutrinária. Sem esta, qualquer acordo está fadado a mutilar a resistência católica.

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Fonte: Contra Impugnantes

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“O mal de culpa consiste num operar; e o mal de pena num padecer”.

Santo Tomás de Aquino (De Malo, I, Art. 5, resp.)

Sidney Silveira

Lembro-me de que, há alguns anos, foi preciso corrigir a Apresentação encomendada para o primeiro volume da Questão Disputada Sobre o Mal editado pela Sétimo Selo, num trecho em que se fazia alusão a uma das muitas imprecisões (tecnicamente falando, heresias, digo hoje sem constrangimento) do erudito monge beneditino Estêvão Bettencourt [1], falecido há três anos. No caso, era a sua opinião de que o inferno seria, em verdade, não uma realidade ígnea onde são atormentados os réprobos, mas o simples afastamento de Deus ocasionado pelo pecado. Em palavras simples, o inferno seria essencialmente um estado, e não um lugar [2] no qual padecerão a pena eterna os demônios e os homens que morreram em impenitência final, privados da graça santificante, dado que não estavam entre os eleitos por presciência divina — quer dizer, entre os predestinados à salvação.

Ora, que os réprobos viverão a eternidade a retorcer-se, numa dor espiritual infinda, é uma conclusão fundamentada na Sagrada Escritura; mas dizer que ele não seja um castigo divino é um grande erro teológico — que, defendido em qualquer outra época anterior ao vendaval pós-conciliar vaticano-secundista, acarretaria imediatas sanções do Magistério da Igreja ao opiniático teólogo que a sustentasse. Afirmo isto porque, se escavarmos bem as premissas implicadas neste erro grave contra a fé, veremos que, no fundo, está a pressuposição (em geral bastante maliciosa, embora pintada nas róseas cores das “boas intenções”) de que Deus não castiga ninguém; o homem é quem se castiga a si mesmo com o pecado.

O corolário teológico da verdade de fé claramente expressa na Sagrada Escritura —“Apartai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o demônio e seus anjos”, (Mt. XXV, 41) —, e defendido por dois mil anos de Magistério, é bem outro: Deus castiga. E castiga porque é justíssimo e sapientíssimo. Vejamos primeiramente o que ensina Santo Tomás no Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo sobre o chamado “mal de pena”:

“Duas coisas devem considerar-se na pena, a saber: a razão de mal, na medida em que é privação de algum bem, e a razão de bem, na medida em que é justa e ordenada. Alguns antigos, considerando a pena tão-somente sob o aspecto de ser um defeito e um mal, disseram que as penas não procedem de Deus, erro em que parece ter caído [até] Cícero, como é evidente em seu livro De officiis (II, 2); tais homens negaram a Providência de Deus a respeito dos atos humanos. Daí afirmarem que a ordem da pena (…) não existe por Providência Divina, mas apenas pela justiça do homem que a inflige, e que o defeito que está na pena não é ordenado por Deus, mas acontece necessariamente por causas segundas, pois sustentavam esses homens que Deus produziu toda a realidade no ser como um agente que produz por necessidade natural (…). Mas esta posição é errônea, como ficou evidente no Livro das Sentenças (I, d39), onde se mostra que a Providência Divina se estende a todas as coisas.

“Por esta razão é preciso dizer que as penas procedem de Deus, mas de nenhum modo procedem d’Ele as culpas, embora a umas e a outras se chamem males. (…) A pena (…) não tem razão de mal ou de defeito porque procede do agente, já que as penas se infligem por uma ação ordenada do agente, mas tem razão de defeito e de mal apenas no sujeito que a padece e é privado do bem por uma ação justa, e daí que Deus é o autor das penas, mas de modo diverso para penas diversas. Com efeito, umas penas são de dano, como a subtração da graça e outras semelhantes; e Deus é causa dessas penas”. [in II, Sent., d37, art.2, resp.]

A frase seguinte desse texto de Santo Tomás eu prefiro destacá-la fora da citação, e o porquê já direi. Afirma o Aquinate: “(…) Deus é causa das penas não como quem obra, mas mais propriamente não obrando, pois do fato de que Deus não outorgue a graça já se segue a privação da graça”. Quer dizer: Deus opera a pena simplesmente não outorgando a graça ao pecador que se perde, no momento da morte deste. Mas tal aparente “inação” é fruto de um ato positivo da vontade divina, e a importância deste esclarecimento é porque alguém poderia imaginar o seguinte: ao infligir esse tipo de pena sem obrar, Deus nada teria a ver com o inferno.

