Feeds:
Posts
Comentários

Archive for fevereiro \28\-03:00 2012

.

O Ecumenismo de Bento XVI

 .
Um valioso estudo do ecumenismo conciliar surgiu na Alemanha há alguns anos, escrito por um certo Dr. Wolfgang Schüler. Em Bento XVI e como a Igreja se vê a si mesma, ele argumenta que o ecumenismo liberado pelo Concílio Vaticano II transformou o entendimento da Igreja de si mesma, e prova por uma série de citações textuais que Joseph Ratzinger enquanto sacerdote, Cardeal e Papa promoveu consistentemente esta transformação, desde o Concílio até os dias de hoje. Não poderia ele estar envergonhado de tê-lo feito.
Por lógica – isto levará mais de um Comentário Eleison – permitamo-nos olhar para a verdadeira visão da Igreja sobre si mesma, e então, com a ajuda do Dr. Schüler, a maneira como essa visão foi mudada pelo Concílio e como Bento XVI constantemente promoveu e tem promovido essa mudança. Finalmente deixemo-nos tirar as conclusões que emergem para os católicos que desejam manter a verdadeira fé.
A verdadeira Igreja Católica sempre se viu como um todo orgânico, uma sociedade una, santa, católica e apostólica, composta de seres humanos unidos pela fé, pelos sacramentos e pela hierarquia romana. Esta Igreja é tão una, que nenhuma de suas partes pode ser destruída ou retirada sem que deixe de ser católica (cf. Jo. XV, 4-6). Por exemplo, a Fé, que é aquilo que principalmente constitui o fiel católico, não pode ser assumida em partes, mas deve sê-lo por inteiro (pelo menos implicitamente) ou não o será de forma alguma. Isto se dá por causa da autoridade de Deus na revelação dos dogmas da fé católica em que se deve acreditar, pois na medida em que deixe de acreditar ainda que em só um entre muitos dogmas rejeito a Sua autoridade por trás de todos eles: neste caso, mesmo que eu acredite em todos os outros, minha crença já não se apoiará sobre a autoridade de Deus, mas apenas sobre a minha própria escolha.
Com efeito, a palavra “herege” vem da palavra grega “escolher” (hairein), porquanto a crença do herege será a partir de tal momento mero resultado de sua própria escolha: ele perdeu a virtude sobrenatural da fé. Logo, ainda que ele rejeite tão somente um único dogma de fé, já não será católico. Uma famosa sentença de Agostinho tem caráter universal: “Em muito estás comigo, e em pouco não; mas, por causa deste pouco em que não estás comigo, de nada te serve estar comigo em todo o restante”.
Por exemplo, um protestante pode acreditar em Deus, pode até acreditar na divindade do homem Jesus de Nazaré, mas, se não acredita no Presença Real de Deus, corpo, sangue, alma e divindade, sob as espécies do pão e do vinho após a consagração na Missa, ele tem um conceito profundamente diferente e deficiente do amor de Jesus Cristo e do Deus em que ele acredita. Pode-se dizer então que o verdadeiro protestante e o verdadeiro católico acreditam no mesmo Deus? O Vaticano II diz que se pode, com base no supostamente mais ou menos compartilhado número de crenças entre católicos e todos os não católicos, suposto sobre o qual constrói seu ecumenismo. Já ao contrário, o Dr. Schüler ilustra por uma série de comparações que duas crenças que podem aparentar ser a mesma, na medida em que podem constituir dois credos diferentes, em absoluto não podem ser realmente a mesma. Aqui se tem uma ilustração: as moléculas de oxigênio que se misturarão com nitrogênio são as mesmíssimas moléculas que se combinarão com hidrogénio, mas serão tão diferentes nos dois casos como o ar que respiramos (O + 4N) e a água que bebemos (H2O)! Estejam atentos.
 .
Kyrie eleison.
.
.
Extraído do blog SPES

Read Full Post »


EXÓRDIO – O DESERTO DE ENGADI

1. “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo”, etc. (Mt 4, 1).

Lemos no primeiro livro dos Reis que Davi demorou-se no deserto de Engadi (cf. 1Re 24, 1-2). Davi quer dizer “de mão forte” e indica Jesus Cristo, que, com as mãos pregadas na cruz, destruiu as potências dos ares (diabólicas). Ó maravilhoso poder: vencer o próprio inimigo com as mãos presas! Cristo demorou-se no deserto de Engadi, nome que se interpreta como “olho da tentação”.

Observa que o olho da tentação é tríplice. O primeiro é o da gula, do qual se lê no Gênesis: “E a mulher viu que [o fruto] da árvore era bom para comer, belo aos olhos e de aspecto agradável; tomou do seu fruto, comeu dele e deu-o ao seu marido” (Gn 3, 6). O segundo é o da soberba e da vanglória, do qual Jó, falando do diabo, diz: “Olha tudo o que é alto: ele é o rei de todos os filhos da soberba” (Jó 41, 25). O terceiro é o da avareza, do qual fala o profeta Zacarias: “Este é o seu olho em toda a terra” (Zc 5, 6). Cristo, então, permaneceu no deserto de Engadi por quarenta dias e quarenta noites; durante eles, sofreu do diabo as tentações da gula, da vanglória e da avareza.

2. É dito, por isso, no evangelho de hoje: “Jesus foi conduzido ao deserto”. Observa que os desertos são três, e em cada um desses foi conduzido Jesus: o primeiro é o seio da Virgem, o segundo é aquele do evangelho de hoje, o terceiro é o patíbulo da cruz. Ao primeiro, foi conduzido só pela misericórdia, ao segundo, para dar-nos o exemplo, ao terceiro, para obedecer o Pai.

Do primeiro diz Isaías: “Mandai, Senhor, o cordeiro dominador da terra, da pedra do deserto até o monte da filha de Sião” (Is 16, 1). Ó Senhor, Pai, mandai o cordeiro, não o leão, o dominador, não o destruidor, da pedra do deserto, isto é, da bem-aventurada Virgem que é chamada “pedra do deserto”: “pedra”, pelo firme propósito da virgindade, pelo qual respondeu ao anjo: “Como pode acontecer isso, pois não conheço homem?” (Lc 1, 34), vale dizer: fiz o firme propósito de não conhecê-lo; “do deserto”, porque não arável [lat. inarabilis]: permaneceu, de fato, intacta, virgem antes do parto, no parto e depois do parto. Mandai-o ao monte da filha de Sião, isto é, à santa Igreja, que é filha da celeste Jerusalém.

Do segundo deserto diz Mateus: “Jesus foi conduzido ao deserto, para ser tentado pelo diabo”, etc.

Do terceiro fala João Batista: “Eu sou a voz daquele que clama no deserto” (Jo 1, 23). João Batista é dito “voz” porque, como a voz precede a palavra, assim ele precedeu o Filho de Deus. Eu, disse, dou a voz de Cristo, que clama no deserto, isto é, sobre o patíbulo da cruz: “Pai, nas vossas mãos eu entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). Nesse deserto tudo foi cheio de espinhos e ele foi privado de toda forma de humano socorro.

.

A TRÍPLICE TENTAÇÃO DE ADÃO E DE JESUS CRISTO

3. “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto”. Freqüentemente se pergunta por quem Jesus foi conduzido ao deserto. Lucas o diz claramente: “Jesus, cheio do Espírito Santo, retirou-se do Jordão e foi conduzido pelo Espírito ao deserto” (Lc 4, 1). Foi conduzido por aquele mesmo Espírito do qual estava cheio, e do qual ele mesmo diz, pela boca de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me consagrou com a unção” (Is 61, 1). Por aquele Espírito, pelo qual foi “ungido” (consagrado) mais que os seus companheiros (cf. Hb 1, 9), foi conduzido ao deserto, para ser tentado pelo diabo.

Como o Filho de Deus, o nosso Zorobabel, nome que se interpreta como “mestre da Babilônia”, viera reconstruir o mundo arruinado pelo pecado, e, como médico, para curar os doentes, foi necessário que ele curasse os maus com os remédios opostos: como na arte médica as coisas quentes se curam com o frio, e as coisas frias com o calor.

A ruína e a fragilidade do gênero humano foi o pecado de Adão, constituído de três paixões: a gula, a vanglória, a avareza. Diz, de fato, o verso: “A gula, a vanglória e a ganância venceram o velho Adão” (autor desconhecido). Esses três pecados os achas escritos no Gênesis: “Disse a serpente à mulher: No dia em que comerdes deste fruto, abrir-se-ão os vossos olhos”, eis a gula; “sereis como deuses”, eis a vanglória; “conhecereis o bem e o mal”, eis a avareza (Gn 3, 4-5). Esses foram as três lanças com as quais foi assassinado Adão junto com os seus filhos [com a sua descendência].

Lemos no segundo livro dos Reis: “Joab tomou na mão três lanças e as meteu no coração de Absalão” (2Re 18, 14). Joab quer dizer “inimigo” e justamente indica o diabo, que é o inimigo do gênero humano. Ele, com a mão da falsa promessa, “tomou três lanças”, isto é, a gula, a vanglória e a avareza, “e as meteu no coração”, no qual está a fonte do calor e da vida do homem – “dele, diz Salomão, procede a vida” (Pr 4, 23) -, para apagar o calor do amor divino e tirar completamente a vida; “no coração de Absalão”, nome que quer dizer “paz do pai”. E esse foi Adão, que foi posto num lugar de paz e de delícias a fim de que, obedecendo o Pai, conservasse eternamente a sua paz. Mas, já que não quis obedecer o Pai, perdeu a paz e, no seu coração, o diabo meteu as três lanças e o privou completamente da vida.

4. O Filho de Deus veio, portanto, no tempo favorável e, obedecendo a Deus Pai, reintegrou aquilo que estava perdido, curou os vícios com os remédios opostos. Adão foi posto no paraíso no qual, imerso nas delícias, caiu. Jesus, pelo contrário, foi conduzido ao deserto, no qual, persistindo no jejum, derrotou o diabo.

Observai como concordam entre si, no Gênesis e em Mateus, as três tentações: “Disse a serpente: No dia em que comerdes dele”; “e, aproximando-se, o tentador lhe disse: Se és o Filho de Deus, dize que estas pedras se tornem pães” (Mt 4, 3): eis a tentação da gula. Da mesma forma: “Sereis como deuses”; “então o diabo levou-o à cidade santa, e o pôs sobre o pináculo do templo” (Mt 4, 5), eis a vanglória. E enfim: “Conhecereis o bem e o mal”; “novamente, o diabo levou-o para sobre um monte altíssimo, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua glória, e lhe disse: Tudo isto eu te darei, se, prostrando-te, me adorares” (Mt 4, 8-9). O diabo, quanto é pérfido, tanto perfidamente fala: essa é a tentação da avareza.

Mas a Sabedoria, por sempre agir sabiamente, superou as três tentações do diabo com as três sentenças do Deuteronômio.

Jesus, quando o diabo o tentou pela gula, respondeu: “O homem não vive somente de pão” (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3), como se dissesse: Como o homem exterior vive de pão material, assim o homem interior vive do pão celeste, que é a palavra de Deus. A Palavra de Deus é o Filho, que é a Sabedoria que procede da boca do Altíssimo (cf. Eclo 24, 5). A sabedoria é chamada, assim, de sabor. Assim o pão da alma é o sabor da sabedoria, com o qual assabora os dons do Senhor e prova quão suave é o próprio Senhor (cf. Sl 33, 9). Desse pão é dito no livro da Sabedoria: “Preparaste-lhes um pão do céu, que contém toda delícia e todo suave sabor” (Sb 16, 20). E isso pretende quando diz: “Mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3). “De toda palavra”, porque a palavra de Deus e a sabedoria têm todo sabor suave, que torna insípido todo prazer da gula. E, como Adão teve nojo desse pão, cedeu à tentação da gula. Justamente, então, é dito: Não só de pão, etc.

Da mesma forma, quando o diabo o tentou pela vanglória, Jesus respondeu: “Não tentarás o Senhor, teu Deus” (Mt 4, 7; cf. Dt 6, 16). Jesus Cristo é Senhor pela criação, é Deus pela eternidade. E esse Jesus o diabo tentou, quando exortou a atirar-se abaixo, do pináculo do templo, o próprio criador do templo, e prometeu a ajuda dos anjos ao Deus de todas as potências celestes. “Não tentarás, então, o Senhor, teu Deus!”. Também Adão tentou o Senhor Deus, quando não observou o mandamento do Senhor e Deus, mas prestou fé com leviandade à falsa promessa: “Sereis como deuses”. Que vanglória, crer poder tornar-se deuses! Ó miserável! Em vão te enalteces acima de ti mesmo, e, por isso, ainda mais miseravelmente cais abaixo de ti. Não tentes, então, o Senhor, teu Deus.

Enfim, quando o diabo o tentou pela avareza, Jesus respondeu: “Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a Ele servirás” (Mt 4, 10; cf. Dt 6, 13; 10, 20). Todos aqueles que amam o dinheiro ou a glória do mundo, ajoelham-se diante do diabo e o adoram.

Nós, pelo contrário, por quem o Senhor veio ao seio da Virgem e sofreu o patíbulo da cruz, instruídos pelo seu exemplo, caminhamos no deserto da penitência e, com a sua ajuda, reprimimos a concupiscência da gula, o vento da vanglória e o fogo da avareza.

Adoramos também nós aquele que os próprios arcanjos adoram, servimos aquele que os anjos servem, aquele que é bendito, glorioso, louvável e excelso pelos séculos eternos. Diga toda a criatura: Amém!

.

Fonte: http://www.santantonio.org/portale/sermones/indice.asp?ln=IT&s=0&c=6&p=0

.

Publicado originalmente em 2/3/2011

Read Full Post »

Extraído do blog SPES

.

DUAS CORRENTES

 .
.
ir. Tomás de Aquino OSB
 .
Duas correntes se manifestam hoje na Tradição. Uns querem um acordo. Outros não.
Uns dizem:
– É preciso entrar na Igreja.
Outros respondem:
– Quem já está dentro não precisa entrar.
– Mas nós precisamos da legalidade – retrucam os primeiros.
– Foi assim que caíram o Barroux, Campos e tantos outros – respondem os segundos.
– Mas nós não cairemos, não é possível que Deus permita que tal coisa aconteça.
– “Quem está de pé, cuidado para que não caia” – adverte São Paulo (I Cor. 10, 12).
As mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Se Bento XVI beatifica quem excomungou Dom Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer, se Bento XVI celebra o jubileu de prata da reunião de Assis, se Bento XVI defende o Concílio Vaticano II como sendo a Tradição, então os males que vimos no pontificado de João Paulo II se repetirão no de Bento XVI.
Enquanto a Roma liberal dominar a Roma eterna; enquanto o maior desastre da história da Igreja desde a sua fundação, ou seja, o Concílio Vaticano II, fôr a referência privilegiada dos Bispos, dos Cardeais e do Santo Padre, não haverá solução.
– Mas Roma está mudando – retomam os defensores dos acordos.
– Mudando em quê?
– Roma liberou a missa e retirou as excomunhões – respondem os primeiros.
– Mas de que serve liberar a missa de sempre se Roma deixa coexistir as duas missas? Lemos no Antigo Testamento que Abraão expulsou a escrava Agar e Ismael seu filho para que Isaac não ficasse com o filho da escrava, pois diz São Paulo: “Aquele que tinha nascido segundo a carne perseguia o que tinha nascido segundo o espírito”, e São Paulo acrescenta: “assim também agora” (Gal. V, 29). Abraão fez isto atendendo, a contragosto, a um pedido de Sara, e Deus deu razão à Sara, pois a que é livre não devia ser equiparada à escrava. A missa nova é Agar. Ela não tem direitos. Ela tem de ser suprimida. Quanto ao levantamento das excomunhões, de que serve retirá-las se se beatifica quem as fulminou? Apesar de certo benefício jurídico desses dois atos, “liberação” da missa (que nunca fora proibida) e “levantamento” das excomunhões (que nunca tiveram validade), o benefício espiritual de cada um deles ficou bem comprometido pelo contexto contraditório em que foram realizados. Ou é João Paulo II que tem razão, ou é Dom Lefebvre. Não se pode exaltar João Paulo II e retirar, se é que retiraram, a excomunhão de Dom Lefebvre. Os dois não podem ter razão ao mesmo tempo. Isso é puro modernismo. Quanto à missa, dá-se o mesmo. Se se permitem as duas, o resultado é a contradição. É um princípio de dissolução. É um princípio de corrupção da fé católica.
– Mas – dirão os acordista – Roma não pode pôr fim a esta crise de uma só vez. As coisas humanas não se resolvem de um só golpe. Para pôr ordem no caos atual, será necessário muito tempo.
– Sim. Não há a menor dúvida. Mas o começo desta ordem só virá quando o Papa tiver a intenção de instaurar esta ordem. E aqui uma questão se impõe. Bento XVI deseja pôr ordem na Igreja?
– Certamente – dirão alguns dentre os acordistas.
– Nada é menos certo do que isso – respondemos nós. – Pôr ordem na Igreja não é imitar Napoleão, que estruturou a Revolução e, desta forma, a perpetuou. Para semear a desordem, é necessário um pouco de ordem, dizia Corção. Bento XVI é um homem de ordem, mas a ordem que ele deseja não é a trazida pela Realeza Social de Nosso Senhor Jesus Cristo: para ele “o problema do Concílio foi assimilar dois séculos de cultura liberal”.[1] É isto o que Bento XVI dá sinais de querer fazer com sua hermenêutica da continuidade.
– Mas – insistem os outros – aos poucos Bento XVI tomará cada vez mais a defesa da Tradição. Ele precisa de nós. Ele quer a nossa ajuda para combater o modernismo.
– Campos também falava assim. Como Bento XVI pode querer nossa ajuda para combater o modernismo se ele mesmo é modernista? Ele pode combater certos modernistas, mas combater o modernismo, ele só poderá fazê-lo depois de deixar de ser modernista.
– Mas dessa forma não se chegará nunca a uma solução.
– Não sei. O que sei é que Santo Anselmo dizia que Deus não ama nada tanto neste mundo como a liberdade da sua Igreja. Pôr a Tradição sob a autoridade de homens que não professam a integridade da Fé católica é fazer exatamente o contrário do que Deus mais ama.
– Mas nesse caso o senhor está identificando a Tradição e a Igreja?
– Perfeitamente, já que a Igreja é essencialmente tradicional e não pode deixar de sê-lo.[2]
– Mas então quem é Bento XVI, se ele não é tradicionalista?
– É um Papa liberal que escraviza a Igreja. Pôr-se sob sua autoridade sem que ele renegue os erros por ele professados é pôr Sara sob o jugo de Agar, Isaac sob o jugo de Ismael. Ora, nós somos filhos da livre e não da escrava cujo filho é Vaticano II, escravo de dois séculos de cultura liberal.
– Qual é então a solução?
– A conversão do Papa.
– Mas como obtê-la?
– Rezando e combatendo. Deus não nos pede a vitória, mas sim o combate. Como dizia Santa Joana d’Arc, “os soldados batalharão e Deus dará a vitória”, pelo Imaculado Coração de Maria. Eis aí toda a nossa esperança.
.
.
.

[1] Do Liberalismo à Apostasia, Ed. Permanência, pág. 10.
[2] Evidentemente a questão é complexa. O título do livro de Ploncard d’Assac a resume de certa forma: A Igreja ocupada. Uma conferência de Dom Lefebvre sobre as notas da Igreja, feita em 1988 para responder aos argumentos acordistas de Dom Gérard, lançam também uma luz penetrante sobre a questão.

Read Full Post »

“Os mundanos correm para a escravidão por meio da liberdade.”
(Bossuet)
 .
Frederico de Castro
 .
Vivemos em uma sociedade que fica em constante estado de crise: desintegração familiar, perda da moral, múltiplas violências, decadência dos costumes e da educação, etc. Muito recentemente, todavia, o quadro das contingências contemporâneas brasileiras parece, salvo melhor juízo, já haver ultrapassado a instância crítica. Explica-se: crise é o momento de impasse onde os fins e destinos da vida prática se perdem; no desenvolver da crise há de ocorrer uma de duas: ou o colapso ou a solução. Parece despiciendo dizer que a sociedade brasileira vem evoluindo na situação de colapso.
Pois bem, os mais recentes escândalos de corrupção – em proporções nunca atingidas na história do país – os levantes e greves nas PMs, instauração de políticas públicas abortistas, escândalos eleitorais com seus Tiriricas, Jeans Willys e Sarneys, uma desintegração e violência familiares como nunca antes testemunhado, tudo sempre muito bem acompanhado de uma delinquência financeira mais do que reiterada, nos forçam realmente a crer que estamos vivendo já um processo de colapso que poderá resultar em um completo caos social caso nada possa ser feito nas próximas décadas..E isso tudo vem acontecendo porque há um esforço hercúleo para impedir que a sociedade brasileira tome consciência da sua verdadeira vocação histórica e patriótica: a vocação cristã. Nas linhas que se seguem, o que se pretende fazer é a demonstração de que a política criminal denominada garantismo pode ser entendida como uma das circunstâncias cruciais que estão levando o Brasil a ingressar no colapso institucional já mencionado, aqui especialmente traduzida em seu significado político e jusfilosófico.

.

E por que isso? Utilizar-se-á o viés político porque a política, segundo ensina Santo Tomás de Aquino, é a ciência prática por excelência. Somente por meio da política é que se podem levar a cabo com máxima efetividade os grandes preceitos da moral capazes de propiciar com a maior harmonia a consecução do bem comum. Aliás, sobre o porquê do justo interesse pela política recomenda-se: “O que é a Política”. Finalmente, antecipa-se logo de uma vez o cerne conclusivo deste estudo, que partirá sem mais delongas da afirmação categórica e imperativa do que se pretende, servindo o texto apenas como fundamentação da afirmativa. Eis, portanto, o que se afirma pela repetição dos dizeres de Monsenhor Williamson:
 .
“Está em jogo o poder, e em última instância a luta pelas almas. Não deixe que ninguém lhe diga que essas questões nada têm que ver com a religião. Lembre-se do Bezerro de Ouro.”
(Monsenhor Richard Williamson)
.
A política criminal denominada “garantismo” enquanto fator criador de impunidade e da Cultura de Desespero.
 .
Inicia-se a fundamentação deste estudo apontando-se para o que há de comum entre o garantismo e as demais circunstâncias da política contemporânea: tudo mais referente à atual política tem por escopo especialíssimo criar uma cultura de desespero no seio da sociedade; quer seja isto consciente quer seja inconsciente. Ora, o desespero é pecado mortal e a toda evidência, empurrar as pessoas ao desespero, fazendo com que se lhes perca a esperança só pode ter como real objetivo uma luta pela perdição das almas. Sem sombra de dúvidas se está diante de algo absolutamente satânico.
Pois bem, a política criminal garantista, já embrionária no período iluminista (em Beccaria, por exemplo), foi teorizada na história recente do direito pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, em sua obra Direito e Razão, que se destaca por haver lançado no cenário jurídico internacional as bases conceituais e metodológicas dessa doutrina. O próprio termo “garantismo ou garantista” tenta apresentar simplicidade e isenção e significa, ou pretende significar, – grosso modo – tão somente um modelo de aplicação dos sistemas normativos, sobretudo o direito penal, com especial objetivo na preservação das garantias constitucionais do indivíduo, ou como se costuma dizer no jargão jurídico, direitos e garantias de 1ª. geração. É o que se convencionou chamar no vocabulário garantista de “modelo limite” ou “mínimo constitucional”.
Não demorou muito a se implantar no Brasil e tem sido defendido fortemente como sendo uma doutrina de escol que seria por sua vez a mais apta ao combate à violência e à defesa da liberdade. Porém, o garantismo é como um camaleão: aos olhos dos positivistas (que ilustrativamente seriam juristas mais conservadores) parece estar revestido de algo de kelseniano, ou seja, mais atrelado à interpretação literal da lei, enquanto que e aos olhos de juristas ditos “progressistas” (ou seja, aqueles mais afinados com as vertentes do direito alternativo e do abolicionismo de cunho notadamente socialista) se ajusta como uma luva à postura “mais revolucionária e menos reacionária”. Logo, pode-se dizer, sem medo, que agradou a grande maioria, pois pretensamente seria uma espécie de um meio-termo entre as escolas penais “de lei e ordem” (conservadoras) e as escolas penais “abolicionistas” (progressistas).
Ocorre que esta política, aparentemente tão “enxuta” e técnica, na verdade favorece enormemente a impunidade porque simplesmente desconsidera a natureza filauciosa do homem, que é a inclinação que todos nós temos ao pecado (é bastante possível que a partir das próximas linhas os curiosos de passagem abandonem o texto, se é que já não o fizeram). A filáucia é aquele impulso da alma que nos obriga a uma máxima perigosa: foge da dor e busca o prazer (e acrescentar-se-ia: a todo custo). Essa nota comportamental é sensivelmente perceptível no gesto criminoso que não é nada mais, nada menos, que uma busca descontrolada pela saciedade do apetite sem levar em consideração o bem; seja ele alheio ou próprio.
Ora, o garantismo cria, como se pode ver, uma hipertrofia valorativa do constitucionalismo, que, por sua vez, é a teoria política responsável pela institucionalização estatal, que, sem mais, é exatamente a situação de fato consistente na negativa legalizada da própria natureza jurídica do Estado (explicar-se-á mais adiante esta natureza em outro texto).
Aqui, alguns poderiam questionar com alguma razão: mas valorizar as garantias que a constituição concede, ainda que com exagero, não seria algo positivo? Valorizar garantias boas assentadas em princípios capazes de favorecer o bem comum seria sim algo louvável, mas, nesse caso, se doutrina a ser enrijecida é errônea, seguramente não será bom.
Explica-se: rigorosamente o garantismo não garante, mas na verdade imobiliza a prudência judicial. Tomemos como exemplo o chamado princípio constitucional da presunção de inocência, que assevera que ninguém será considerado culpado senão após sentença transitada em julgado decretada pela autoridade judicial competente. Ora, esse é um belo princípio quando tomado assim puramente, sem maiores considerações, contudo, na prática essa máxima tem se transformado na fonte de grande parte das maiores impunidades porque a prudência judicial não o alcança, já que segundo uma visão garantista este seria um princípio cuja interpretação deveria ser sempre literal e estrita. Notemos, pois, que se eleva uma justa indignação do cidadão ao se deparar com as notícias de criminosos sentenciados que costumeiramente recorrem em liberdade quando não foi possível ao magistrado alegar alguma das frágeis razões que justificam a decretação de uma prisão preventiva.
Ora, se a interpretação da norma não fosse obliterada por esse garantismo hipócrita poder-se-ia dizer sem o menor receio de se cometer qualquer injustiça que, proferida a sentença judicial, já se está de alguma forma mitigando o princípio da presunção de inocência e o réu, já sob um juízo de condenação, que, via de regra, já poderia, e mais precisamente deveria, impor ao condenado ser recolhido ao cárcere, ainda que desejoso de manejar o recurso. Que mal haveria nisso? Ou acaso, as decisões judiciais de 1º. grau seriam apenas alguma espécie de faz de conta?
E não se pense que tal raciocínio passe de mera especulação jurídica, pois não o é.  É possível notar, e até enumerar, as consequências de uma política criminal dessa espécie. Notemos: a) os agentes de segurança pública – de magistrados a agentes policiais – se frustram no exercício de seu ofício, notadamente os policiais, que nessa qualidade arriscam a pele e recebem salários inadequados para tanto (junto ao desânimo dos bons há o aumento do apetite corruptível dos maus); b) os criminosos, por sua vez, beneficiam-se às claras da impunidade; c) a população se encerra em um gradativo temor e a já debilitada confiança confiada à polícia torna-se progressivamente maior. A soma desse quadro aliada à politicagem vigente na partidocracia brasileira tem como resultado os colapsos institucionais como os que estão a acontecer recentemente na Bahia e no Rio de Janeiro.
Sem qualquer óbice, indiretamente, esse garantismo se projeta no meio social na medida em que as pessoas se descobrem quase que totalmente desamparadas de qualquer aparato de segurança pública e, então, passam a se utilizar de meios privados para se defender, o que, diga-se de passagem, é verdadeiramente o mais antigo e mais justo meio de defesa (o ser humano não foi feito para a covardia, embora exista um esforço tremendo para se fazer crer que isto seja uma espécie de regra). Ora, esta é uma aflição antiga e mais um ponto marcado pela cultura de desespero. Isso tudo aliado ao fato de que rotineiramente o Estado promove campanhas visando impedir a população quanto ao justo exercício de se defender também na esfera privada – notadamente, as campanhas de desarmamento – acena para o caráter ideológico e pouco técnico do garantismo. Basta notar, por exemplo, a atenção que se dispensa às ONGs “defensoras de direitos humanos”. Por sinal, por que existem entraves tão grandes à manutenção da ordem pública e à aplicação da Justiça?
Há uma falácia, que inclusive invoca a passagem bíblica da destruição de Sodoma e Gomorra, que normalmente é colocada da seguinte forma: “é preferível a absolvição de um inocente que a condenação de mil culpados”. Realmente; isso é uma verdade; mas que deve ser colocada devidamente em seu contexto. Deus não condena o justo, mas não deixa impune o injusto! A misericórdia divina poupa o ímpio em função do justo, mas apenas e tão somente enquanto esta situação permanece. Assim, por exemplo, somos merecedores de condenação pelo pecado, mas podemos ser salvos pela comunhão com Cristo (e apenas enquanto esta condição permanece); ou, também no mencionado caso de Sodoma e Gomorra, em que se pouparam os ímpios enquanto Lot vivia na cidade (e somente por causa disso). Contudo, uma vez inexistente ou finda essa circunstância, eis que se impõe a Justiça, e assim o é muito mais em função dos méritos do justo que em razão dos deméritos do ímpio.
Assim é que podemos dizer seguramente que o garantismo é semelhante àquela parábola de Nosso Senhor na qual alguns homens que receberam uma quantia em dinheiro de seu senhor para a aplicarem e um dentre eles, descumprindo a ordem por desídia, desperdiçou os frutos que dele se esperava enterrando o dinheiro na terra sob a alegação de que tinha medo de perder o que recebera.
Ora, o garantismo enterra os frutos da justiça nas areias da incerteza ao fundamento de que a limitação cognitiva dos processos judiciais pode levar à condenação do inocente. Atenção! Temos aqui duas observações importantíssimas: a) uma coisa é a incerteza no caso prático, cuja missão de se avaliar faz parte da prudência do juiz e outra coisa bem diferente é assumir-se a incerteza como princípio de todo e qualquer caso, processo ou juiz; b) ao assumir a incerteza como princípio, o garantismo, que em última análise é uma política criminal sustentada em bases filosóficas iluministas, contribui para a demonstração de que há uma enorme contradição no antropocentrismo propugnado por essas doutrinas. Ora, como pode o homem, cujo comportamento falho pode ocasionar que se sustente uma política criminal baseada na incerteza, ocupar o lugar de Deus – que nunca erra – na ordem dos pensamentos mais elevados que em último caso irão produzir as teorias que serão postas em prática pela política?
Eis, portanto, a prova de que a política criminal garantista favorece o surgimento da cultura de desespero (que é fator de perdição das almas) porque favorece a impunidade.
Assim:
.
“Está em jogo o poder, e em última instância a luta pelas almas. Não deixe que ninguém lhe diga que essas questões nada têm que ver com a religião. Lembre-se do Bezerro de Ouro.”
(Monsenhor Richard Williamson)

.

.

__________

Extraído do blog SPES

Read Full Post »

O dom da Cruz

.

Sim, só as almas amantes é que sobem a rua da amargura! Só as almas amantes lhes é dado carregar a cruz!
 .
Ó cruz bendita, preciosíssimo tesouro escondido, debaixo de aparências bruscas, encerras tantas doçuras! Ó cruz quando fostes carregada pelos ombros de vosso Criador não sabias vós que ias servir de instrumento para que as portas do céu se abrissem! E vós, almas eleitas às quais é dado o dom precioso de carregar a cruz pesada de cada dia, na hora em que ela se apresenta, quem sabe cheias de medo e de pavor, pondes em nossos ombros, a cruz!
 .
Ah! se conhecesseis o dom da cruz, e de como outrora serviu ao Divino Mestre de instrumento, para nela executar a mais portentosa obra, como foi a da Redenção! Assim, também a vós, almas eleitas, a cruz vos serve para a mais portentosa obra a “santificação própria”.
 .
Ah! qual a obra  mais importante de uma alma?
 .
Sim, a obra mais importanteé a santificação própria. A cruz, alma querida, é esse baluarte preciosíssimo que vos defende dos inimigos carnais, pois o sofrimento, subjuga e vos faz conhecer o vosso nada! A cruz, destrona o império infernal. Filhos do pecado, sujeitos como estamos às misérias humanas, a cruz nos eleva, pois ela abate nosso amor próprio, fazendo-nos compreender que, para entrar na mansão celestial, é necessário sofrer! Os maus também sofrem, mas seus sofrimentos ficam neutros, porque eles sofrem sem a conformidade do Divino Crucificado. E porque é necessário sofrer? Ah! por causa de nossos pecados! O Divino Crucificado nos abriu as portas do Paraíso, entretanto, precisamos completar em nós a Paixão do Salvador, se quisermos ter entrada no Paraíso.
 .
Ó cruz bendita, eu vos saúdo, sê o sol nas minhas trevas.
 .
(O bom combate na alma generosa, Instituto das Missionárias de Jesus Crucificado – Campinas – 1ª Edição, ano de 1936, com imprimatur)
.
Extraído do blog A grande guerra

Read Full Post »

Por Santo Afonso Maria de Ligório

.
Consummabuntur omnia, quae scripta sunt per prophetas de filio hominis ― «Será cumprido tudo o que está escrito pelos profetas, tocante ao Filho do homem» (Luc 18, 31).
.
Sumário. Não é sem uma razão mística que a Igreja propõe hoje à nossa meditação Jesus Cristo predizendo a sua dolorosa Paixão. A nossa boa Mãe deseja que nós, seus filhos, nos unamos a ela, para compadecermos do seu divino Esposo, e o consolarmos com os nossos obséquios, ao passo que os pecadores, nestes dias mais do que em outros tempos, lhe renovam todos os ultrajes descritos no Evangelho. Quer ela também que roguemos pela conversão de tantos infelizes, nossos irmãos. Não temos por ventura bastantes motivos para isso?
.
I. Não é sem razão mística que a Igreja propõe hoje à nossa meditação Jesus Cristo predizendo a sua dolorosa Paixão. Deseja a nossa boa Mãe que nós, seus filhos, nos unamos a ela na compaixão de seu divino Esposo, e o consolemos com os nossos obséquios; porquanto os pecadores, nestes dias mais do que em outros tempos, lhe renovam os ultrajes descritos no Evangelho.
.
Tradetur gentibus ― «Ele vai ser entregue aos gentios». Nestes tristes dias os cristãos, e quiçá entre eles alguns dos mais favorecidos, trairão, como Judas, o seu divino Mestre e o entregarão nas mãos do demônio. Eles o trairão, já não às ocultas, senão nas praças e vias públicas, fazendo ostentação de sua traição! Eles o trairão, não por trinta dinheiros, mas por coisas mais vis ainda: pela satisfação de uma paixão, por um torpe prazer, por um divertimento momentâneo!
.
Illudetur, flagellabitur et conspuetur ― «Ele será motejado, flagelado e coberto de escarros». Uma das baixezas mais infames que Jesus Cristo sofreu em sua Paixão foi que os soldados lhe vendaram os olhos e, como se ele nada visse, o cobriram de escarros, e lhe deram bofetadas dizendo: Profetiza agora, Cristo, quem te bateu? Ah, meu Senhor! quantas vezes esses mesmos ignominiosos tormentos não Vos são de novo infligidos nestes dias de extravagância diabólica? Pessoas que se cobrem o rosto com uma máscara, como se Deus assim não pudesse reconhecê-las, não têm pejo de vomitar em qualquer parte palavras obscenas, cantigas licenciosas, até blasfêmias execráveis contra o santo Nome de Deus! ― Et postquam flagellaverint, occident eum ― «Depois de o terem açoitado, o farão morrer». Sim, pois se, segundo a palavra do Apóstolo, cada pecado é uma renovação da crucifixão do Filho de Deus, ah! nestes dias Jesus será crucificado centenas e milhares de vezes.
.
É exatamente isto que Jesus Cristo quis dizer a Santa Gertrudes aparecendo-lhe num domingo de Qüinquagésima, todo coberto de sangue, com as carnes rasgadas, na atitude do Ecce Homo, e com dois algozes ao lado, os quais lhe apertavam a coroa de espinhos e o batiam sem piedade. Ah! meu pobre Senhor!
.
II. Refere o Evangelho em seguida, que, aproximando-se Jesus de Jericó, um cego estava sentado à beira da estrada e pedia esmolas. Ouvindo passar a multidão, perguntou o que era. Sabendo que passava Jesus de Nazaré, apesar de a gente o ralhar, afim de que se calasse, não cessava de gritar: Jesus, Filho de Davi, tende piedade de mim (Luc 18, 38). Por isso mereceu que, em recompensa da sua fé, o Senhor lhe restituísse a vista: Fides tua te salvum fecit ― «A tua fé te valeu».
.
Se quisermos agradar ao Senhor, eis aí o que também nós devemos fazer. Imitemos a fé daquele pobre cego, e neste tempo de desenfreada licença, enquanto os outros só pensam em se divertir com prazeres mundanos, procuremos estar, mais que de ordinário, diante do Santíssimo Sacramento. Não nos importemos com os escárnios do mundo, lembrando-nos do que diz São Pedro Crisólogo: Qui iocari voluerit cum diabolo, non poterit gaudere cum Christo ― «Quem quiser brincar com o demônio, não poderá gozar com Cristo». Quando nos acharmos em presença de Jesus no tabernáculo, peçamos-lhe luz para detestarmos as ofensas que o magoam tão profundamente. Peçamos-lh’a não somente para nós mesmos, senão também para tantos irmãos nossos desviados: Domine, ut videam ― «Senhor, fazei-me ver».
.
Amabilíssimo Jesus, Vós que sobre a cruz perdoastes aos que Vos crucificaram, e desculpastes o seu horrendo pecado perante o vosso Pai, tende piedade de tantos infelizes que, seduzidos pelo espírito da mentira, e com o riso nos lábios, vão neste tempo de falso prazer e de dissipação escandalosa, correndo para a sua perdição. Ah! pelos merecimentos de vosso divino sangue, não os abandoneis, assim como mereceriam. Reservai-lhes um dia de misericórdia, em que cheguem a reconhecer o mal que fazem e a converter-se. ― Protegei-me sempre com a vossa poderosa mão, afim de que não me deixe seduzir no meio de tantos escândalos e não venha a ofender-Vos novamente. Fazei que eu me aplique tanto mais aos exercícios de devoção, quanto estes são mais esquecidos pelos iludidos filhos do mundo. «Atendei, Senhor, benigno às minhas preces, e soltando-me das cadeias do pecado, preservai-me de toda a adversidade»[1]+ Doce Coração de Maria, sede minha salvação.
.
[1] Or. Dom. curr.
.
—–
Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Primeiro: Desde o primeiro Domingo do Advento até Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 279-282.
.
.
_____
.
.
Publicado originalmente em 6/3/2011

Read Full Post »

.

Extraído do blog A grande guerra

Read Full Post »

Extraído do blog A grande guerra

.

.