Pois bem. Na Suma Contra os Gentios (III, cap. CXLV), num trecho em que fala da justeza absoluta da lei divina, o Aquinate ensina de forma insofismável: “Os que pecam contra Deus não somente devem ser punidos pelo afastamento da bem-aventurança, como também pela experiência de algum mal. (…) Donde na Divina Escritura infligir-se aos pecados não apenas a exclusão da glória (exclusionem a gloria), como também a aflição provocada por outras coisas. Assim (…) ‘[Deus] fará chover sobre os pecadores brasas de fogo; enxofre e vento flamejante serão a porção do seu cálice’ (Sl. 10,7). Por esses argumentos [ou seja: os vários arrolados anteriormente, e não somente os destacados por ora no blog] afasta-se a opinião [herética] de Algazel, que afirmava que os pecadores só serão afligidos pela perda do fim último[3].

A proposição de D. Estêvão de que o inferno é apenas um estado, e não um castigo infligido por Deus (o qual tem os demônios atormentadores como instrumentos da Providência Divina) parte de uma fonte principal: a perda da verdadeira noção de sobrenatural, que o levou a enfatizar apenas as conseqüências naturais do pecado na alma (e no corpo) do pecador, e equivocamente projetá-las no que — ao seu ver — seriam as penas do inferno. Ora, haver penas que são fruto direto do pecado, e muitas vezes ainda nesta vida se refletem no corpo, é algo que mesmo Santo Tomás jamais negou. (Ex.: um irado sente o sangue esquentar e a pressão subir; o guloso sente o corpo pesar; o luxurioso, a imaginação desgovernar-se; etc.). Mas no caso da pena do inferno se trata propriamente de uma pena sobrenatural, e não de uma conseqüência devida a processos naturais, e muito menos de algo que decorra automaticamente do pecado, sem nenhuma participação da Providência Divina, que a tudo abarca.

Em suma, reiteremos: de acordo com a doutrina católica, a pena do inferno é um castigo sobrenatural que se insere no plano da Divina Providência — e tem os demônios atormentadores como instrumentos da Justiça de Deus.

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[1] Além do naturalismo que permeia um sem-número de teses teológicas de D. Estêvão, uma das proposições difundidas em vários de seus textos na conhecida publicação Pergunte e Responderemos é a do poligenismo (ou seja: a opinião de que não houve Adão e Eva, mas um infindável número de “protoparentes”, o que simplesmente joga por terra o dogma do Pecado Original).

[2] D. Estêvão chama de “infantil” a visão do Inferno de Irmã Lúcia, e de forma bastante constrangedora para o fiel tradicional. Mas há bem mais: no Curso sobre Problemas de Fé e Moral, da Escola Mater Ecclesiæ (pág. 137), D. Estêvão, depois de colocar num mesmo plano a visão de Dante e a de Irmã Lúcia — o que já diz muito do seu modernismo —, afirma com indisfarçável ironia que “o inferno não é um tanque de enxofre fumegante, com diabinhos asquerosos a atormentar os réprobos. O inferno é um estado de alma em que a criatura humana se projeta caso morra num estado de aversão a Deus ou em pecado grave. Deus respeita a opção da criatura que se autocondena a si mesma” (grifos nossos!). Fecho aqui as aspas para dizer: são tantos os erros teológicos graves contra a fé implicados numa tão curta proposição, que deixarei para enumerá-los noutra oportunidade. Prossigamos com D. Estevão, na pág. 140 da mesma obra: “A propósito, costuma-se perguntar o que julgar da famosa visão do inferno com que foi agraciada Lúcia, a vidente de Fátima: [respondamos] é visão adequada ao entendimento das crianças (…)”. Pois bem, contraponhamos isto ao que diz o Aquinate na Suma Teológica (I, q. 64, art. 4, resp.), seguindo de perto o Magistério, que ensina categoricamente que os demônios atormentam os condenados no inferno: “Alguns [demônios] estão agora [antes do Juízo] no inferno atormentando aqueles que induziram ao mal”. Ora, entre o Doutor Comum da Igreja e D. Estêvão, não me perguntem com quem devemos ficar…

[3] Ou seja, é a mesma heresia defendida por D. Estêvão na obra supracitada (em nota na pág. 137), quando diz: “…[o inferno] se caracteriza, em grau máximo (…) pela privação de Deus”. O monge beneditino, nesta passagem, parece desconhecer que a visão beatífica da essência divina (felicidade sobrenatural absolutamente gratuita) também não é prerrogativa das almas que estão no Limbo, as quais ainda assim têm uma felicidade natural. Ah, lembrei que a C.T.I. pôs o Limbo no ‘limbo”…

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