I. Acerbidade das penas do Purgatório
 .
Ouvindo Santo Agostinho alguns de seu tempo dizer que, se escapassem do inferno, do Purgatório não tinham tanto medo, encheu-se de zelo e lhes fez ver o grande erro em que estavam, pois as penas do Purgatório superam tudo o que há de mais penoso neste mundo.
 .
E com razão, porque o fogo que atormenta as almas do Purgatório é o mesmo que o fogo que atormenta os condenados no inferno, somente com exceção da eternidade.
 .
E assim é que a Santa Igreja não duvida chamar às penas do Purgatório penas infernais [na Liturgia dos defuntos].
 .
O fogo do Purgatório é aceso por um sopro infernal, e é tão ativo que não se chama simplesmente fogo, mas espírito de fogo (Is 4, 4), e derreteria num instante um monte de bronze, mais facilmente que uma de nossas fornalhas devoraria uma palha seca.
 .
Tem ainda este fogo, além da atividade natural, uma potência superior, que lhe dá Deus, para servir de instrumento ao Seu furor (cf. Is 15, 41).
 .
Porém, diz o Senhor pelo profeta Zacarias, que Ele mesmo, mais que o fogo, purgará e limpará a alma eleita, ativando com Seu hálito as suas chamas (cf. Zac 3, 9).
 .
E qual não será o tormento das almas benditas naquele cárcere por meses e anos! Podemos fazer dele uma [longínqua] idéia, considerando que:
 .
a) A alma, assim como é mais nobre que o corpo, é também mais capaz de sentir vivamente, seja a alegria, seja o sofrimento;
 .
b) a alma unida ao corpo, se sente dor, sente-a temperada pelo mesmo corpo, e como que dividida entre ambos, servindo-lhe o corpo de escudo e anteparo da dor. Mas no Purgatório, estando longe do corpo, recebe diretamente sobre si toda a força da dor;
 .
c) a alma unida ao corpo, se sofre no pé ou na mão ferida, não sofre na cabeça ou noutros membros sãos; mas no Purgatório, sendo indivisível e estando separada do corpo, é toda atingida pelas chamas.
 .
Além do fogo, é a alma, no Purgatório, atormentada por si mesma, pensando:
 .
a) Por quão ligeiras faltas está penando: por uma palavra inútil, por um olhar curioso, por uma intenção menos reta, que tão facilmente pudera evitar;
 .
b) que, podendo durante a vida tão facilmente descontar a pena merecida por suas faltas com praticar algumas ações meritórias, não o fez;
 .
c) que, deixando na terra filhos, amigos e herdeiros, que a deviam aliviar naquelas chamas, não o fazem, e só pensam em desfrutar dos bens que lhes deixou (Sl 30, 13). Com quanta razão se lamentará de não ter descontado os seus pecados, dando esmolas, e empregando em obras de caridade os bens que Deus lhe deu e que aumentou com tantos suores?
 .
Sobre tudo isto, acresce o maior tormento do Purgatório, que é a privação da visão de Deus.
 .
São João Crisóstomo disse (Hom. 24 in c. 7 Mat.) que o inferno do inferno é estar o condenado privado para sempre da visão de DeusAssim também se pode dizer que o Purgatório do Purgatório é estar uma alma por muito tempo longe da visão de Deus.
 .
As almas são, pois, atormentadas por dois verdadeiros e profundíssimos sentimentos: desejo e amor.
 .
O maior tormento de uma alma do Purgatório é desejar ir para Deus, e não poder.
 .
Esta pena é tanto maior, quanto maior é o conhecimento que lá a alma tem de Deus, pois, separada do corpo, conhece mais claramente a suma bondade de Deus, e se sente movida com maior força a ir para Ele, como a pedra para o seu centro.
 .
Por isso, as suas maiores ânsias, no Purgatório, são suspiros pela visão beatífica, de que já sente a aproximação, mas que ainda não pode desfrutar.
 .
Clama ela, como o cego do Evangelho (Lc 18, 41): “Senhor, que eu veja” essa luz da glória; que meus olhos desfrutem já da presença divina!
 .
Para chegar mais depressa à visão de Deus, esta alma preferiria que se lhe duplicasse o tormento do fogo, contanto que findasse o tormento do desejo de ver a Deus.
 .
Conta-se [por exemplo] de Rutília que, sabendo que seu filho fora condenado ao desterro para terras longínquas, se desterrou também, para não padecer, longe dele, o tormento da saudade.
 .
Mas muito maior que o desejo, é o tormento do amor.
 .
Três são os amores que atormentam as almas do Purgatório:
 .
a) O amor natural, pelo qual a alma, por uma inclinação inata, é atraída para Deus como a Seu Criador, seu Princípio e último Fim, com maior ímpeto que a pedra propende para o centro da terra ou a chama para o ar;
 .
b) o amor sobrenatural, pelo qual, [sob a ação da Graça,] é a alma vivíssimamente atraída para Deus como seu sumo, único e eterno Bem;
 .
c) o amor de ardentíssima caridade, por saber que é esposa do divino Cordeiro, Jesus Cristo, destinada ao Reino Celestial, e, no entanto, vê que seu Esposo Divino lhe fecha a porta, e que seu amor é assim frustado.
 .
A todos estes tormentos se deve juntar a duração das penas, por meses, por anos e, talvez, até o fim do mundo.
 .
Quanto se amedronta e aterra um malfeitor, ao ouvir a sentença de ficar por algum tempo encerrado num cárcere escuro ou de por três anos trabalhar nos porões das galés!
 .
Quanto se lamenta um enfermo a quem se avisa de que terá de sofrer por um quarto de hora uma dolorosíssima operação!
 .
E a quem não de gelar o sangue ao pensar que, por seus pecados, há de estar sepultado nas chamas do Purgatório por anos inteiros, e talvez até o dia do Juízo Final?!
 .
Santo Agostinho diz que, no Purgatório, um dia é como mil anos (In Ps 37).
 .
Assim é que a esperança e o desejo de ver a Deus, e de passar de um excessivo tormento a uma indizível alegria, fará parecer uma hora mais longa que um século.
 .
Conta Santo Antonino que um enfermo havia muito tempo que sofria horríveis dores. Apareceu-lhe o seu Anjo da Guarda e lhe propôs, por ordem de Deus, que escolhesse: ou sofrer aquelas dores por mais um ano, ou passar meia hora no Purgatório. O enfermo respondeu que preferiria estar meia hora no Purgatório, pois assim acabava mais depressa de sofrer. Pouco depois expirou, e o Anjo foi visitá-lo no Purgatório. Ao ver o Anjo, a pobre alma começou a soltar gemidos inconsoláveis, dizendo-lhe que a tinha enganado, pois, tendo-lhe assegurado que estaria ali só meia hora, já eram passados vinte anos que estava lá penando. Vinte anos? – replicou o Anjo – não passaram mais que poucos minutos de tua morte, e teu cadáver ainda está quente sobre o leito!
 .
Tanto é verdade que as penas do Purgatório, em certo modo, – sapiunt naturam aeternitatis -, têm um sabor de eternidade, por parecer à imaginação do padecente que uma hora é como um século.
 .
II. Dificuldade em evitar o Purgatório
 .
Um mal qualquer, por maior que seja, se facilmente se pode evitar, não é grande mal; mas um mal grande, que dificilmente se pode evitar, torna-se extremo.
 .
Tal é o Purgatório; pois, como atesta o cardeal e Doutor da Igreja São Roberto Belarmino (De amis. grat., c. 13), até dos homens mais santos e perfeitos, pouquíssimos são os que vão direto ao Paraíso.
 .
O mesmo Santo, estando próximo à morte, recebeu a visita do Geral da Companhia de Jesus, que, sabendo como era santíssima a vida de Belarmino, lhe disse que todos tinham firme esperança de que, depois da morte, ele voaria logo para o Céu. – “Mas não a tenho eu, disse o Santo; eu não tenho essa esperança“.
 .
Santa Teresa d’Ávila conta que, sendo-lhe revelado o estado de muitas almas na outra vida, só de três sabia que tivessem ido para o Céu sem passar pelo Purgatório [e uma destas almas era ninguém menos que um São Pedro de Alcântara].
 .
Nem isto nos deve maravilhar. São Bernardo diz (Decl. sup. Ecce nos) que, assim como não há obra boa, por mais pequena que seja, que Deus não remunere largamente, assim não há mal, por mais ligeiro que seja, que Deus não castigue severamente.
 .
Ora, sendo a alma mais justa e santa sujeita a muitas imperfeições, naturalmente está exposta a ir pagar por elas no Purgatório.
 .
Se por um lado não quer Deus que nada impuro entre no Céu, por outro não escapa a Seus olhos a mais ligeira mancha, que nós, muitas vezes, nem chegamos a descobrir.
 .
Por isso diz a Escritura que até nos Anjos encontra Deus que repreender (Job 4, 18), e que os mesmos céus não são puros na Sua presença (Job 15, 15), e que até nas obras dos justos encontra que emendar (Sl 74, 3).
 .
O santo Jó, conhecendo esta minuciosa Justiça de Deus, temia que as suas ações, ainda as mais santas, não Lhe fossem plenamente agradáveis (Job 9, 28).
 .
Oh! Como são terríveis os juízos de Deus, e como são diversos dos d’Ele os juízos dos homens!
 .
O homem não vê senão o que aparece por fora; Deus, porém, penetra o coração (1 Rs 16, 7).
 .
O padre Baltasar Álvarez, da Companhia de Jesus, confessor de Santa Teresa d’Ávila, era, por testemunho de sua Santa penitente, um dos homens mais santos e piedosos de seu tempo. Um dia, ele pediu ao Senhor que lhe revelasse quais eram as suas obras que mais O agradavam. Deus Nosso Senhor ouviu a sua oração, e fez-lhe ver as suas obras no símbolo de um cacho de uvas, em que umas eram verdes, outras amargas, e só duas ou três estavam maduras, e estas ainda não de todo doces ao paladar. “Tais são, disse-lhe o Senhor, as tuas ações; delas só duas ou três são boas, e mesmo nestas, se examinarem com rigor, não lhes faltará que repreender”.
 .
Daqui se vê como é severa a Justiça Divina em julgar as ações dos homens, e como é difícil, ao morrer, estar um alma tão purificada, que não fique nada por que satisfazer no Purgatório.
 .
Não faltam exemplos na vida dos Santos que confirmam esta doutrina.
 .
Na vida de São Severino se conta que, enquanto um clérigo passava um rio, apareceu-lhe um sacerdote e, tomando-lhe a mão, a queimou toda, dizendo: Isto sofro no Purgatório por não rezar as Horas canônicas com atenção.
 .
De São Martinho escreve São Gregório Turinense que, orando no sepulcro de sua irmã e recomendando-se a ela como a santa, de repente ela lhe apareceu, vestida do hábito de penitente, com o rosto triste e pálido, e lhe disse que ainda estava no Purgatório, por ter penteado o cabelo na Sexta-Feira Santa, não se lembrando que era o dia da Paixão do Senhor.
 .
A irmã de São Pedro Damião, como ela mesma revelou a uma santa alma, foi condenada a penar dezoito dias no Purgatório, por ter, de sua cela, ouvido curiosamente os cantos e músicas que entoavam debaixo da janela.
 .
São Severino, Arcebispo de Colônia, foi condenado a um gravíssimo Purgatório, por ter recitado as Horas canônicas sem a devida distinção de tempos, apesar de serem muitos os negócios de seu palácio, que parece o desculpariam.
 .
Entremos agora dentro de nós mesmos, e tiremos a conseqüência, que tirou também Santo Antonino depois de contar a seus religiosos semelhantes exemplos: “Tema, pois, cada um de vós, cometer pecados veniais e não se purificar deles nesta vida“.
 .
Se Deus é tão severo em punir no Purgatório as menores faltas, e se é tão difícil, mesmo para as almas mais perfeitas, evitá-lo, como é que me atrevo a acumular pecados veniais em minha vida, sem fazer penitência deles?…
 .
E se aqui me parece insuportável uma pequena fagulha, que será sofrer aquele fogo atrocíssimo?…
 .
Por que não procuro depurar as minhas ações de toda impureza, e fazer penitência pelos pecados cometidos?…
 .
Andemos sempre alumiados pelas chamas do Purgatório, para evitarmos, com a perfeição de nossas obras, cair naqueles horríveis tormentos (Is 40, 11).
 .
III. Como devemos evitar o Purgatório
 .
É verdade de Fé que ninguém entra no Céu sem estar de todo purificado (Apoc 21, 17), e sem primeiro ter satisfeito todas as suas dívidas à divina Justiça (Mt 5, 26).
 .
Deste modo, ou havemos de punir em nós mesmos, nesta vida, os nossos pecados, ou então Deus se encarregará de os castigar depois da nossa morte. Não há como escapar, diz Santo Agostinho (Conc. 1 in Ps 58).
 .
Quem, na vida, não apaga os pecados com as lágrimas da penitência, depois da morte se purificará deles com as chamas do Purgatório. Ora, não é melhor lavar os pecados com água do que com fogo?
 .
Na vida, com um dia de penitência, e até com uma hora, podemos satisfazer por nossos pecados o que no Purgatório nem por um ano expiaríamos.
 .
Ora, não é melhor padecer por um pouco, neste mundo, que padecer no outro por longo tempo, que pode ser até o dia do Juízo?
 .
Ajuntemos que a penitência feita em vida é meritória, e depois da morte nada merece. Ainda que penemos por mil anos no Purgatório, não adquiriremos um novo grau de graça, nem um novo grau de glória no Céu.
 .
E não é mais sensato sofrer pouco e por pouco tempo, e com mérito, do que sofrer muito e por muito tempo, e sem mérito nenhum?
 .
Finalmente, a Divina Justiça fica mais satisfeita com a penitência, ainda que pequena, feita nesta vida, do que com a pena, ainda que maior, tolerada depois da morte; porque a primeira é um sacrifício voluntário e uma pena tomada espontaneamente, ou espontaneamente aceita, ao passo que a segunda é um sacrifício forçado, e uma pena tolerada por necessidade e contra vontade.
 .
Por todas estas razões se vê claramente quanto importa descontar, nesta vida, as penas que devemos a Deus por nossos pecados, pela enorme vantagem de nos livrarmos, desta maneira, dos males do Purgatório.
 .
Frutos:
 .
Consideremos os frutos que devemos tirar desta doutrina, para nos resolvermos a evitar o Purgatório, usando de todos os meios que a isto nos possam ajudar.
 .
primeiro é fazermos agora, por nós mesmos, penitência dos nossos pecados, e praticar boas obras o mais que pudermos, e não pôr a nossa esperança em sufrágios futuros. E isto devemos fazer sem demora, antes que sejamos assaltados por algum acidente (Gál 6, 10).
 .
segundo é pôr todo o cuidado em ganhar as santas indulgências, com as quais satisfaremos por nossos pecados com a satisfação e méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
 .
terceiro, finalmente, é usar de piedade com as almas do Purgatório, ajudando-as com os nossos sufrágios, obras e orações, porque Deus disporá que aquela caridade que usamos com os outros seja também usada conosco (Mt 7, 2).
 .
Depois essas almas, quando estiverem no Céu, serão gratíssimas para conosco, obtendo-nos muitas graças de Deus.
 .
Feliz de quem salvou uma alma do Purgatório com seus sufrágios, porque terá diante de Deus quem interceda por ele, quando também estiver penando naquele lugar!
 .
Conta Bernardino de Bustis que morreu um pai, e com seus bens deixou um filho riquíssimo. Este ingrato filho não pensou mais em quem tanto o tinha beneficiado, pois nunca mandou sufragar a alma de seu pai, que ardia no Purgatório. Ora, que aconteceu? Ainda que os seus capitais fossem avultadíssimos, contudo estava sempre em penúria. Contínuas tempestades lhe destruíam as plantações, males imprevistos dizimavam-lhe os rebanhos, incêndios e desastres arruinavam-lhe a casa. Já os pleitos, já o fisco, já os inimigos o obrigavam a gastos desmedidos. Um dia, encontrando-se com um servo de Deus, pediu-lhe que o recomendasse em suas orações. Fê-lo o santo varão, a quem foi revelado que aquele filho ingrato não podia desfrutar dos bens herdados, porque tinha o pai no Purgatório, que o amaldiçoava, e as suas maldições eram aceitas da Divina Justiça pela sua perversa ingratidão.
 .
Façamos bem aos nossos defuntos, que o mesmo farão conosco (Ecli 12, 2).
 .
Imaginemos que Jesus Cristo diz a cada um de nós a respeito dos nossos defuntos, o que disse a respeito de Lázaro: “Desatai-o e deixai-o ir” (Jo 11, 44).
 .
+ + +
 .
(Padre Alexandrino Monteiro S. J., Exercícios de Santo Inácio de Loyola, II Edição, Editora Vozes, Petrópolis: 1959, páginas 80-90).

Read Full Post »

Segredo de confissão

Extraído do blog SPES

.

Naquele ano terrível de 1934 estourou na Espanha uma horrível perseguição contra os católicos, por parte dos comunistas e maçons que pertenciam à extrema esquerda. Através da fraude e todos os tipos de armadilhas foram tomando dos católicos os principais postos públicos. Nas eleições, o partido católico teve meio milhão de votos mais do que a extrema esquerda, mas ao contabilizar maliciosamente os votos, aos católicos foram concedidas 152 cadeiras a menos do que os esquerdistas. A perseguição anticatólica foi se tornando mais feroz e violenta. Em poucos meses do ano de 1936, foram destruídos na Espanha mais de mil templos católicos e gravemente danificados mais de dois mil. De 1936 a 1939, os comunistas espanhóis assassinam 4.100 sacerdotes seculares, 2.300 religiosos, 283 religiosas, e milhares de leigos. Tudo pela simples razão de pertencerem à Igreja Católica.
 .

As comunidades que tiveram a maior quantidade de mártires foram: 270 Padres Claretianos, 226 Padres Franciscanos, 176 Irmãos Maristas, 165 Irmãos das Escolas Cristãs, 100 Padres Salesianos, e 98 Irmãos de S. João de Deus. Todos eles eram homens e mulheres pacíficos, que apenas procuravam fazer o bem aos mais necessitados. Não havia um motivo para persegui-los e matá-los, exceto que eles eram seguidores de Cristo e sua Santa religião.

Durante esses anos de guerra fratricida, que davam a impressão de ser intermináveis, a maldade tomou posse de muitos homens e mulheres de esquerda que recebiam ordens diretamente dos bolcheviques em Moscou. Seres humanos, endurecidos de coração, longe de Deus e escravos do demônio, imersos no reino das trevas, que logo se converteram em instrumento do mal. Como se fosse uma epidemia foi-se espalhando o veneno por toda a Espanha. Se um ramo adoece, todo o organismo sofre, se um ramo fica estéril, a videira não produz o fruto que se espera, e mais, outros ramos também podem adoecer e morrer.
Em 1936, os católicos levantaram-se em revolução, a mando do General Francisco Franco, e depois de trinta e seis meses de sangrenta guerra, conseguiram expulsar do governo os comunistas e anarquistas anticatólicos, mas esses, antes de abandonar as armas e deixar o poder, cometeram a mais terrível série de assassinatos e crueldades que a história registra. A guerra civil se instalou impiedosamente na Espanha: Igrejas profanadas, povoados  incendiados e corpos mutilados que marcaram o caminho percorrido pelo exército comunista republicano. Também os nacionalistas ou franquistas católicos combatiam com a mesma fúria.
Depois de uma dura batalha na qual um esquadrão de nacionalistas haviam libertado um povoado do inimigo, surgiu em uma esquina, um soldado espanhol, que pertencia ao partido comunista republicano, gravemente ferido, com o peito aberto pela explosão de uma granada.
Com o olhar já vidrado, o ferido viu os soldados inimigos que se aproximavam, e gaguejando disse: “Um padre! Rápido, chamem um padre!”.
“Vá para o inferno, desgraçado!”, o amaldiçoou um dos nacionalistas. Mas outro dos seus companheiros teve pena do moribundo: ”Vou ver se consigo encontrar um padre”.
Depois de vários minutos, que para o agonizante parecia séculos, aquele soldado retornou com um padre. Cheio de piedade, este se ajoelhou perto do ferido e perguntou se ele queria se confessar. ”Sim, eu quero confessar. Mas me diga, o senhor é o pároco desse povoado?”. O padre respondeu: ”Sim, eu sou o pároco.” ”Meu Deus …!, gaguejou o soldado.
O padre ficou muito tempo ao lado do homem ferido, ouvindo-o em confissão, confortando-o e a dando-lhe esperança de uma segunda vida que com toda certeza será melhor que a primeira. Em seguida, voltando-se para a patrulha dos nacionalistas, ele sussurrou com cansaço: ”Irmãos, eu lhes peço, levem o ferido para uma casa, não o deixem morrer na rua!”
Nesses momentos, o rosto do sacerdote estava banhado em suor, seu rosto estava pálido como cera de vela. Quando os soldados se aproximaram do ferido, o padre já se tinha perdido nas sombras da noite. Fazendo um esforço, o moribundo se levantou, e disse ofegante: ”No entanto, me deu absolvição…”
“Por que havia de negá-la a você? É sua obrigação!” – disse um dos nacionalistas.
“Mas você não sabe o que eu fiz”, continuou o moribundo, ”eu mesmo, com minhas mãos, matei 32 sacerdotes. Eu os esfaqueei, estrangulei, fuzilei. Era sempre a primeira coisa que fazia ao entrar num povoado. Procurava a paróquia e matava o padre. Aqui também fiz o mesmo, mas não encontrei o padre, apenas encontrei seu pai e dois de seus irmãos. Quando lhes perguntei onde estava o sacerdote, não queriam me dizer. Por isso disparei contra os três. Vocês entenderam? Eu matei o pai e os irmãos do sacerdote que veio para me confessar… E, no entanto, ele me perdoou…”

Read Full Post »

.

.

(continuação deste texto)

.

Sidney Silveira

.

Embora útil e adequada aos fins a que visa, a taxonomia da ciência biológica tende à entropia, pois multiplica ad infinitum as espécies a partir de pequenas diferenças materiais, sem a consideração prévia de que a matéria só pode ser raiz comum do gênero corpo — animado ou inanimado, conforme a clássica divisão da Árvore de Porfírio —, mas não um princípio definidor das espécies.[1] Veremos, a seu tempo, como esse modo de classificação (útil e adequado, repitamos, para a biologia) está indevidamente implicado na hipótese da evolução, e induz a um erro basilar quando se tenta aplicá-lo ao conjunto das espécies assim entendidas.

.

Contudo, como se vem apontando ao longo do presente estudo que a forma de um ente é o seu princípio de operação e de especificação, ou seja, é o que o faz ser diferente em espécie de todos os demais, vale fazer alguns aprofundamentos relativos a este tópico. Comecemos, pois, esclarecendo como algo pode, fundamentalmente, ser predicado de outro.

.

Trata-se, a propósito, de princípios pré-categoriais implicados em qualquer classificação possível por parte da inteligência humana.

 .

O lugar do gênero e da espécie entre os predicáveis

.

  1. 1. O gênero

.

Partamos da consideração de que o intelecto humano é, radicalmente, essa potência para abstrair as condições individuantes da matéria e alcançar a região das formas inteligíveis, ou seja, alcançar o universal pelo particular. E também de que, nesta abstração da matéria, ele está apto a separar racionalmente coisas que estão em si unidas na realidade, atribuindo a muitos o que percebe em um (intenção de universalidade). Neste contexto, diz-se que a inteligência não está presa à matéria porque o seu objeto formal está além da matéria: a species intelligibilis, o ente imaterial ao qual o homem chega por um processo que se inicia nas potências sensitivas, passa pelo intelecto possível[2] e culmina numa “iluminação” do intelecto agente, como veremos.[3]

.

Dada esta atividade abstrativa da inteligência humana,[4] abra-se um parêntese para registrar que os conceitos por ela formulados são referentes antes de tudo à substância (ente), à qualidade (forma) e à quantidade (matéria) — neste último caso, evidentemente, em se tratando de entes compostos de matéria e forma. Todos os demais conceitos ou predicamentos, de alguma maneira, supõem estes. Mas como, afinal, se pode dizer que algo pertence a um gênero de ente?

.

Para responder a esta pergunta, deve-se levar em conta que os entes naturais são por nós conhecidos com a matéria, e não sem ela. Seja com esta ou com aquela matéria, não importa; o fato é que eles nos chegam devidamente limitados pelas condições da matéria assinalada por certa quantidade. Esta, por sua vez, é captável pelas potências sensitivas externas (tato, olfato, audição visão e paladar) e laborada pelas potências sensitivas internas (senso comum, memória, imaginação e cogitativa). Assim, por exemplo, as cores de determinada superfície, em virtude da luz que as torna visíveis, agem sobre a potência da visão e produzem uma forma (species) na base do intelecto possível — à qual chamamos “forma inteligível”. Essa forma imaterial passa a estar presente virtualmente na potência intelectiva, até que o intelecto agente atualiza-a, fazendo-a passar de potencialmente inteligível a inteligida em ato. Neste sentido é que a gnosiologia tomista afirma que o intelecto agente ilumina a forma inteligível.[5]

.

Neste processo se chega ao universal: deste azul individuado naquela matéria à forma inteligível azul — universal e distinta em espécie de todas as demais cores. Como se vê, trata-se de uma propriedade universal atribuída a este indivíduo, o que nos dá a clara indicação de que os universais não estão nas coisas reais, mas tão-somente na inteligência. Ninguém, portanto, jamais deparou com o azul, mas com este azul hic et nunc, abstraído da matéria pela potência intelectiva. Ninguém viu a humanidade, mas este ou aquele homem.

.

Isto considerado, observe-se que a inteligência — abstraindo a matériasignata — descobre graus de universalidade. E um deles é justamente o gênero, percebido como o que é comum em muitas substâncias no que tange à sua quididade.[6] Ora, como ente de razão, o gênero também não possui ser na realidade (genus non est unum in re, nas palavras de Santo Tomás), mas apenas na inteligência, que o identifica e o classifica.

.

A título de exemplo, neste contexto vale perguntar em que difeririam e em que se assemelhariam Platão, um asno e uma planta? Radicalmente, assemelha-os o fato de que todos estão no gênero da substância, mas este é o gênero generalíssimo e não conta para a nossa classificação, relativa a entes já compostos de matéria e forma.

.

Portanto, o que neles é comum (e o que os diferencia) é:

.

1- Possuir corpo;

.

2- Possuir corpo animado;

.

3- Possuir corpo animado sensitivo;

.

4- Possuir corpo animado sensitivo e intelectivo (racional).

.

Observa-se que, do corpo (primeiro gênero que é subalterno ao gênero generalíssimo, a substância), passando pelo segundo gênero subalterno (animal) até chegar a espécie ínfima especialíssima decorrente da racionalidade (ou seja, o homem) existe uma escala de diferenciações. Mas, a partir da espécie, as diferenciações só poderão ser numéricas, ou seja, materiais, e não específicas, ou seja,formais. Daí que Sócrates e Platão não difiram em espécie, mas em número.

.

Portanto, as formas específicas encontram-se indeterminadas no gênero, e todos os predicáveis neste âmbito se referem a ele fundamentalmente. É neste exato sentido a matéria se diz princípio de determinação do gênero, e não da espécie.

.

A seguir, após a definição de espécie, verifiquemos a atualidade da Árvore de Porfírio e sua pertinência ao problema que ora nos ocupa.

.

(continua)

.

.

__________
.
1- Ou seja: a matéria não pode ser fundamento da especificação porque, nos entes compostos de matéria e forma, ela tem a função de condição predisponente para a forma realizar os seus atos próprios. Ademais, como se disse anterioremente, se a matéria fosse princípio de especificação, todos os entes com composição de matéria seriam de uma mesma espécie, o que é absurdo. 
.
2- Ou seja: dessa potência radical para todos os inteligíveis.
.

3- Não há, portanto, o que alguns pensadores zubirianos chamam de cognição instantânea, pois, após inteligida uma essência pela primeira vez, não é necessário abstraí-la sempre e sempre, mas basta um reconhecimento (pela memória), desta ou daquela species inteligível particular, para que se perceba que o ente individual Xpertence à essência Y. Assim, pois, quando o intelecto humano apreende um asno reconhecendo-o de imediato como asno, não se trata de cognição instantânea, pois mesmo neste caso o encontro do intelecto com a essência da coisa se dá por intermédio da species inteligível — a qual lhe aponta uma essência que já havia sido abstraída anteriormente das condições individuantes da matéria.

.

4- Advirta-se que a abstração à qual se faz aqui referência é desta ou daquelamatéria, ou seja, da matéria delimitada por certa quantidade — captável, por sua vez, pelos sentidos. É neste sentido que as coisas naturais são conhecidas pelo homem a partir desta ou daquela matéria informada.

.

5- Luz do intelecto agente – lumen intellectus agentis – foi o conceito empregado por Tomás de Aquino ao fazer reparos à gnosiologia agostiniana da iluminação. Segundo o Bispo de Hipona, a percepção da verdade provém de uma direta iluminação divina na mente humana: é a luz divina o que propicia ao homem compreender as coisas por meio de símbolos e palavras. Em resumo, para Agostinho, a luz divina põe ao alcance do homem as verdades – que estão em seu interior como reflexo da própria verdade divina, eterna, necessária, imutável. Neste contexto, o mestre não faria mais do que transmitir ao discípulo os signos das coisas, e estes, para ser compreendidos, necessitariam haurir sua inteligibilidade da iluminação divina. A isto o Aquinate contrapõe o seguinte: se por “iluminação divina” se entende a potência da faculdade intelectiva ou a virtude encerrada nos primeiros princípios do entendimento, que não se adquirem por serem hábitos naturais inatos, então se pode dizer que Deus ilumina a mente humana. Mas a atividade cognoscitiva não consiste em o homem ser “iluminado” por Deus cada vez que entende algo. Para a aquisição da ciência requer-se o processo de compor e dividir raciocínios, tendo sempre como fundamento os primeiros princípios indemonstráveis. Neste contexto, o que faz o conhecimento passar da potência ao ato não é outra coisa senão o intelecto agente, princípio operativo inerente à alma humana. Esta é, pois, a função própria do intelecto agente – iluminar, fazer passar da potência ao ato um novo conteúdo inteligível. Cf. Santo Tomás de AquinoDe Ver q11 a1-2.

.
6- “No que tange à sua quididade” foi a expressão em português a mim sugerida pelo tradutor Luiz Astorga para a quase intraduzível expressão latina in eo quod quid. Ou seja: na definição do Aquinate, gênero é o que se predica de muitas coisas distintas em espécie in eo quod quid, quer dizer, “no que tange à sua quididade”.

Read Full Post »

.

“Concedamos espaço maior, papel mais relevante, às causas segundas; mas não concedamos nada à evolução porque ela é uma monstruosidade metafísica que não cabe em lugar algum”.

.

Gustavo Corção

 .

(As Descontinuidades da Criação)

.

(continuação deste texto)

.

Sidney Silveira

.

Santo Tomás de Aquino dedicou textos importantes de sua obra ao problema da criação. Isto em dois vetores: a criação em sentido geral e a criação do universo corpóreo. Em ambos os casos, comprovando a absoluta transcendência da causa primeira do ser com relação a todas as causas segundas. Estas, a propósito, sempre pressupõem em seu operar algo anterior, ao passo que a causa primeira não pode supor em suas operações algo que ela mesma produziu,[1] o que implicaria contradição. Ademais, nada pode haver anteriormente ao que é primeiro em sentido absoluto.

 .

A causa primeira do ser não é cognoscível — sob aspecto algum — por nenhuma das ciências naturais, visto que a natureza, com todas as suas operações, já se enquadra no contexto das causas segundas. A razão disto é que as causas naturais produzem este ou aquele ente, partindo sempre de algo anterior, ao passo que a causa primeira produz o ser. Assim, nem mesmo a materia prima como “ser real-potencial”, na feliz expressão do tomista Gallus M. Manser, pode ser objeto da física, da biologia ou de qualquer outra ciência natural, justamente por ser informe. Neste contexto, como se afirmou que o problema filosófico da criação nada tem a ver com a hipótese da evolução, cabe fazer algumas considerações a seu respeito.

.

Comecemos pela observação do Aquinate de que os filósofos antigos — ao analisar a origem de todas as coisas — sempre consideraram um devir, uma geração, uma mutação a partir de matéria preexistente.[2] Nem mesmo Aristóteles, com o seuPrimeiro Motor Imóvel, ultrapassou satisfatoriamente a idéia de umamateria prima existente desde sempre.[3] Na verdade, algo assemelha esses antigos filósofos da natureza aos cientistas contemporâneos que esboçam teses sobre a origem do universo, da vida, etc.: o não enxergar a inadequação entre os instrumentos de que se valem e as teorias que formulam.

.

Para ter-se idéia de quão distinto da hipótese da evolução é o problema da criação, comecemos por observar, com Santo Tomás, o seguinte:tudo o que tem potência para ser e não ser, com certeza um dia não foi. Pois bem: não é possível que todos os entes do universo sejam assim (contingentes), pois se todos, sem nenhuma exceção, possuíssem potência para o não-ser, seria necessário admitir, retrocedendo nas séries de causas ordenadas per se, que em algum momento nada foi. Mas se isto fosse verdade, nada existiria agora, poiso nada não tem potências; portanto é absolutamente falso que todos os entes do universo sejam contingentes, quer dizer, que tenham potência para ser e não ser. Logo, é preciso conceber a existência de um ser que não tenha potência alguma para o não ser, ou seja: um ser absolutamente necessário, raiz possibilitante de todas as contingências.[4]

.

Das cinco vias demonstrativas da existência de Deus, esta é a que mais firmemente conduz ao problema da criação, pois, ao conceber-se a existência de um (único) ser absolutamente necessário, surge a pergunta de como os contingentes dele provieram. Uma vez mais, salta aos olhos que a hipótese da evolução nada tem a ver com este problema, pois já parte das operações da natureza, ao passo que aqui se está indicando a causa de todas as naturezas — apontando para o seguinte: a existência de todo o conjunto de entes naturais do universo (do núcleo atômico aos buracos negros, do talo de grama às galáxias mais distantes) pressupõe algo supra naturam, quer dizer, algo fora da série de causas naturais, sem o que estas sequer existiriam. Noutras palavras, a natureza está orientada teleologicamente ao sobrenatural.

.

O leitor que até aqui nos acompanhou há de estar convencido de que é totalmente falsa a dicotomia criacionismo/evolucionismo, pois sequer se trata do mesmo problema. E mais: a hipótese da evolução das espécies é um problema posterior, para cuja formulação honesta seria necessário antes de tudo resolver como é possível o trânsito de uma potência a um ato y ao qual não está orientada — o que está pressuposto na tese de que uma espécie evolui em outra. E aqui reiteremos o que se disse anteriormente: a cobrança de uma prova metafísica para a hipótese da evolução justifica-se, na medida em que esta, partindo de algumas observações em seu âmbito, quer impor-se como verdade omniabarcante para toda uma série de causas naturais.

.

Para demarcar ainda mais a diferença entre os problemas, diga-se que, em síntese, a criação pode considerar-se sob quatro aspectos distintos:

 .

  • Com relação à sua causa material (termo a quo): productio ex nihilo. Ou seja, é a produção de todo o conjunto de entes, literalmente, do nada, e não de uma matéria preexistente. Isto ainda abordaremos em detalhe na continuação da série sobre a criação.

.

  • Com relação ao fim (termo ad quem): productio rei secundum totam substantiam. Ou seja, é a produção de todas de todas as coisas já em sua integridade substancial (matéria e forma, no caso dos entes com composição de matéria, e forma sem matéria, no caso das substâncias imateriais);

.

  • Com relação à causa eficienteemanatio totius entis a causa universali, quae est Deus.[5] Ou seja, a proveniência de todos os entes de uma causa só universalíssima: o Próprio Ser Subsistente, Deus.

.

  • Com relação à ordem entre o termo a quo e o ad quemtransitus de non ente simpliciter ad ens simpliciter. Ou seja, o trânsito do nada em sentido absoluto a partir do Ente em sentido absoluto (que é o Próprio Ser). Daí dizer Santo Tomás que a criação é o primeiro ato que pode exercer-se sobre qualquer coisa (prima actio quae circa rem exercetur).

.

Em resumo, a hipótese da evolução não apenas nada tem a ver com a criação, mas mais ainda: por lidar com o ente já formado, a evolução, devido ao seu intrínseco materialismo, sequer pode vislumbrar tão elevado problema metafísico, que finge não existir. Sequer pode vislumbrar que a criação lida com o ente que não pode, com propriedade, ser enquadrado em nenhum gênero, e por conseguinte em nenhuma espécie.

.

A questão, portanto, não é contrapor a criação à evolução, mas cobrar desta última a apresentação de hipóteses verdadeiramente científicas, ou seja, que partam de premissas e princípios que não agridam a nenhum princípio universal da razão especulativa, sem o qual não pode sequer haver ciência.

(continua)

.

.

_______________________

.

1-“Nullum agens praeexigit ad suam actionem quod per sua actionem producit”.Tomás de AquinoCompêndio de Teologia, c.68

.

2- Tomás de AquinoSubst. Sep, c.7, ad.1.

.

3- Santo Tomás, comentando a tese de Aristóteles sobre a eternidade do mundo, conclui que não é possível à razão decidir com certeza se o universo foi criado por Deus no tempo ou desde a eternidade. Mas, com relação à criação, propriamente, o Aquinate aponta em diferentes obras que a razão humana pode demonstrá-la de forma apodítica. E ele o fez. Veja-se, portanto, que se trata de dois problemas distintos: o da criação e o de se ela aconteceu no tempo ou desde a eternidade (neste caso, com a pressuposição de que Deus poderia produzir algo fora do tempo).

 .

4- Cf. Tomás de AquinoSuma Teológica, I, q. 2, art. 3, resp.

 .

5-Tomás de AquinoSuma Teológica, I, q. 45, art. 1.

Read Full Post »

Preparação para a Quaresma

Extraído do blog SPES

.

.

O Tempo da Quaresma começa na Quarta-Feira de Cinzas e termina no Sábado Santo. Os últimos quinze dias deste longo período constituem o Tempo da Paixão. Outrora, a Quaresma começava no primeiro domingo, mas os dias que o precedem foram acrescentados para perfazer os quarenta dias de jejum. De contrário, ficaria apenas de trinta e seis, visto que não se jejuar aos domingos.
O jejum de quarenta dias, inaugurado pela Lei e pelos Profetas, e consagrado pelo próprio Cristo, foi sempre uma das práticas essenciais da Quaresma. A liturgia a ele alude constantemente, e o prefácio do Tempo recorda-o todos os dias.
.
Mas o jejum irá de par com a oração. Como todos os exercícios penitenciais da Quaresma, é oferecido a Deus em união com o sacrifício do Salvador, diariamente renovado na Santa Missa. Cada dia da Quaresma tem missa própria, devido ao fato de outrora toda a comunidade cristã de Roma assistir diariamente à Santa Missa, durante esta quadra. Daí o indicar-se a estação, a igreja em que se celebrava, nesse dia, a missa da comunidade romana.
Todas as missas feriais incluem, depois da póscomunhão, uma oração sobre o povo, precedido dum convite à penitência e à humildade: “Baixai vossas cabeças diante de Deus”. O caráter penitencial é acentuado pelo silêncio do órgão. Os paramentos são roxos.
————–
Que o Tempo da Quaresma possa nos associar de alguma forma a Nosso Senhor Jesus Cristo. Lembremos que não há Quaresma que valha sem esforço pessoal de retificação de nossas vidas; de fidelidade, reparando, por qualquer forma de privação voluntária as negligências e culpas do passado.
 .
A seguir, deixamos aos amigos um conjunto de vídeos apropriados para as meditações neste período.
.

.

.

Read Full Post »

11 de Fevereiro
Aparição de Nossa Senhora, em Lourdes
.
.
Mostra-me o teu rosto
e que a tua voz ressoe aos meus ouvidos.
Porque a tua voz é suave
e a tua face é formosa.
Aleluia.
.
.
Desde o dia 11 de Fevereiro a 16 de Julho de 1858 a Virgem SS. apareceu 18 vezes a Bernardette Soubirous, pequena pastora de 14 anos de idade, na gruta de Massabielle, em Lourdes. No dia 25 de Março, a Senhora disse à vidente: “Eu sou a Imaculada Conceição“. A festa de hoje recorda-nos pois o triunfo de Maria sobre a serpente (Tracto), triunfo que está no primeiro plano da liturgia Septuagesimal.
 .
Semelhante à mulher que São João viu revestida de sol, com a lua aos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça, a Senhora de Lourdes trazia um véu e um manto mais branco que a neve cingindo por um cinto azul, e uma rosa de ouro nos pés.
 .
Exortou à penitência os pobres homens extraviados que não foram, como Ela, preservados do pecado. Foi no dia da Anunciação que declarou o seu nome para significar com isto que em vista à Incarnação lhe concedeu o Senhor o privilégio de ser ilibada do pecado original (Tracto).
 .
Tendo presente que é Maria “a arca da nova aliança” (Ep.) recorramos confiadamente Àquela que, “cheia de graça” (Of.), veio visitar e cumulá-la de graças (Com.).
 .
(Informações retiradas do Missal Quotidiano e Vesperal – Dom Gaspar Lefebvre – 1952)
.
.
______
Extraído do blog A grande guerra

Read Full Post »

.

(continuação deste texto)
.

Sidney Silveira

.

Ficou assentado que uma ciência que lida apenas com causas acidentais não está aparelhada para conhecer sequer a origem da série causal em seu próprio âmbito de investigação, que dirá para dar a uma hipótese o estatuto de verdade universalmente válida. Este é o caso da biologia quando pretende aplicar a hipótese da evolução à origem das espécies (e portanto da vida):[1] ela o faz sem ter instrumentos filosóficos para tanto. Em poucas palavras, uma ciência é dita natural justamente porque o seu objeto está no limite da natureza, e investigar o princípio — seja de que forma for — é fazer ciência acerca das causas da natureza. É, portanto, fazer metafísica e não ciência natural.

.

No plano lógico, essa impossibilidade se dá porque, nas séries de causas ordenadas acidentalmente, jamais a razão pode chegar a um primeiro em sentido absoluto, pois sempre se poderá acrescentar logicamente mais uma causa à série.[2] Duns Scot, filósofo que somos insuspeitos para elogiar, ensina bem isto no Tractatus de Primo Principio. Ocorre que, se a biologia saísse da série acidental de causas naturais na qual está imersa, ainda que a pretexto de investigar uma suposta origem da vida, já não seria ciência natural, como acima se destacou.

.

E mais:

.

  • a hipótese da evolução, mesmo se forçosamente a desvinculássemos da questão referente à origem das espécies,em virtude do seu caráter de explicação totalizante, abarcadora de toda a série causal (dos primeiros organismos unicelulares até as espécies contemporâneas, que deles “evoluíram”), padece de semelhante carência: nas causas ordenadas acidentalmente, é impossível definir um primeiro simpliciter. Mas sem o primeiro não há o segundo e, portanto, não existe a série. Querer, pois, estatuir uma verdade que englobe uma série de causas sem conhecer sequer o princípio dela é, para dizer o mínimo, ter da ciência um conceito muito baixo.[3]

.

No plano ontológico, por ora basta-nos o fato já apontado de que a forma dos entes é princípio de especificação e de operação. E que, para não sucumbir diante da primeira objeção filosófica, a hipótese da evolução precisaria provar antes de tudo a possibilidade de uma forma entis ir além das potências que a circunscrevem. E não venham os biólogos argüir que se está misturando biologia com metafísica, ciência com filosofia, pois na verdade é justamente o oposto que ocorre: a cobrança de uma prova metafísica para a hipótese da evolução impõe-se porque, em si, tal hipótese é má-metafísica com roupagem de ciência natural, na medida em que aventa uma premissa que não lhe cabe enquanto ciência natural.

.

 .

Evolução e deificação da matéria

.

O problema dos evolucionismos em geral não diz respeito apenas aos métodos de que se valem os seus propugnadores — inapropriados para a hipótese que pretendem provar cientificamente. Levadas as suas premissas às últimas conseqüências, observa-se que a teoria da evolução é uma mal-disfarçada espécie de deificação da matéria, pois, ainda que os naturalistas não saibam sequer o que seja propriamente a matéria, o fato é que, com a hipótese da evolução, creditam a ela um tipo absurdo de “omnipotência”, como veremos. O irônico de tudo isso é verificar que se trata de materialistas que desconhecem a natureza da matéria, o que no entanto se explica: quem conhece o que é a matéria deixa no ato de ser materialista, pois a matéria, mesmo quando organizada por uma forma, não dá conta de explicar a ordem do ser.

.

Pois bem. Comecemos por um axioma escolástico muito simples e de valor universal: operari sequitur esse (o operar segue o ser) Ora, dizer isto significa o seguinte: nada opera senão enquanto é, pois o não-ser não pode operar. Portanto, o ser é a raiz primária de todas as operações, e, por conseguinte, de todas as potências. Nas palavras de Santo Tomás, ele é o ato de todos os atos e a perfeição de todas as perfeições. O seu primado é, portanto, absoluto, na medida em que o ser é o ato primeiro por si subsistente (primus autem actus subsistens per se, na expressão precisa e concisa do Aquinate).[4]
.

Mas o ser tem outra característica marcante: por estar pressuposto em absolutamente em todas as coisas, ele é a atualidade de todas as formas existentes (actualitas cuiuslibet formae existentis).[5]Noutras palavras, toda forma — que, como vimos, é o princípio de especificação, ou seja, é o que distingue os entes em espécies — está para o ser assim como a potência está para o ato. E a matéria, por sua vez, está em potência para a forma, e ao unir-se a ela demarca um princípio e também um limite operativo para o ente. Assim, que um jacaré consiga ficar até duas horas embaixo d’água decorre do fato de que a matéria está nele organizada pela forma exatamente para operar assim. A sua qüididade contempla, em elevado grau, um tipo de respiração anaeróbica, ao passo que a forma entitativa humana (ou seja, a espécie homem) não possui tais potências.[6]
.

Fixemos bem isto: o ser é o que de mais perfeito há em todas as coisas (ipsum esse est perfectissimum omnium) e é também a atualidade de todas as formas (actualitas omnium rerum, et etiam ipsarum formarum).[7] Em resumo, não há formas sem ser, e mais: a forma (enquanto essência) é o limite do ato de ser de um ente. Neste contexto,o grau de nobreza ontológica de um ente corresponde ao grau de ser que é atualizado nesta ou naquela forma, a qual dá ao ente tais ou quais possibilidades de operar; dá a ele, portanto, species. Assim, que o macaco de Darwin não possa resolver um problema de física quântica ou compreender as teses evolucionistas radica no fato de que a sua forma entis não possui potências intelectivas capazes de assimilar imaterialmente as formas das coisas. Ademais, pressupor que tal símio possa um dia — por meio de um complexo processo evolutivo “natural” — transcender às notas individuantes da matéria, sem ter contudo potências que o habilitem a tanto, é estabelecer um abismal salto na natureza.[8]

.

Vale neste ponto relembrar que, na integração da forma com a matéria, compete à forma fixar a substância de ente num gênero ou numa espécie. Ora, vimos que a matéria não pode ser princípio de especificação porque, se o fosse, todos os entes compostos de matéria e forma (justamente por possuírem matéria em seu composto) seriam de uma mesma espécie, o que é absurdo. E como ato primeiro de organização da matéria, que tem a operação como ato segundo, dele decorrente, a forma define o ser substancial.[9] No caso do homem, por exemplo, a alma intelectiva é a sua forma substancial.

.

Expostas todas estas coisas, observe-se que a matéria é de uma indigência ontológica sem par, visto que o seu grau de participação no ser é ínfimo. Sozinha, ela nada pode fazer, pois é inerte por natureza. E mais: tudo o que tem ser possui certas tendências, aptidões ou inclinações naturais, e neste contexto a materia prima, não podendo ser caracterizada como não-ser em sentido absoluto — pois então seria impotente para assumir quaisquer formas —, é tendência radical às formas. Ou seja: a materia prima é potência para o ser substancial,[10] ou, noutra formulação, ela é princípio absolutamente potencial. Ou seja, ela é informe enquanto princípio potencial, mas isto não implica que na realidade ela não possua formas, como se explicará adiante.

.

Para evitar mal-entendidos posteriores, vale dizer que nos referimos, com a presente definição, à materia prima enquanto potência, mas ainda não abordamos amiúde dois problemas:

.

a) se a sua informação (ou seja, o receber as formas) foi simultânea ou sucessiva ao seu surgimento;

.

b) e se ela foi informada apenas por alguns elementos ou já recebeu formas entitativas prontas.

.

Baste-nos frisar que, como primo principium passivum, ela é potência para o ser; ou seja, é ser potencial.[11]

.

A propósito, observou-se anteriormente que a física não pode dar qualquer resolução teorética satisfatória acerca da natureza da materia prima, pois até mesmo para chegar-se à conclusão de que ela existe é exigida uma abstração de terceiro grau — eminentemente metafísica. Muito menos a biologia ou outras ciências naturais podem fazê-lo. Portanto, ao se indicar que os evolucionismos deificam a matéria, por lhe atribuírem superpotências operativas, está-se fazendo referência imediata à materia secunda, que é potência para o ser acidental, e não à materia prima enquanto potência para o ser, que eles sequer alcançam conceber.

.

Abra-se aqui um breve parêntese para registrar que há, no tomismo contemporâneo, quem sustente a idéia de que a materia prima se identifica de alguma maneira com as formas “elementais”[12] a partir das quais se teriam desenvolvido sucessivamente formas posteriores — tese de que discordamos peremptória e decisivamente. Entre outras cosas porque o Aquinate é claríssimo ao afirmar, em diferentes passagens de sua obra, que o estado informe da matéria (materia prima) não precedeu no tempo à sua informação (materia secunda).

.

Entre outros argumentos, pelos seguintes:[13]

.

  • Se a matéria informe precedeu em duração à matéria informada, isto implicaria dizer que ela existia em ato antes de ser informada. Ora, tal premissa pressupõe a existência de um ser atual sem ato, o que implica contradição (quod implicat contradictionem).

.

  • Toda imperfeição de um efeito provém de imperfeições no agente que o causou. Ora, Deus (cuja existência está provada) é o agente omniperfeito. Logo, nenhuma coisa feita por Ele poderia ser, em sentido absoluto, informe na realidade (o que indicaria certa imperfeição).

.

  • Se o estado informe (materia prima) porventura precedeu no tempo à formação da matéria (materia secunda), seguir-se-ia que, desde o princípio, reinou a confusão entre as coisas materiais, à qual os gregos chamavam caos.

.

Ora, como o tempo surge com a materia prima,[14] daí se segue que, se houver alguma precedência da materia prima com relação àmateria secunda, será quanto à natureza, mas não cronológica.[15]Para a compreensão disto, deve-se saber que Deus está fora do tempo; portanto, opera Ele desde a eternidade ordenando umas coisas a outras de acordo com a Sua Providência sapientíssima, razão pela qual os Seus decretos implicam, sim, precedência ontológica de umas coisas em relação a outras, mas não necessariamente cronológica.[16] Ocorre que de nenhuma dessas premissas se segue que a materia prima tenha possuído desde o início apenas formas “elementais” com potência para evoluir em outras — por meio de uma mescla acidental de elementos, embora se possa conceder que tal hipotética mescla possa realizar-se eficientemente por Deus, de potentia absoluta. Falaremos noutra ocasião acerca do tipo de atualidade que a materia prima possui, mas as características até aqui apontadas já nos servem como fio condutor da presente prova metafísica. Fechemos agora este parêntese relativo a um problema da escola tomista e voltemos ao tema que nos ocupa.

.

materia secunda, justamente por já estar informada, participa do limite de ser e de operação que há no ente. Mas ela, assim como amateria prima, também não possui potências ativas — mas tão-somente potências passivas, que são (reiteremos!) limitadoras das potências ativas radicadas na forma. Assim, desde os entes unicelulares dopool genético ancestral, pressuposto na hipótese da evolução, até o homem, existe sempre uma forma organizadora da matéria, mas também limitada por ela. Somente um ente sem composição de matéria em sua forma poderia não ser limitado pela matéria em seu ser e em seu operar.[17] Em resumo: todo ente composto de matéria e forma possui um conjunto específico de potências ativas e passivas (maior ou menor, não importa).

.

Mas as potências da matéria, exatamente por serem passivas, sofrem em geral a ação de outrem ao modo de corrupção. No melhor dos casos, sofrem-na ao modo de adaptação ao meio — com mudanças acidentais e/ou substanciais que já estavam incluídas na potência daquela matéria informada. Assim, quando por exemplo se produz vinagre de vinho, a forma avinagrada proveniente do vinho é uma transformação devida a uma alteração química num ente natural orgânico, mas não uma “evolução”, em sentido metafísico.

.

A corrupção da forma pela matéria, portanto, não é outra coisa senão a perda de elementos.[18] Mas a contrária não é verdadeira: a aquisição de novos elementos (ou a sua mescla pura e simples) não basta para gerar uma nova espécie com potências operativas superiores na ordem do ser, entre outros fatores em virtude de seu caráter acidental — e o acidente sequer entra na divisão por gênero.[19] Ora, nos entes compostos de matéria e forma, o que não é genérico não pode, por sua vez, ser predicado comoespecífico — pois a espécie é uma subdivisão do gênero. Por isto, uma espécie composta de matéria e forma que não pertença a um gênero é tão possível quanto um círculo quadrado, porque nesta categoria de entes o gênero radica na matéria, e a espécie, na forma.

.

Por estes apontamentos se pode ver que só é possível a hipótese evolutiva se se tem de antemão uma concepção da matéria informada como realidade potencialmente ativa — e não como o que ela de fato é: potência passiva limitadora das operações da forma. Mas conceber isso é absurdo porque até mesmo os elementos constitutivos dos corpos cumprem um papel predispositivo da matéria em relação à forma, contribuindo para a integridade da natureza substancial mista. Nas palavras de Santo Tomás, toda forma substancial requer uma disposição adequada da matéria, sem a qual não pode existir, daí ser a alteração um caminho entre a geração e a corrupção.[20] Mas quem disse que a geração, neste caso, é de uma espécie com potências ativas superiores?

.

Fica, pois, estabelecido que a hipótese da evolução traz consigo a premissa oculta de que a materia secunda tem potências ativas “infinitas”. Potências para mudar populações de organismos ao longo dos tempos — de maneira não-aleatória (seleção natural) ou de maneira aleatória (deriva genética). Seja como for, uma coisa é modificarem-se as características de uma espécie no decorrer dos séculos, ou mesmo chegar a espécie a corromper-se, extinguir-se totalmente; outra, muito distinta, é pressupor que uma espécie supere, de uma maneira ou de outra, as inalienáveis contingências metafísicas em que está arrojada.

.

Ademais, a primeira potência ativa na ordem do ser (radical e infinita) é d’Aquele cuja essência é ser em sentido absoluto. D’Aquele a quem, normalmente, damos o nome de Deus (quam omnes Deum nominant).[21]

.

.
________________________

1- É impossível falar de “evolução” das espécies de forma totalmente dissociada do problema da origem da vida, não obstante sejam questões distintas. Na presente série, o vocábulo “evolução” serve tanto para fazer referência à origem da vida segundo os naturalistas, como para fazer referência à hipótese da evolução propriamente dita.

.

2- Mas não ad infinitum, visto que o infinito numérico é impossível. A menos que usemos o termo “infinito” por meio de uma analogia.

.

3- É claro que há incontáveis explicações naturalistas para a origem da vida na Terra. Mas uma explicação que se pretende universal e não alcança valor de prova apodíctica não é outra coisa senão uma petição de princípios. Ora, um metafísico jamais poderá aceitar que uma ciência se erga inteiramente sobre hipóteses. Neste contexto, quando se começa a procurar entre biólogos, geneticistas, paleontólogos, bioquímicos ou embriologistas quais são as suas explicações sobre a origem da vida, a discrepância entre eles já é um indicador de que não se trata de princípios nem de evidências, mas sim de hipóteses mais ou menos plausíveis de acordo com sua maior ou menor conveniência com a tese defendida. Portanto, petitio principii.

.

4- Tomás de AquinoQuodl. XII, q.5, art.1.

.

5- Tomás de AquinoQuodl. XII, q.5, art.1.

.

6- Reiteramos o que foi dito anteriormentespecies, aqui, é um termo usado em clave metafísica.

.

7- Tomás de AquinoSuma Teológica, I, q.4, art.1., ad.3

.

8- Além, é claro, de agredir um princípio metafísico universalíssimo: o operar radica no ser, e este se atualiza em formas com potências mais ou menos limitadas, visto que, nos entes, a essência não se identifica com o ser em grau máximo. Só em Deus a essência pode ser dita ser em sentido absoluto.

.

9- Referimo-nos aqui, evidentemente, às formas substanciais e não às formas acidentais.

.

10- Tomás de AquinoDe princ.nat., c 1, n.338.

.

11- Definir a materia prima como princípio absolutamente potencial não implica dizer que ela seja o não-ser, mas sim tomá-la como o ser em potência ou potência para o ser — o que a distingue do nada.

.

12- Quase ao modo como alguns entenderam as razões seminais de Santo Agostinho.

.

13- Cf. Tomás de AquinoSuma Teológica, I, q. 66, art. 1, sed contra corpus. Neste ponto convém registrar que o tempo que se iniciou com a matéria informe.

.

14- Tomás de AquinoSuma Teológica, I, q. 66, art. 4.

.

15- Tomás de AquinoSuma Teológica, I, q. 66, art. 4.

.

16- A título de exemplo, é desse tipo a precedência das verdades capitais da teologia mariana. Maria é mãe de Deus e em ordem a isto é que recebeu a plenitude da graça. Há, portanto, precedência ontológica da maternidade divina de Maria em relação a ela ser plena de graça, mas não cronológica, porque em Deus não hácronos.

.

17- Ou seja: os Anjos.

.

18– Cf. Tomás de AquinoIn Met. V lec.4 n.800.

.

19- Tomás de AquinoSuma Teológica, III, q. 80,, a.3, ad.3

.

20-“Omnis forma substantialis propria requirit dispositionem in materia”. Tomás de AquinoDe mix. ele, I, 6.

.

21- Tomás de AquinoSuma Teológica, I, q. 2, art. 3, resp.

Read Full Post »

Read Full Post »

.

(continuação deste texto)
.

Sidney Silveira

.

A anterioridade da metafísica com relação às demais ciências não é evidentemente cronológica, mas sim ontológica e, em certo sentido,topológica, na medida em que os seus princípios servem de ponto comum para as ciências de menor grau de abstração da matéria. Neste contexto, a física, que aborda o ente na perspectiva do movimento, do trânsito da potência ao ato, pode no máximo alcançar em seus cálculos, teses, premissas, hipóteses ou teorias aquilo que Santo Tomás chama demateria secunda, que é potência para o ser acidental e, portanto, raiz da distinção numérica dos entes, mas não da distinção formal — ou seja, por espécies.

.

Por sua vez, a materia prima informe, enquanto potência primeva na ordem dos entes compostos de matéria e forma, está para além das especulações da física porque a sua cognoscibilidade não radica em evidências passíveis de comprovar-se por experimentos empíricos ou suposições oriundas de cálculos matemáticos, visto que materia prima não possui quaisquer distinções numéricas ou qualitativas. A ela, portanto, só se pode chegar por uma abstração de terceiro grau, tipicamente metafísica. E, ainda assim, o conhecimento a seu respeito será por analogia.

.

Muito menos podem a biologia ou a química, cujo grau de abstração da matéria é inferior ao da física e ao das matemáticas, dar efetiva resposta ao problema da origem das espécies animais (ou seja, da dos entes compostos de matéria e forma animada). As suas teorias, neste tópico específico, jamais passarão de suposições com roupagem científica, e a razão disto é simples: o seu objeto de estudo está imerso na matéria.Ora, quanto mais distante está a causa do efeito atual, maior abstração da matéria se requer para poder investigá-la, e este, em definitivo, não é o caso da biologia no tocante à origem das espécies, pois ela na prática lida com causas ordenadas acidentalmente (per accidens), nas quais o efeito comum não depende do influxo atual de todas as causas da série para existir,[1] e não com causas ordenadas essencialmente (per se), nas quais efeito, para ser e manter-se, precisa do influxo atual de todas as causas da série. Neste contexto, convém frisar o seguinte:

.

Uma ciência que investiga apenas causas acidentais não pode, por definição, conhecer a origem da série causal em seu âmbito — ou seja: a causa primeira.

.

Não por outra razão, o ramo da biologia consagrado no último quartel do século XX como “biologia evolutiva” padece de uma radical incongruência entre objeto e meios, e, na prática, quando se vêem os seus propugnadores defenderem alguma tese, em geral repleta de dados empíricos agrupados, salta aos olhos que se trata de uma mal-disfarçada espécie de metafísica evolutiva, mas sem o menor rigor demonstrativo da verdadeira metafísica, que parte de evidências ancoradas nos primeiros princípios para chegar a conclusões necessárias.

.

A propósito, a perda do elevado rigor do método metafísico escolástico explica, em parte,[2] como pôde uma ciência cujo objeto formal está imerso na matéria dar pareceres, formular hipóteses ou desenvolver teses relativas à origem das espécies, estando a sua própria definição de “espécie radicada na matéria informada (e, portanto, materia secunda). Não se trata, é óbvio, de desqualificar a importantíssima ciência biológica, e sim de apontar o quanto ela transcende indevidamente o seu objeto ao formular uma teoria — em verdade, uma hipótese — para a qual não possui sequer instrumentos científicos e filosóficos apropriados.

.

Ora, toda e qualquer ciência supõe que o mundo é inteligível e que é possível conhecer essa inteligibilidade. Daí que, em qualquer ciência, haja uma pergunta prévia — a ser respondida ao se lhe demarcar o objeto — acerca da demonstrabilidade de suas teses centrais, a qual precisa comprovar-se com todo o rigor. Mas tal pergunta não pode ser respondida senão recorrendo a princípiosanteriores aos da própria ciência particular. Sem isto, por mais que a observação e o estudo acurado da realidade levem a conclusões topicamente acertadas, eles naufragarão de forma rotunda no momento em que se tentar dar a essas conclusões particulares um caráter de princípio válido universalmente.

.

Assim, mesmo que a hipótese da evolução se comprovasse apodicticamente — o que, ao final, veremos ser impossível, dada a estrutura da ordem do ser —, isto não lhe autorizaria a concluir, por exemplo, que as espécies animais não foram criadas — entre outras coisas porque o problema da evolução sequer é o mesmo do da criação. Somente uma ignorância suma acerca do que seja propriamente oproblema filosófico da criação é capaz de fazer alguém colocá-lo num mesmo plano da hipótese da evolução das espécies. Esta, de tão imersa no materialismo, sequer vislumbra os conceitos de causa final e causa exemplar, e quando o faz é de forma capenga.

.

É, portanto, absolutamente falsa a dicotomia criação/evolução. A primeira trata de uma questão de cariz metafísico, pois radica no ser; a segunda soçobra no materialismo. E, a respeito do materialista, bem dizia Chesterton com o seu humor típico:

.

“É o sujeito que faz uso do espírito para dizer que só existe a matéria”.

.

(continua)

.

__________________________


1- Por exemplo: dando-se a evolução como certa (a mero título de procedimento dialético), é evidente que a existência atual da espécie Y não depende da existênciaatual de todas as espécies anteriores na série que culminou nela.

.

2- Das razões de ordem ideológica trataremos noutra ocasião.


Read Full Post »

.

.

CARTA ENCÍCLICA
DO SUMO PONTÍFICE
PIO X
PASCENDI DOMINICI GREGIS
SOBRE AS DOUTRINAS MODERNISTAS
.
Aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos,
Bispos e outros Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica
Veneráveis Irmãos, saúde e benção apostólica
.
.

INTRODUÇÃO

.

A missão, que nos foi divinamente confiada, de apascentar o rebanho do Senhor, entre os principais deveres impostos por Cristo, conta o de guardar com todo o desvelo o depósito da fé transmitida aos Santos, repudiando as profanas novidades de palavras e as oposições de uma ciência enganadora. E, na verdade, esta providência do Supremo Pastor foi em todo o tempo necessária à Igreja Católica; porquanto, devido ao inimigo do gênero humano nunca faltaram homens de perverso dizer (At 20,30), vaníloquos e sedutores (Tit 1,10), que caídos eles em erro arrastam os mais ao erro (2 Tim 3,13). Contudo, há mister confessar que nestes últimos tempos cresceu sobremaneira o número dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifícios de todo ardilosos, se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo. Por isto já não Nos é lícito calar para não parecer faltarmos ao Nosso santíssimo dever, e para que se Nos não acuse de descuido de nossa obrigação, a benignidade de que, na esperança de melhores disposições, até agora usamos.

E o que exige que sem demora falemos, é antes de tudo que os fautores do êrro já não devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, se ocultam no próprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos.

Aludimos, Veneráveis Irmãos, a muitos membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do clero que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que há de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor que, com audácia sacrílega, rebaixam à craveira de um puro e simples homem.

Pasmem, embora homens de tal casta, que Nós os ponhamos no número dos inimigos da Igreja; não poderá porém, pasmar com razão quem quer que, postas de lado as intenções de que só Deus é juiz, se aplique a examinar as doutrinas e o modo de falar e de agir de que lançam eles mão. Não se afastará, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, não já fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e por isto, é por assim dizer nas próprias veias e entranhas dela que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Além de que, não sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas raízes que são a Fé e suas fibras mais vitais, é que  meneiam eles o machado.

Batida  pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vírus por toda a árvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade católica, nenhuma verdade há que não intentem contaminar. E ainda vão mais longe; pois pondo em obra o sem número de seus maléficos ardis, não há quem os vença em manhas e astúcias:  porquanto, fazem promiscuamente o papel ora de racionalistas, ora de católicos, e isto com tal dissimulação que arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto; e sendo ousados como os que mais o são, não há conseqüências de que se amedrontem e que não aceitem com obstinação e sem escrúpulos. Acrescente-se-lhes ainda, coisa aptíssima para enganar o ânimo alheio, uma operosidade incansável, uma assídua e vigorosa aplicação a todo o ramo de estudos e, o mais das vezes, a fama de uma vida austera. Finalmente, e é isto o que faz desvanecer toda esperança de cura, pelas suas mesmas doutrinas são formadas numa escola de desprezo a toda autoridade e a todo freio; e, confiados em uma consciência falsa, persuadem-se de que é amor de verdade o que não passa de soberba e obstinação. Na verdade, por algum tempo esperamos reconduzi-los a melhores sentimentos e, para êste fim, a princípio os tratamos com brandura, em seguida com severidade e, finalmente, bem a contragosto, servimo-nos de penas públicas.

Mas vós bem sabeis, Veneráveis Irmãos, como tudo foi debalde; pareceram por momento curvar a fronte, para depois reerguê-la com maior altivez. Poderíamos talvez ainda deixar isto desapercebido se tratasse somente deles; trata-se porém das garantias do nome católico.

Há, pois, mister quebrar o silêncio, que ora seria culpável, para tornar bem conhecidas à Igreja esses homens tão mal disfarçados.

E visto que os modernistas (tal é o nome com que vulgarmente e com razão são chamados) com astuciosíssimo engano costumam apresentar suas doutrinas não coordenadas e juntas como um todo, mas dispersas e como separadas umas das outras, afim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato estão firmes e constantes, convém, Veneráveis Irmãos, primeiro exibirmos aqui as mesmas doutrinas em um só quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um só corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remédios para debelar-lhes os efeitos perniciosos.

.

1ª PARTE
.
EXPOSIÇÃO DO SISTEMA E SUA DIVISÃO
.
E para procedermos com ordem em tão abstrusa matéria, convém notar que cada modernista representa e quase compendia em si muitos personagens, isto é, o de filósofo, o de crente, o de teólogo, o de historiador, o de crítico, o de apologista, o de reformador; os quais personagens todos, um por um, cumpre bem os distinga todo aquele que quiser devidamente conhecer o seu sistema e penetrar nos princípios e nas conseqüências das suas doutrinas.
.
O modernista filósofo
.
Começando pelo filósofo, cumpre saber que todo o fundamento da filosofia religiosa dos modernistas assenta sobre a doutrina, que chamamos agnosticismo. Por força desta doutrina, a razão humana fica inteiramente reduzida à consideração dos fenômenos, isto é,  só das coisas perceptíveis e pelo modo como são perceptíveis; nem tem ela direito nem aptidão para transpor estes limites. E daí segue que não é dado à razão elevar-se a Deus, nem conceder-lhe a existência, nem mesmo por intermédio dos seres visíveis. Segue-se, portanto, que Deus não pode ser de maneira alguma objeto direto da ciência; e também com relação à história, não pode servir de assunto histórico. Postas estas premissas, todos percebem com clareza qual não deve ser a sorte da teologia natural, dos motivos de credibilidade, da revelação externa. Tudo isto os modernistas rejeitam e atribuem ao intelectualismo, que chamam ridículo sistema, morto já há muito tempo. Nem os abala ter a Igreja condenado formalmente erros tão monstruosos. Pois que, de fato, o Concílio Vaticano I assim definiu;

Se alguém disser que o Deus, único e verdadeiro, criador e Senhor nosso, por meio das coisas criadas não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, seja anátema (De Revel. Cân. 1);   e também:

Se alguém disser que não é possível ou não convém que, por divina revelação, seja o homem instruído acerca de Deus e do culto que lhe é devido, seja anátema (Ibid. Cân. 2); e, finalmente:

Se alguém disser que a divina revelação não pode tornar-se crível por manifestações externas, e que por isto os homens não devem ser movidos à fé senão exclusivamente pela interna experiência ou inspiração privada, seja anátema (De Fide, Cân. 3).

De que modo porém os modernistas passam do agnosticismo, que é puro estado de ignorância, para o ateísmo científico e histórico que, ao contrário, é estado de positiva negação, e por isso, com que lógica, do não saber se Deus interveio ou não na história do gênero humano, passam a tudo explicar na mesma história, pondo Deus de parte, como se na realidade não tivesse intervindo, quem  o souber  que o explique.

Há entretanto para eles uma coisa fixa e determinada, que é o dever ser atéia a ciência a par da história, em cujas raias não haja lugar senão para os fenômenos, repelido de uma vez, Deus e tudo o que é divino. E dessa absurdíssima doutrina ver-se-á, dentro em pouco, que coisas seremos obrigados a deduzir a respeito da augusta Pessoa de Cristo, dos mistérios e da sua vida e morte, da sua ressurreição e ascensão ao céu.

Este agnosticismo, porém, na doutrina dos modernistas, não constitui senão a parte negativa; a positiva acha-se toda na imanência vital.

Eis aqui o modo como eles passam de uma parte a outra. A religião, quer a natural quer a sobrenatural, é mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruída a teologia natural, impedido o acesso à revelação ao rejeitar os motivos de credibilidade, é claro que se não pode procurar fora do homem essa explicação. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e visto que a religião não é de fato senão uma forma da vida, a sua explicação se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princípio da imanência religiosa. Demais, a primeira moção, por assim dizer, de todo fenômeno vital, deve sempre ser atribuída a uma necessidade;  os primórdios, porém, falando mais especialmente da vida, devem ser atribuídos a um movimento do coração, que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade.

Esta necessidade das causas divinas não se fazendo sentir no homem senão em certas e especiais circunstâncias, não pode de per si pertencer ao âmbito da consciência; oculta-se (porém), primeiro abaixo da consciência, ou, como dizem com vocábulo tirado da filosofia moderna, na subconsciência, onde a sua raiz fica também oculta e incompreensível. Se alguém, contudo lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, torna-se religião, será esta a resposta dos modernistas: a ciência e a história, dizem eles, acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que é o mundo visível; outro interno, que é a consciência. Chegados a um ou outro destes dois termos, não se pode ir mais adiante; além destes dois limites acha-se o incognoscível. Diante deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visíveis, seja que ele se ache oculto na subconsciência do homem, a necessidade de um quê divino, sem nenhum ato prévio da inteligência, como o quer o fideísmo, gera no ânimo já inclinado um certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa maneira, une o homem com Deus. É precisamente a este sentimento que os modernistas dão o nome de fé e tem-no como princípio de religião.

Nem acaba aí o filosofar, ou melhor, o desatinar desses homens. Pois, nesse mesmo sentimento eles não encontram unicamente a fé; mas, com a fé e na mesma fé, do modo como a entendem, sustentam que também se acha a revelação. E  que é o que mais se pode exigir para a revelação? Já não será talvez revelação, ou pelo menos princípio de revelação, aquele sentimento religioso, que se manifesta na consciência? Ou também o mesmo Deus a manifestar-se às almas, embora um tanto confusamente, no mesmo sentimento religioso? eles ainda acrescentam mais, dizendo que, sendo Deus ao mesmo tempo objeto e causa da fé, essa revelação é de Deus como objeto e também provém de Deus como causa; isto é, tem a Deus ao mesmo tempo como revelante e revelado. Segue-se daqui, Veneráveis Irmãos, a absurda afirmação dos modernistas, segundo a qual toda a religião, sob diverso aspecto, é igualmente natural e sobrenatural. Segue-se daqui a promíscua significação que dão aos termos consciência e revelação. Daqui a lei que dá a consciência religiosa, a par com a revelação, como regra universal, à qual todos se devem sujeitar, inclusive a própria autoridade da Igreja, seja quando ensina seja quando legisla em matéria de culto ou disciplina.

Entretanto, em todo este processo donde, segundo os modernistas, resultam a fé e a revelação, deve atender-se principalmente a uma coisa de não pequena importância, pelas conseqüências histórico-críticas, que daí fazem derivar. Aquele Incognoscível, de que falam, não se apresenta à fé como que nu e isolado; mas, ao contrário, intimamente unido a algum fenômeno que, embora pertença ao campo da ciência ou da história, assim mesmo, de certo modo, transpõe os seus limites.

Este fenômeno poderá ser um fato qualquer da natureza, contendo em si algum quê de misterioso, ou poderá também ser um homem, cujo talento, cujos atos, cujas palavras parecem nada ter de comum com as leis ordinárias da história. A fé, pois, atraída pelo Incognoscível unido ao fenômeno, apodera-se de todo o mesmo fenômeno e de certo modo o penetra da sua vida. Donde se seguem duas coisas.

A primeira é uma certa transfiguração do fenômeno, por uma espécie de elevação das suas próprias condições, que o torna mais apto, qual matéria, para receber o divino.

A segunda é uma certa desfiguração, resultante de que, tendo a fé subtraído ao fenômeno os seus adjuntos de tempo e de lugar, facilmente lhe atribui aquilo que em realidade não tem; o que particularmente se dá em se tratando de fenômenos de antigas datas, e isto tanto mais quanto mais remotas são elas. Destes dois pressupostos, os modernistas deduzem outros tantos cânones que unidos a um terceiro já deduzido de agnosticismos, constituem a base da crítica histórica. Esclareçamos o fato com um exemplo tirado da pessoa de Jesus Cristo. Na pessoa de Cristo, dizem, a ciência e a história não acham  mais do que um homem. Portanto, em virtude do primeiro cânon deduzido do agnosticismo, da história dessa pessoa se deve riscar tudo o que sabe de divino. Ainda mais, por força do segundo cânon, a pessoa histórica de Jesus Cristo foi transfigurado pela fé; logo, convém despojá-la de tudo o que a eleva acima das condições históricas.

Finalmente, a mesma foi desfigurada pela fé, em virtude do terceiro cânon; logo, se devem remover dela as falas, as ações, tudo enfim que não corresponde ao seu caráter, condição e educação, lugar e tempo em que viveu. É em verdade estranho tal modo de raciocinar; contudo é esta a crítica dos modernistas.

O sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o gérmen de toda a religião e a razão de tudo o que tem havido e haverá ainda em qualquer religião.

Este  mesmo sentimento rudimentar e quase informe a princípio, pouco a pouco, sob o influxo do misterioso princípio que lhe deu origem, tem-se ido aperfeiçoando, a par com o progresso da vida humana, da qual, como já ficou dito, é uma forma.

Temos, pois, assim a origem de toda a religião, até mesmo da sobrenatural; e estas não passam de meras explicações do sentimento religioso. Nem se pense que a católica é excetuada; está no mesmo nível das outras, pois não nasceu senão pelo processo de imanência vital na consciência de Cristo, homem de natureza extremamente privilegiada, como outro não houve nem haverá. Fica-se pasmo em se ouvindo afirmações tão audaciosas e sacrílegas! Entretanto, Veneráveis Irmãos, não é esta linguagem usada temerariamente só pelos incrédulos. Homens católicos, até muitos sacerdotes, afirmaram estas coisas publicamente, e com delírios tais se vangloriam de reformar a Igreja.

Já não se trata aqui do velho erro, que à natureza humana atribuía um quase direito à ordem sobrenatural.

Vai-se muito mais longe ainda; chega-se até a afirmar que a nossa santíssima religião, no homem Jesus Cristo assim como em nós, é fruto inteiramente espontâneo da natureza. Nada pode vir mais a propósito para dar cabo de toda a ordem sobrenatural. Por isto com suma razão o Concílio Vaticano I definiu: Se alguém disser que o homem não pode ser por Deus elevado a conhecimento e perfeição, que supere as forças da natureza, mas por si mesmo pode e deve, com incessante progresso, chegar finalmente a possuir toda a verdade e todo o bem, seja anátema (De Revel Cân. 3).

Até agora porém, Veneráveis Irmãos, não lhes vimos dar nenhum lugar à ação da inteligência. Contudo, segundo as doutrinas dos modernistas, tem ela também a sua parte no ato de fé. Vejamos como.

Naquele sentimento, dizem, de que tantas vezes já se tem falado, precisamente porque é sentimento e não é conhecimento, Deus de fato se apresenta ao homem, mas de modo tão confuso que em nada ou mal se distingue desse mesmo crente. Faz-se, pois, mister lançar algum raio de luz sobre aquele sentimento, de maneira que Deus se apresente fora e distinto do crente. Ora, isto é obra da inteligência, à qual somente cabe o pensar e o analisar, e por meio da qual o homem a princípio traduz em representações mentais os fenômenos de vida, que nele aparecem, e depois os manifesta com expressões verbais.

Segue-se daí esta vulgar expressão dos modernistas: o homem religioso deve pensar à sua fé. – Sobrevindo, pois, a inteligência ao sentimento, inclina-se sobre este, elabora-o  todo, a modo de um pintor que ilumina e reanima os traços de um quadro estragado pelo tempo. O paralelo é de um dos mestres do modernismo. Neste trabalho a inteligência procede de dois modos: primeiro, por um ato natural e espontâneo, exprimindo a sua noção por uma proposição simples e vulgar; depois, com reflexão e penetração mais íntima, ou, como dizem, elaborando o seu pensamento, exprime o que pensou com proposições secundárias, se forem finalmente sancionadas pelo supremo magistério da Igreja, constituirão o dogma.

Assim pois, na doutrina dos modernistas, chegamos a um dos pontos mais importantes, que é a origem e mesmo a natureza do dogma. A origem do dogma põem-na eles, pois, naquelas primitivas fórmulas simples que, debaixo de certo aspecto, devem considerar-se como essenciais à fé, pois que a revelação, para ser verdadeiramente tal, requer uma clara aparição de Deus na consciência. O mesmo dogma porém, ao que parece, é propriamente constituído pelas fórmulas secundárias. Mas, para bem se  conhecer a natureza do dogma, é preciso primeiro indagar que relações há entre as fórmulas religiosas e o sentimento religioso.

Não haverá dificuldade em o compreender para quem já tiver como certo que estas fórmulas não têm outro fim, senão o de facilitarem ao crente um modo de dar razão da própria fé. De sorte que essas fórmulas são como que umas intermediárias entre o crente e a sua fé; com relação à fé, são expressões inadequadas do seu objeto e pelos modernistas se denominam símbolos; com relação ao crente, reduzem-se a meros instrumentos.

Não é portanto de nenhum modo lícito afirmar que elas exprimem uma verdade absoluta; portanto, como símbolos, são meras imagens de verdade, e portanto devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, são veículos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso. E, pois que este sentimento, tem por objeto o absoluto, apresenta infinitos aspectos, dos quais pode aparecer, hoje um, amanhã outro e da mesma sorte como aquele que crê pode  passar por essas e aquelas condições, segue-se que também as fórmulas, que chamamos dogmas, devem estar sujeitas a iguais vicissitudes, e por isso também a variarem.

Assim pois, temos o caminho aberto à íntima evolução do dogma. Eis aí um acervo de sofismas, que subvertem e destroem toda a religião!

Ousadamente afirmam os modernistas, e isto mesmo se conclui das suas doutrinas, que os dogmas não somente podem, mas positivamente devem evoluir e mudar-se. De fato, entre os pontos principais da sua doutrina, contam também este, que deduzem da imanência vital: as fórmulas religiosas, para que realmente sejam tais e não só meras especulações da inteligência, precisam ser vitais e viver da mesma vida do sentimento religioso. Daí porém não se deve concluir que essas fórmulas, particularmente se forem só imaginárias, sejam  formadas a bem desse mesmo sentimento religioso; porquanto nada importa a sua origem, nem o seu número, nem a sua qualidade; segue-se, porém, que o sentimento religioso, embora modificando-as, se houver mister, as torna vitais e fá-las viver de sua própria vida. Em outros termos, é preciso a fórmula primitiva seja aceita e confirmada pelo coração, e que a subseqüente elaboração das fórmulas secundárias seja feita sob a direção do coração. Procede daí que tais fórmulas para serem vitais, hão de ser e ficar adaptadas tanto à fé quanto ao crente. Pelo que, se por qualquer motivo cessar essa adaptação, perdem sua primitiva significação e devem ser mudadas. Ora, sendo assim mutável o valor e a sorte das fórmulas dogmáticas, não é de admirar que os modernistas tanto as escarneçam e desprezem, e que por conseguinte só reconheçam e exaltem o sentimento e a vida religiosa. Por isto, com o maior atrevimento criticam a Igreja acusando-a de caminhar fora da estrada, e de não saber distinguir entre o sentido material das fórmulas e sua significação religiosa e moral, e ainda mais, agarrando-se obstinadamente, mas em vão, a fórmulas falhas de sentido, de deixar a própria religião rolar no abismo. Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, são esses homens que inchados de orgulhosa ciência, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuíno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, não procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostólicas tradições, apegam-se a doutrinas ocas, fúteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultíssimos julgam fortalecer e sustentar  a verdade (Gregório XVI, Encíclica “Singulari Nos” 7 Jul. 1834).

Assim, Veneráveis Irmãos, pensa o modernista como filósofo.
.
O modernista crente
.
Agora, passando a considerá-lo como crente, se quisermos conhecer de que modo, no modernismo, o crente difere do filósofo, convém observar que, embora o filósofo reconheça por objeto da fé a realidade divina, contudo esta realidade não se acha noutra parte senão na alma do crente, como objeto de sentimento e afirmação; porém, se ela em si mesma existe ou não fora daquele sentimento e daquela afirmação, isto não importa ao filósofo. Se, porém, procurarmos saber que fundamento tem esta asserção do crente, respondem os modernistas: é a experiência individual. Com esta afirmação, enquanto na verdade discordam dos racionalistas, caem na opinião dos protestantes e dos pseudo-místicos.

Eis como eles o declaram: no sentimento religioso deve reconhecer-se uma espécie de intuição do coração, que pôs o homem em contato imediato com a própria realidade de Deus e lhe infunde tal persuasão da existência dele e da sua ação, tanto dentro como fora do homem, que excede a força de qualquer persuasão, que a ciência possa adquirir. Afirmam, portanto, uma verdadeira experiência, capaz de vencer qualquer experiência racional; e se esta for negada por alguém, como pelos racionalistas, dizem que isto sucede porque estes não querem pôr-se nas condições morais que são necessárias para consegui-la. Ora, tal experiência é a que faz própria e verdadeiramente crente a todo aquele que a conseguir. Quanto vai dessa à doutrina católica! Já vimos essas idéias condenadas pelo Concílio Vaticano I. Veremos ainda como, com semelhantes teorias, unidos a outros erros já mencionados, se abre caminho para o ateísmo. Cumpre, entretanto, desde já, notar que, posta esta doutrina da experiência unida à outra do simbolismo, toda religião, não executada sequer a dos idólatras, deve ser tida por verdadeira. E na verdade, porque não fora possível o se acharem tais experiências em qualquer religião? E não poucos presumem que de fato já se as tenha encontrado. Com que direito, pois, os modernistas negarão a verdade a uma experiência afirmada, por exemplo, por um maometano? Com que direito reivindicarão experiências verdadeiras só para os católicos? E os modernistas de fato não negam, ao contrário, concedem, uns confusa e outros manifestamente, que todas as religiões são verdadeiras. É claro, porém, que eles não poderiam pensar de outro modo.

Em verdade, postos os seus princípios, em que se poderiam porventura fundar para atribuir falsidade a  uma religião qualquer? Sem dúvida seria por algum destes dois princípios: ou por falsidade do sentimento religioso, ou por falsidade da fórmula proferida pela inteligência. Ora, o sentimento religioso, ainda que às vezes menos perfeito, é sempre o mesmo; e a fórmula intelectual para ser verdadeira basta que corresponda ao sentimento religioso e ao crente, seja qual for a força do engenho deste. Quando muito, no conflito entre as diversas religiões, os modernistas poderão sustentar que a católica tem mais verdade, porque é mais viva, e merece mais o título de cristã, porque mais completamente corresponde às origens do cristianismo. A ninguém pode parecer absurdo que estas conseqüências todas dimanem daquelas premissas. Absurdíssimo é, porém, que católicos e sacerdotes que, como preferimos crer, têm horror a tão monstruosas afirmações, se ponham quase em condição de admiti-las. Pois, tais são os louvores que tributam aos mestres desses erros, tais as homenagens que publicamente lhes prestam, que facilmente dão a entender que as suas honras não atingem as pessoas, que talvez de todo não desmereçam, antes, porém, aos erros, que elas professam às claras, e entre o povo procuram com todos os esforços propagar.

Há ainda outra face, além da que já vimos, nesta doutrina da experiência, de todo contrária à verdade católica. Pois, ela se estende e se aplica à tradição que a Igreja tem sustentado até hoje, e a destrói. E com efeito, os modernistas concebem a tradição como uma comunicação da experiência original, feita a outrem pela pregação, mediante a fórmula intelectual.

Por isto a esta fórmula, além do valor representativo, atribuem certa eficácia de sugestão, tanto naquele que crê, para despertar o sentimento religioso quiçá entorpecido, e restaurar a experiência de há muito adquirida, como naqueles que ainda não crêem, para despertar neles, pela primeira vez, o sentimento religioso e produzir a experiência. Por esta maneira a experiência religiosa abundantemente se propaga entre os povos: não só entre os existentes, pela pregação, mas também entre os vindouros, quer pelo livro, quer pela transmissão oral de uns a outros. Esta comunicação da experiência às vezes lança raízes e vinga; outras vezes se esteriliza logo e morre. O viver para os modernistas é prova de verdade; e a razão disto é que verdade e vida para eles são uma e a mesma coisa. E daqui, mais uma vez, se infere que todas as religiões existentes são verdadeiras, do contrário já não existiriam.

Levadas as coisas até este ponto, Veneráveis Irmãos, já temos muito para bem conhecermos a ordem que os modernistas estabelecem entre a fé e a ciência; notando-se que neste nome de ciência incluem também a história. Antes de tudo se deve ter por certo que o objeto de uma é de todo estranho e separado do objeto de outra. Porquanto a fé unicamente se ocupa de uma coisa, que a ciência declara ser para si incognoscível. Segue-se, pois, que é diversa a tarefa de cada uma; a ciência acha-se toda na realidade dos fenômenos, onde a fé por maneira alguma penetra; a fé, pelo contrário, ocupa-se da realidade divina, que de todo é desconhecido à ciência. Conclui-se, portanto, que nunca poderá haver conflito entre a fé e a ciência; porque, se cada uma se restringir a seu campo, nunca poderão encontrar-se, nem portanto contradizer-se. Se, entretanto, alguém objetar que no mundo visível há coisas que também pertencem à fé, como a vida humana de Cristo, responderão os modernistas negando.  E a razão é que, conquanto tais coisas estejam no número dos fenômenos, todavia, enquanto viveram pela fé e, no modo já indicado, foram pela mesma transfiguradas e desfiguradas, foram subtraídas ao mundo sensível e passaram a ser matéria do divino. Por este motivo, se ainda se quisesse saber se Cristo fez verdadeiros milagres e profecias, se verdadeiramente ressuscitou e subiu ao céu, a ciência agnóstica o negará e a fé o afirmará; e nem assim haverá luta entre as duas. Nega-o o filósofo como filósofo, falando a filósofos e considerando Cristo na sua realidade histórica; afirma-o o crente, como crente, falando a crentes e considerando a vida de Cristo a reviver pela fé e na fé.

De muito se enganaria quem, postas estas teorias, se julgasse autorizado a crer que a ciência e a fé são independentes uma da outra. Por parte da ciência, essa independência está fora de dúvida; mas, já não é assim por parte da fé, que não por um só, mas por três motivos, se deve submeter à ciência. Efetivamente é de notar, em primeiro lugar, que em todo  fato religioso, tirada a realidade divina e a experiência que o crente tem da mesma, tudo o mais, e principalmente as fórmulas religiosas, não sai do campo dos fenômenos; cai portanto sob o domínio da ciência. Afaste-se embora do mundo o crente, se lhe aprouver; mas, enquanto se achar no mundo, nunca poderá se furtar, queira-o ou não, às leis, às vistas, ao juízo da ciência e da história. Ainda mais, embora se tenha dito que Deus só é objeto da fé, isto entretanto não se deve entender senão da realidade divina e não da idéia de Deus.

Esta é dependente da ciência; a qual, enquanto se deleita na ordem lógica, também se eleva até o absoluto e o ideal. É, pois, direito da filosofia ou da ciência indagar da idéia de Deus, dirigi-la na sua evolução, corrigi-la quando se lhe misturar qualquer elemento estranho. Fundados nisto é que os modernistas sustentam que a evolução religiosa deve ser coordenada com a evolução moral e intelectual; isto é, como ensina um dos seus mestres, deve ser-lhes subordinada. Deve-se enfim observar que o homem, em si, não suporta um dualismo, por conseguinte o crente experimenta em si mesmo uma íntima necessidade de harmonizar de tal sorte a fé com a ciência, que aquela não se oponha à idéia geral que a ciência forma do universo. Conclui-se, pois, que a ciência é de todo independente da fé; esta, ao contrário, embora se declame que é estranha à ciência, deve-lhe submissão. Todas estas coisas, Veneráveis Irmãos, são diametralmente contrárias ao que o Nosso antecessor Pio IX ensinava, dizendo (Brev. ad Ep. Wratislaw. 15 jun. 1857): Em matéria de religião, é dever da filosofia não dominar, mas servir, não prescrever o que se deve crer, mas aceitá-lo com razoável respeito, não perscrutar os profundos dos mistérios de Deus, mas piedosa e humildemente venerá-los. Os modernistas entendem isto às avessas: há, pois, sobeja razão de aplicar-se-lhes o que outro nosso predecessor, Gregório IX, escrevia de alguns teólogos do seu tempo: Alguns dentre vós, excessivamente cheios de espírito de vaidade, com profanas novidades se esforçam por transpor os limites traçados pelos Santos Padres, curvando à doutrina filosófica dos racionalistas a interpretação das páginas celestes, não proveito dos ouvintes, mas para dar mostras do saber…E estes, arrastados por doutrinas diversas, transformam em cauda a cabeça e obrigam a rainha a servir à escrava (Ep. ad  Magistros theol., Paris, julho de 1223).

Estas coisas tornar-se-ão ainda mais claras, tendo-se em vista o procedimento dos modernistas, de todo conforme com o que ensinam. Nos seus escritos e discursos parecem, não raro, sustentar ora uma ora outra doutrina, de modo a facilmente parecerem vagos e incertos. Fazem-no, porém, de caso pensado; isto é, baseados na opinião que sustentam, da mútua separação entre a fé e a ciência. É por isto que nos seus livros muitas coisas se encontram das aceitas pelo católicos; mas, ao virar a página, outras se vêem que pareceriam ditadas por um racionalista. Escrevendo, pois, história, nenhuma menção fazem da divindade de Cristo; ao passo que, pregando nas igrejas, com firmeza a professam. Da mesma sorte, na história não fazem o menor caso dos Padres nem dos Concílios; nas instruções catequéticas, porém, citam-nos com respeito. Distinguem, portanto, outrossim a exegese teológica e pastoral da exegese científica histórica. Mais ainda: fundados no princípio que a ciência em nada depende da fé, quando tratam de filosofia, de história, de crítica, não sentindo horror de pisar nas pegadas de Lutero (cf. Prop. 29 conden. por Leão X, Bulla “Exurge Domine” de 16 de maio de 1520): Temos aberta a estrada para enfrentar a autoridade dos Concílios e para contradizer à vontade as suas deliberações, e julgar os seus decretos e manifestar às claras tudo o que nos parece verdade, seja embora aprovado ou condenado por qualquer Concílio), ostentam certo desprezo das doutrinas católicas, dos Santos Padres, dos concílios ecumênicos, dos magistérios eclesiásticos; e se forem por isto repreendidos, queixam-se de que se lhes tolhe a liberdade. Finalmente, professando que a fé há de sujeitar-se à ciência, continuamente e às claras criticam a Igreja, porque irredutivelmente se recusa a acomodar os seus dogmas às opiniões da filosofia, e eles, por sua vez, posta de parte a velha teologia, empenham-se por divulgar uma nova, toda amoldada aos desvarios dos filósofos.
.
O modernista teólogo
.
Já é tempo, Veneráveis Irmãos, de passarmos a considerar os modernistas no campo teológico. Empenho árduo este, mas em poucas palavras diremos tudo. O fim a alcançar é a conciliação da fé com a ciência, ficando porém sempre incólume a primazia da ciência sobre a fé. Neste assunto o teólogo modernista se utiliza dos mesmos princípios da imanência  e do simbolismo. Eis com que rapidez ele executa a sua tarefa: diz o filósofo que o princípio da fé é imanente; acrescenta o crente que esse princípio é Deus; conclui pois o teólogo: logo Deus é imanente no homem. Disto se conclui a imanência teológica. Outra adaptação: o filósofo tem por certo de que as representações da fé são puramente simbólicas; o crente afirma que o objeto da fé é Deus em si mesmo; conclui pois o teólogo: logo as representações da realidade divina são simbólicas. Segue-se daqui o simbolismo teológico. São erros enormes deveras; e quanto sejam perniciosos vamos ver de um modo luminoso, observando-lhes as conseqüências. E para falarmos desde já do simbolismo, como os símbolos são: símbolos com relação ao objeto, e instrumentos com relação ao crente, dizem os modernistas que o crente, antes de tudo, não deve apegar-se demais à fórmula, que deve servir-lhe só no intuito de unir-se com a verdade absoluta, que a fórmula ao mesmo tempo revela e esconde; isto é, esforça-se por exprimi-la, sem jamais o conseguir. Querem, em segundo lugar, que o crente use de tais fórmulas tanto quanto lhe forem úteis, porquanto elas são dadas para auxílio e não para embaraço; salvo porém o respeito que, por motivos sociais, se deve às fórmulas pelo público magistério julgadas aptas para exprimir a consciência comum, e enquanto o mesmo magistério não julgar de outro modo.

Quanto à imanência, é na verdade difícil indicar o que pensam os modernistas, pois há entre eles diversas opiniões. Uns fazem-na consistir em que Deus, operando no homem, está mais intimamente no homem do que o próprio homem em si mesmo; e esta afirmação sendo bem entendida, não merece censura. Pretendem outros que a ação divina é uma e a mesma com a ação da natureza, como a causa primeira com a causa segunda; e isto já destruiria a ordem sobrenatural. Outros explicam-na, enfim, em um sentido que tem ressaibos de panteísmo; e estes, a falar a verdade, são mais coerentes com o restante das sua doutrinas.

A este postulado da imanência ainda outro se acrescenta, que pode ser chamado da permanência divina; estes entre si diferem do mesmo modo como a experiência privada difere da experiência transmitida por tradição. Esclareçamos isto com um exemplo, e seja ele tirado da Igreja e dos Sacramentos. Não se pode crer, dizem, que a Igreja e os Sacramentos foram instituídos pelo próprio Cristo. Isto não é permitido pelo agnosticismo, que em Cristo não vê mais do que um homem, cuja consciência religiosa, como  a de qualquer outro homem, pouco a pouco se formou; não o permite a lei da imanência, que não admite, como eles se exprimem, externas aplicações; proíbe-o também a lei da evolução, que para o desenvolvimento dos germens requer tempo e uma certa série de circunstâncias; proíbe-o enfim a história, que mostra que tal foi realmente o curso dos acontecimentos. Todavia deve admitir-se que a Igreja e os Sacramentos foram mediatamente instituídos por Cristo. Mas de que modo? Todas as consciências cristãs, é assim que eles o explicam, estavam virtualmente incluídas na consciência de Cristo, como a planta na semente. Ora, como os rebentos vivem a vida da semente, assim também afirmar-se deve que todos os cristãos vivem a vida de Cristo. Mas a vida de Cristo, segundo a fé, é divina; logo também a vida dos cristãos. Se pois esta vida, no correr dos séculos, deu origem à Igreja e aos Sacramentos, com toda a razão se poderá dizer que tal origem procede de Cristo e é divina. Pelo mesmo processo provam que as Escrituras e os dogmas são divinos. E com isto se conclui toda a teologia dos modernistas. É bem pouco, em verdade; porém, mais que abundante para quem professa que sempre e em tudo se devem respeitar as conclusões da ciência. Cada um entretanto poderá ir por si mesmo fazendo a aplicação destas teorias aos outros pontos, que vamos expor.

 Falamos até agora da origem e natureza da fé. Mas, como são muito os frutos da mesma, sendo os principais a Igreja, o dogma, o culto, os livros sagrados, também a respeito destes devemos saber o que dizem os modernistas. Começando pelo dogma, já sabemos, pelo que ficou dito, qual seja a sua origem e natureza. O dogma nasce da necessidade que o crente experimenta de elaborar o seu pensamento religioso, a fim de tornar sempre mais clara a sua consciência e a de outrem. Consiste todo esse trabalho em esquadrinhar e polir a fórmula primitiva, não por certo em si mesma e racionalmente, mas segundo as circunstâncias ou, como de modo pouco inteligível dizem, vitalmente. O resultado disto é que, como já dissemos, ao redor da mesma se vão formando fórmulas secundárias, que mais tarde sintetizadas e reunidas em um único todo doutrinal, quando forem ratificadas pelo magistério público como correspondentes a consciência comum, são chamados dogmas. Destas devem cuidadosamente distinguir-se as investigações teológicas; as quais porém, posto que não vivem da vida do dogma, contudo não são inúteis, seja para harmonizar a religião com a ciência e dissipar qualquer contraste entre elas, seja para iluminar a religião e defendê-la; e talvez ainda tenham a utilidade de preparar um futuro dogma. Do culto não haveria muito que dizer, se debaixo deste nome não se achassem também os Sacramentos, a respeito dos quais muito erram os modernistas. Pretendem que o culto resulta de um duplo impulso; pois que, como vimos, pelo seu sistema, tudo se deve atribuir a íntimos impulsos. O primeiro é dar à religião, alguma coisa de sensível; o segundo é a necessidade de propagá-la, coisa esta que se não poderia realizar sem uma certa forma sensível e sem atos santificantes, que se chamam Sacramentos. Os modernistas, porém, consideram os Sacramentos como meros símbolos ou sinais, bem que não destituídos de eficácia. E para indicar essa eficácia, servem-lhes de exemplo certas palavras que facilmente vingam, por terem conseguido a força de divulgar certas idéias de grande eficácia, que muito impressionam os ânimos. E assim como aquelas palavras são destinadas a despertar as referidas idéias, assim também o são os Sacramentos com relação ao sentimento religioso; nada mais do que isto. Falariam mais claro afirmando logo que os Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé. Mas esta proposição é condenada pelo Concílio de Trento (Sess. VII, de Sacramentis in genere, cân.5): “Se alguém disser que estes Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé, seja anátema”.

Já alguma coisa ficou dito sobre a natureza e origem dos livros sagrados. Segundo a mente dos modernistas, bem se pode defini-los uma coleção de experiências,  não por certo das que de ordinário qualquer pessoa adquire, mas das extraordinárias e das mais elevadas que se têm dado em uma qualquer religião. É precisamente isto que os modernistas ensinam dos nossos livros do Antigo e Novo Testamento.

Todavia, a estas suas opiniões mui astutamente acrescentam que, embora a experiência deva ser do tempo presente, pode assim mesmo receber matéria do passado e do futuro, enquanto o crente pela lembrança revive o passado como se fora o presente, ou já vive do futuro por antecipação. Deste modo se explica porque os livros históricos e apocalípticos são computados entre os livros sagrados. Assim pois, nestes livros, Deus fala por meio do crente; mas, como diz a teologia modernista, só por imanência e permanência vital. Perguntar-lhes-emos, pois, que é feito da inspiração?

Respondem-nos que ela,  a não ser talvez por uma certa veemência, não se distingue da necessidade que o crente experimenta de manifestar vocalmente ou por escrito a própria fé. Nota-se aqui certa semelhança com a inspiração poética; e neste sentido um deles dizia: Deus está entre nós, e agitados por ele nós nos inflamamos. Deste modo é que se deve explicar a origem da inspiração dos livros sagrados. Sustentam ainda os modernistas que a nenhuma passagem desses livros falta essa inspiração.

Neste ponto alguém poderia julgá-los mais ortodoxos do que certos exegetas recentes, que em parte restringem a inspiração como, por exemplo, nas tais citações tácitas. Mas isto não passa de aparências e palavras.

De fato, se segundo as leis do agnosticismo, consideramos a Bíblia um trabalho humano, feito por homens para utilidade de outros homens, seja embora lícito ao teólogo apelidá-la de divina por imanência, de que modo poderia restringir-se nela a inspiração?

Tal inspiração, de fato, admitem-na os modernistas; não, porém, no sentido católico.

Maior extensão de matéria nos oferece o que os modernistas afirmam da Igreja. Pressupõem que ela é fruto de uma dupla necessidade, uma no crente, principalmente naquele que, tendo tido alguma experiência original e singular, precisa comunicar a outrem a própria fé; outra na coletividade, depois que a fé se tornou comum a muitos, para se reunir em sociedade, e conservar, dilatar e propagar o bem comum. Que é, pois, a Igreja? É um parto da consciência coletiva, isto é, da coletividade das consciências individuais que, por virtude da permanência vital, estão todas pendentes do primeiro crente, que para os católicos foi Cristo. Ora, toda sociedade precisa de uma autoridade que a reja, e cujo mister seja dirigir os membros para o fim comum e conservar com prudência os elementos de coesão, que em uma sociedade religiosa são a doutrina e o culto. Há, por isso, na Igreja Católica uma tríplice autoridade: disciplinar, dogmática e cultural. A natureza desta autoridade deve ser deduzida da sua origem; e da natureza, por sua vez, devem coligir-se os direitos e os deveres. Foi erro das eras passadas pensar-se que a autoridade da Igreja emanou de um princípio estranho, isto é, imediatamente de Deus; e por isto, com razão era ela considerada autocrática. Estas teorias, porém, já não são para os tempos que correm.

Assim como a Igreja emanou da coletividade das consciências, a autoridade emana virtualmente da mesma Igreja. A autoridade, portanto, da mesma sorte que a Igreja, nasce da consciência religiosa, e por esta razão fica dependente da mesma; e se faltar a essa dependência, torna-se tirânica. Nos tempos que correm o sentimento de liberdade atingiu o seu pleno desenvolvimento. No estado civil a consciência pública quis um regime popular. Mas a consciência do homem, assim como a vida, é uma só. Se, pois, a autoridade da Igreja não quer suscitar e manter uma intestina guerra nas consciências humanas, há também mister curvar-se a formas democráticas; tanto mais que,  se o não quiser, a hecatombe será iminente. Loucura seria crer que o vivo sentimento de liberdade, ora dominante, retroceda.

Reprimindo e enclausurando com violência, transbordará mais impetuoso, destruindo conjuntamente a religião e a Igreja. São estes os raciocínios dos modernistas que, por isto, estão todos empenhados em achar o modo de conciliar a autoridade da Igreja com a liberdade dos crentes.

Acresce ainda que não é só dentro do seu recinto que a Igreja tem com quem entender-se amigavelmente, mas também fora. Não se acha ela só no mundo a ocupá-lo; ocupam-no também outras sociedades, com as quais não pode deixar de tratar e de relacionar-se. Convém, pois, determinar quais sejam os direitos e os deveres da Igreja para com as sociedades civis; e bem se vê que tal determinação deve ser tirada  da natureza da mesma Igreja, tal qual os modernistas no-la descreveram.

As regras que hão de servir para este fim são as mesmas, que acima serviram para a ciência e a fé. Tratava-se então de objetos, aqui de fins. Assim pois, como por causa do objeto se disse que a fé e a ciência são mutuamente estranhas, também o Estado e a Igreja são estranhos um à outra, por causa do fim a que tendem, temporal para o Estado, espiritual para a Igreja. Falava-se outrora do temporal sujeito ao espiritual, de questões mistas, em que a Igreja intervinha qual senhora e rainha, porque então se tinha a Igreja como instituída imediatamente por Deus,  enquanto autor da ordem sobrenatural. Mas estas crenças já não são admitidas pela filosofia, nem pela história. Deve, portanto, a Igreja separar-se do Estado, e assim  também o católico do cidadão. E é por este motivo que o católico, não se importando com a autoridade, com os desejos, com os conselhos e com as ordens da Igreja, e até mesmo desprezando as suas repreensões, tem direito e dever de fazer o que julgar o mais oportuno ao bem da pátria.

Querer, sob qualquer pretexto, impor ao cidadão uma norma de proceder, é por por parte do poder eclesiástico verdadeiro abuso, que se deve repelir com toda a energia. – Veneráveis Irmãos, as teorias de que dimanam todos estes erros são as mesmas que o Nosso Predecessor Pio VI condenou solenemente na Constituição apostólica Auctorem fidei (Prop. 2. A proposição que afirma que o poder foi dado por Deus à Igreja, para que fosse comunicado aos Pastores, que são os seus ministros, para a salvação das almas, entendida no sentido de que o poder do ministério e regime eclesiástico passa da comunidade dos fiéis para os pastores: é heresia. Prop. 3. Também aquele que afirma que o Romano Pontífice é chefe ministerial, entendida no sentido de que, não de Cristo na pessoa do bem-aventurado Pedro, mas da Igreja recebeu como sucessor de Pedro, verdadeiro Vigário de Cristo e chefe de toda a Igreja: é herética).

No entanto, à escola dos modernistas não basta que o Estado seja separado da Igreja. Assim como a fé deve subordinar-se à ciência, quanto aos elementos fenomênicos, assim também nas coisas temporais a Igreja tem que sujeitar-se ao Estado.   Isto não afirmam talvez muito abertamente; mas por força de raciocínio são obrigados a admiti-lo. Em verdade, admitido que o Estado tenha absoluta soberania em tudo o que é temporal, se suceder que o crente, não satisfeito com a religião do espírito, se manifeste em atos exteriores, como, por exemplo, em administrar ou receber os Sacramentos, isto já deve necessariamente cair sob o domínio do Estado. Postas as coisas neste pé, para que servirá a autoridade eclesiástica? Visto que esta não tem razão de ser sem os atos externos, estará em tudo e por tudo sujeita ao poder civil. É esta inelutável conseqüência que leva muitos dentre os protestantes liberais a desembaraçar-se de todo o culto externo e até de toda a sociedade religiosa externa, procurando pôr em voga uma religião, que chamam individual. E se os modernistas, desde já, não se atiram francamente a esses extremos, insistem pelo menos em que a Igreja se deixe espontaneamente conduzir por eles até onde pretendem levá-la e se amolde às formas civis. Isto quanto à autoridade disciplinar.

Mais grave e perniciosos são suas afirmações relativamente à autoridade doutrinal e dogmática. Assim pensam eles acerca do magistério eclesiástico: a sociedade religiosa não pode ser uma, sem unidade de consciência nos seus membros e unidade de fórmula. Mas esta dupla unidade requer por assim dizer um entendimento comum, a que compete achar e determinar a fórmula que melhor corresponda à consciência comum; e a esse entendimento convém ainda atribuir a autoridade conveniente, para poder impor à comunidade a fórmula estabelecida. Nesta união e quase fusão da mente designadora de fórmula e da autoridade que a impõe, acham os modernistas o conceito de magistério eclesiástico. Visto pois que o magistério, afinal de contas, não é mais do que um produto das consciências individuais, e só para cômodo das mesmas consciências lhe é atribuído ofício público, resulta necessariamente que ele depende dessas consciências, e por conseguinte deve inclinar-se a formas democráticas. Proibir, portanto, que as consciências dos indivíduos manifestem publicamente as suas necessidades, e impedir à crítica o caminho que leva o dogma a necessárias evoluções, não é fazer uso de um poder dado para o bem público, mas abusar dele. – Da mesma sorte , no próprio uso do poder deve haver modo e medida. É quase tirania condenar um livro sem que o autor o saiba, e sem admitir nenhuma explicação nem discussões. Ainda aqui, portanto, deve adotar-se um meio termo, que ao mesmo tempo salve a autoridade e a liberdade. E nesse ínterim o católico poderá agir de tal sorte que, protestando o seu profundo respeito à autoridade, continue sempre a trabalhar à sua vontade. Em geral admoestam a Igreja de que, sendo o fim do poder eclesiástico todo espiritual, não lhe assentam bem essas exibições de aparato exterior e de magnificência, com que sói comparecer às vistas da multidão. E quando assim o dizem, procuram esquecer que a religião, conquanto essencialmente espiritual, não pode restringir-se exclusivamente às coisas do espírito, e que as honras prestadas à autoridade espiritual se referem à pessoa de Cristo que a instituiu.

Para concluir toda esta matéria da fé e seus diversos frutos, resta-nos por fim, Veneráveis Irmãos, ouvir as teorias dos modernistas acerca do desenvolvimento dos mesmos. Têm eles por princípio geral que numa religião viva, tudo deve ser mutável e mudar-se de fato. Por aqui abrem caminho para uma das suas principais doutrinas, que é a evolução. O dogma, pois, a Igreja, o culto, os livros sagrados e até mesmo a fé, se não forem coisas mortas, devem sujeitar-se às leis da evolução. Quem se lembrar de tudo o que os modernistas ensinam sobre cada um desses assuntos, já não ouvirá com pasmo a afirmação deste princípio. Posta a lei da evolução, os próprios modernistas passam a descrever-nos o modo como ela se efetua. E começam pela fé. Dizem que a forma primitiva da fé foi rudimentar e indistintamente comum a todos os homens; porque se originava da própria natureza e vida do homem. Progrediu por evolução vital; quer dizer, não pelo acréscimo de novas formas, vindas de fora, mas por uma crescente penetração do sentimento religioso na consciência. Esse mesmo progresso se realizou de duas maneiras: primeiro negativamente, eliminando todo o elemento estranho, como seja o sentimento de família ou de nacionalidade; em  seguida positivamente, com o aperfeiçoamento intelectual e moral do homem, donde resultou maior clareza para a idéia divina e excelência para o sentimento religioso. As mesmas causas que serviram para explicar a origem da fé, explicam também o seu progresso. A estas, porém, devem acrescentar-se aqueles gênios religiosos, a que chamamos profetas, dos quais o mais iminente foi Cristo; seja porque eles na sua vida ou nas suas palavras tinham algo de misterioso, que a fé atribuía à divindade, seja porque alcançaram novas e desconhecidas experiências em plena harmonia com as exigências do seu tempo.

O progresso do dogma nasce principalmente da necessidade de vencer os obstáculos da fé, derrotar os adversários, repelir as dificuldades. Deve-se ainda acrescentar um contínuo esforço, para se penetrar cada vez mais nos arcanos da fé. Deixando de parte outros exemplos, assim sucedeu com Cristo: aquilo de divino que a fé a princípio lhe atribuía, foi-se gradualmente aumentando, até que definitivamente foi tido por Deus.

O principal estímulo de evolução para o culto, é a necessidade de se adaptar aos costumes e tradições dos povos e bem assim de gozar da eficácia de certos atos, já admitidos pelo uso. A Igreja acha finalmente a razão do seu evoluir na necessidade de se acomodar às condições históricas e às formas do governo publicamente adotadas. Isto dizem os modernistas de cada um daqueles princípios. E aqui, antes de passarmos adiante, queremos insistir em que se atente nessa doutrina das necessidades, porque ela, além do que já vimos, é como que a base e o fundamento desse famoso método que chamam histórico.

Detendo-nos ainda na doutrina da evolução, observamos que, embora as necessidades  sirvam de estímulo para a evolução, se ela não tivesse outros estímulos senão esses, facilmente transporia os limites da tradição, e assim desligada do primitivo princípio vital, já não levaria ao progresso, mas à ruína. Estudando, pois, mais a fundo o pensar dos modernistas, deve-se dizer que a evolução é como o resultado de duas forças que se combatem, sendo uma delas progressiva e outra conservadora. A força conservadora está na Igreja e é a tradição. O exercício desta é próprio da autoridade religiosa, quer de direito, pois que é de natureza de toda autoridade adstringir-se o mais possível à tradição; quer de fato, pois que, retraída das contingências da vida, pouco ou talvez nada sente dos estímulos que impelem ao progresso. Ao contrário, a força que, correspondendo às necessidades, arrasta ao progresso, oculta-se e trabalha nas consciências individuais, principalmente naquelas que, como eles dizem, se acham mais em contato com  vida. Neste ponto, Veneráveis Irmãos, já se percebe o despontar daquela perniciosíssima doutrina que introduz na Igreja o laicato como fator de progresso.

De uma espécie de convenção entre as forças de conservação e de progresso, isto é, entre a autoridade e as consciências individuais, nascem as transformações e os progressos. As consciências individuais, ou pelo menos algumas delas, fazem pressão sobre a consciência coletiva; e esta, por sua vez, sobre a autoridade, obrigando-a a capitular e pactuar. Admitido isto, não é de admirar ver-se como os modernistas pasmam por serem admoestados ou punidos. O que se lhes imputou como culpa, consideram um dever sagrado. Ninguém melhor do que eles conhece as necessidades das consciências, porque são eles e não a autoridade eclesiástica, os que se acham mais em contato com elas. Julgam quase ter em si encarnadas todas essas necessidades; daí a persuasão que têm de falar e escrever sem medo. Nada se lhes dá das censuras da autoridade; porque se sentem fortes com a consciência do dever, e por íntima experiência sabem que merecem aplausos e não censuras. Nem tão pouco ignoram que os progressos não se alcançam sem combates, nem há combates sem vítimas, como o foram os profetas e Cristo. Ainda que a autoridade os maltrate, não a odeiam; sabem que assim está cumprindo o seu dever. Lamentam apenas que se lhes não prestem ouvidos, porque isto será causa de atraso ao progresso dos espíritos; mas, há de vir a hora de se romperem as barreiras, porque as leis da evolução poderão ser refreadas; quebradas, porém, nunca. Traçado este caminho, eles continuam; continuam, com desprezo das repreensões e condenações, ocultando audácia inaudita com o véu de aparente humildade. Simulam finalmente curvar a cabeça; mas, no entanto a mão e o pensamento prosseguem o seu trabalho com ousadia ainda maior. E assim avançam com toda a reflexão e prudência, tanto porque estão persuadidos de que a autoridade deve ser estimulada e não destruída, como também porque precisam de permanecer no seio da Igreja, para conseguirem pouco a pouco assenhorear-se da consciência coletiva, transformando-a; mal percebem porém, quando assim se exprimem, que estão confessando que a consciência coletiva diverge dos seus sentimentos, e que portanto não têm direito de declarar-se intérpretes da mesma.

Nada, portanto, Veneráveis Irmãos, se pode dizer estável ou imutável na Igreja, segundo o modo de agir e de pensar dos modernistas. Para o que também não lhes faltaram precursores, esses de quem o nosso predecessor Pio IX escreveu: estes inimigos da revelação divina, que exaltam com os maiores louvores o progresso humano, desejariam com temerário e sacrílego atrevimento introduzi-lo na religião católica, como se a mesma não fosse obra de Deus, mas obra dos homens, ou algum sistema filosófico, que se possa aperfeiçoar por meios humanos (Enc. “Qui pluribus”, 9 de nov. de 1846). acerca da revelação particularmente, e do dogma, os modernistas nada acharam de novo; pois, a sua mesma doutrina, antes deles, já fora condenada no Silabo de Pio IX nestes termos: A divina revelação é imperfeita e por isto está sujeita a contínuo e indefinido progresso, correspondente ao da razão humana (Syllabo, proposição condenada  5); e mais solenemente ainda a proscreve o Concílio Vaticano I por estas palavras: A doutrina da fé por Deus revelada, não é proposta à inteligência humana para ser aperfeiçoada, como uma doutrina filosófica, mas é um depósito confiado à esposa de Cristo, para ser guardado com fidelidade e declarado com infalibilidade. Segue-se pois que também se deve conservar sempre aquele mesmo sentido dos sagrados dogmas, já uma vez declarado pela Santa Mãe Igreja, nem se deve jamais afastar daquele sentido sob pretexto e em nome de mais elevada compreensão (Const. ”Dei Fillius”, cap. IV).  De maneira alguma poderá seguir-se daí que fique impedida a explicação dos nossos conhecimentos, mesmo relativamente à fé; ao contrário, isto a auxilia e promove. Neste sentido é que o Concílio prossegue dizendo: Cresça, pois, e com ardor progrida a compreensão, a ciência, a sapiência tanto de cada um como de todos, tanto de um só homem como de toda a Igreja com o passar das idades e dos séculos; mas no seu gênero somente, isto é, no mesmo dogma, no mesmo sentido, no mesmo parecer (Lugar citado).
.
O modernista historiador e crítico
.
Já entre os sequazes do modernismo consideramos o filósofo, o crente e o teólogo; resta agora examinarmos também o historiador, o crítico e o apologista.

Há certos modernistas que se atiram a escrever história, que parecem muito preocupados em não passar por filósofos e chegam até a declarar-se totalmente alheios aos conhecimentos filosóficos. É isto um rasgo de finíssima  astúcia; para que ninguém os julgue embebidos de preconceitos filosóficos e assim pareçam, como eles dizem, completamente objetivos. Em verdade, porém, a sua história ou crítica não fala senão filosofia e as suas deduções procedem por bom raciocínio dos seus princípios filosóficos. Isto se faz manifesto a quem refletir com ponderação. Os três primeiros cânones desses tais historiadores ou críticos são aqueles mesmos princípios que acima deduzimos dos filósofos, isto é, o agnosticismo, o teorema da transfiguração das coisas pela fé, e o outro que Nos pareceu poder denominar da desfiguração. Vamos examinar-lhes já, em separado, as conseqüências. Segundo o agnosticismo, a história, bem como a ciência, só trata de fenômenos. Por conseguinte, tanto Deus como qualquer intervenção divina nas causas humanas deve ser relegado para a fé, como de sua exclusiva competência. Se tratar, pois, de uma causa em que intervier duplo elemento, isto é, o divino e o humano, como Cristo, a Igreja, os Sacramentos e coisas semelhantes, devem separar-se e discriminar-se tais elementos, de tal modo que o que é humano passe   para a história, o que é divino para a fé. É este o motivo da distinção que soem fazer os modernistas entre um Cristo da história e um Cristo da fé, e uma Igreja da história e uma Igreja da fé, entre Sacramentos da história e Sacramentos da fé, e assim por diante. Em seguida, esse mesmo elemento  humano que vemos o historiador tomar para si, tal qual se manifesta nos monumentos, deve ser tido como elevado pela fé, por transfiguração, acima das condições históricas. Convém, portanto, subtrair-lhe de novo os acréscimos feitos pela fé, e restituí-los à mesma fé e à história da fé;

Assim se deve proceder, tratando-se de Jesus Cristo, em tudo o que excede as condições de homem, seja natural, como a psicologia no-la apresenta, seja conforme as condições do lugar e tempo em que viveu. Demais, em virtude do terceiro princípio filosófico, também as coisas que não saem fora das condições da história, fazem-nas eles como que passar pela joeira, e eliminam, relegando à fé, tudo o que, a juízo seu não entrar na lógica dos fatos nem for conforme à índole das pessoas. Assim, querem que Cristo não tenha dito aquelas coisas que parecem não estar ao alcance do vulgo.

Por isto eliminam da sua história real e transportam para a fé todas as alegorias que se encontram nos seus discursos. E com que critério, perguntamos, se guiam eles nesta escolha? Pela consideração do caráter do homem, das condições em que se achou a sociedade, da educação, das circunstâncias de cada fato; em uma palavra, por uma norma que, se bem a entendemos, se resume em mero subjetivismo. Isto é, procuram apoderar-se da pessoa de Jesus Cristo e como que revestir-se dela, e assim lhe atribuem, nem mais nem menos, tudo o que eles mesmos fariam em circunstâncias idênticas. Assim pois, para concluirmos, a priori, e  partindo de certos princípios que admitem, embora afirmem que os ignoram, na história real afirmam que Cristo nem foi Deus, nem fez coisa alguma de divino; e como homem, que ele fez e disse apenas aquilo que eles, referindo-se ao tempo em que viveu, acham que podia ter feito e dito.

Assim pois, como a história recebe da filosofia as suas conclusões, assim também a crítica, por sua vez, as recebe da história. O crítico, seguindo a pista do historiador, divide todos os documentos em duas partes. Depois de fazer o tríplice corte acima referido, passa todo o restante para a história real, e entrega a outra parte à história da fé, ou noutros termos, à história interna. Os modernistas põem grande empenho em distinguir estas duas histórias; e, note-se bem, contrapõem à história da fé a história real, enquanto real. Daí resulta, como já vimos, um duplo Cristo; um real, e outro que, de fato, nunca existiu, mas pertence à fé; um que viveu em determinado lugar e tempo, outro que se encontra nas piedosas meditações da fé; tal, por exemplo, é o Cristo descrito no Evangelho de São João, o qual Evangelho, pretendem-no os modernistas, do princípio ao fim é mera meditação.

Mas o domínio da filosofia na história ainda vai além. Feita, como dissemos, a divisão dos documentos em duas partes, apresenta-se de novo o filósofo com o seu princípio de imanência vital, e prescreve que tudo o que se acha na história da Igreja deve ser aplicado por emanação vital. E visto como a causa ou condição de qualquer emanação vital procede de alguma necessidade, todo acontecimento deve ser a conseqüência de uma necessidade, e deve considerar-se historicamente posterior a ela.

Que faz então o historiador? Entregue de novo ao estudo dos documentos, tanto nos livros sacros quanto nos demais, vai formando um catálogo de cada uma das necessidades que por sua vez se apresentaram à Igreja, quer relativos ao dogma, quer ao culto ou a outras matérias. Feito este catálogo, passa-o ao crítico. Este, pois, manuseia os documentos destinados à história da fé e os distribui de idade em idade, de maneira que correspondam ao elenco que lhe foi dado; e tudo isto faz tendo sempre em vista o preceito de que o fato é precedido da necessidade, e a narração, do fato.

Bem poderia ser que certas partes da Escritura Sagrada, como as Epístolas, também fossem um fato criado pela necessidade. Seja como for, o certo porém é que não se pode determinar a idade de nenhum documento, senão pela época em que cada necessidade se manifestou na Igreja. Convém ainda distinguir entre o começo de um fato e o seu desenrolar; porquanto, o que pode nascer em um dia, não cresce senão com o tempo. Esta é a razão pela qual o crítico ainda deve bipartir os documentos, já dispostos segundo as idades, segregando os que se referem às origens de um fato dos que pertencem ao seu desenvolvimento, e dispondo de novo estes últimos em ordem cronológica.

Feito isto, reaparece  o filósofo e obriga o historiador a conformar os seus estudos com os preceitos e as leis da evolução. E o historiador, conformando-se, torna a esquadrinhar os documentos; a procurar com cuidado as circunstâncias em que se achou a Igreja, no correr dos tempos, as necessidades internas e externas que a impeliram ao progresso, os obstáculos que se levantaram, numa palavra, tudo o que puder servir para determinar o modo pelo qual se realizaram as leis da evolução. Concluído este trabalho, ele esboça em suas linhas principais a história do desenvolvimento dos fatos. Segue-se-lhe o crítico, que a este esqueleto histórico adapta os demais documentos.

Escreve-se então a narração; está completa a história; – mas agora perguntamos, essa história a quem se deve atribuir? Ao historiador ou ao crítico? A nenhum dos dois, por certo; mas ao filósofo. Tudo foi exarado por apriorismo, e certamente por um apriorismo abundante em heresias. São  na verdade para lastimar esses homens, dos quais o Apóstolo disse: Desvairaram em seus pensamentos…gabando-se de sábios, estultos é que se tornaram (Rom 1,21-22); mas ao mesmo tempo provocam a indignação, quando acusam a Igreja de corromper os documentos para fazê-los servir aos próprios interesses. Isto é, atiram sobre a Igreja aquilo de que a própria consciência manifestamente os acusa.

Dessa desagregação e da disseminação dos documentos pelo decurso do tempo, segue-se naturalmente que os livros sagrados não podem absolutamente ser atribuídos aos autores de quem trazem o nome. E esta é a razão porque os modernistas não hesitam em afirmar a miúdo que esses livros, especialmente o Pentateuco e os três primeiros Evangelhos, de uma breve narração primitiva, foram pouco a pouco se avolumando por acréscimos e interpolações, seja a modo de interpretações teológicas ou alegóricas, seja a modo de transições para ligarem entre si as diversas partes.

Noutros termos mais breves e mais claros, querem que se deva admitir a evolução vital dos livros sacros, nascida da evolução da fé e correspondente à mesma. Acrescentam ainda que os sinais de tal evolução aparecem tão manifestos, que se poderia escrever a história dos mesmos. E chegam mesmo a escrever essa história, e com tanta persuasão que parecem eles mesmos  ter visto com seus próprios olhos cada um dos escritores, que nos diversos séculos estenderam a mão sobre a Escritura para ampliá-la. Para confirmá-lo, recorrem à crítica que chamam textual, e se esforçam em persuadir que este ou aquele fato, estes ou aqueles dizeres não se acham no seu lugar, e aduzem ainda outras razões deste mesmo quilate. Dir-se-ia, na verdade, que se preestabeleceram certos tipos de narrações ou alocuções que servem de critério certíssimo para julgar se uma coisa está no seu lugar ou fora dele. Com semelhante método,  julgue quem puder fazê-lo, se eles podem ser capazes de discernir. E no entanto, quem os ouvir discorrer a respeito dos seus estudos relativos à Escritura, na qual lograram descobrir tantas incongruências, é levado a crer que antes deles ninguém manuseou aqueles livros, e que não houve uma infinita multidão de Doutores, em talento, em sabedoria, e na santidade da vida muito superiores a eles, que os esquadrinharam em todos os sentidos.

E para esses sapientíssimos doutores tão longe estavam as Sagradas Escrituras de ter alguma coisa de repreensível que, ao contrário, quanto mais eles as aprofundavam, tanto mais agradeciam a Deus ter-se dignado de assim falar aos homens.

Mas é que os nossos doutores não se entregaram ao estudo da Escrituras  com os meios de que se proviram os modernistas! Isto é, não se deixaram amestrar nem guiar por uma filosofia que tem a negação de Deus por ponto de partida, e nem se arvoraram a si mesmos em norma de bem julgar. Parece-nos, pois, já estar bem declarado o método histórico dos modernistas. O filósofo abre o caminho; segue-o o historiador; logo após, por seu turno, a crítica interna e textual. E como é próprio da primeira causa comunicar sua virtude às segundas, claro está que tal crítica não é uma qualquer crítica, mas por direito deve chamar-se agnóstica, imanentista, evolucionista; e por isso quem a professa ou dela se utiliza, professa os erros que se contém nela e se põe em oposição com a doutrina católica. Por esta razão é muito de admirar que tal gênero de crítica possa hoje ter tão grande aceitação entre católicos. Isto assim sucede por dois motivos: primeiro é a aliança íntima que há entre os historiadores e críticos desse gênero, não obstante qualquer diversidade de nacionalidade ou de crenças; o outro é a incrível audácia com que, qualquer parvoíce que algum deles diga, é pelos outros sublimada e decantada como progresso da ciência; se alguém o negar leva a pecha de ignorante; se, porém, o aceitar e defender, será coberto de louvores. Disto se segue que não poucos ficam enganados; entretanto, se melhor considerassem as coisas, ficariam, ao contrário, horrorizados. Desta prepotente imposição dos extraviados, deste incauto assentimento dos pusilânimes produz-se uma certa corrupção de atmosfera, que penetra em toda a parte e difunde o contágio. Mas passemos ao apologista.
.
O modernista apologeta
.
Entre os modernistas também este depende duplamente do filósofo. Primeiro indiretamente, tomando para matéria a história escrita  sob a direção do filósofo, como vimos; depois diretamente, aceitando do filósofo os princípios e os juízos. Vem daqui o preceito comum da escola modernista, que a nova apologética deve dirimir as controvérsias religiosas por meio de indagações históricas e psicológicas.

Por isso, esses apologetas começam o seu trabalho advertindo os racionalistas de que não defendem a religião com os livros sacros, nem com as histórias vulgarmente usadas na Igreja e escritas à moda antiga; fazem-no, porém, com a história real, composta segundo os preceitos modernos e com método moderno. Assim o dizem, não como se argumentassem ad hominem, mas porque de fato acreditam que só em tal história se acha a verdade. Quando escrevem também não se preocupam de insistir na própria sinceridade; já são bastante conhecidos entre os racionalistas, já foram louvados como combatentes sob um mesmo estandarte; e desses louvores, que um verdadeiro católico deverá rechaçar, eles muito se lisonjeiam e se servem como de escudo contra as censuras da Igreja. Vejamos como qualquer um deles faz praticamente semelhante apologética. O fim que se propõe é de conduzir o homem que ainda não crê, a sentir em si aquela experiência da religião católica que, para os modernistas, é base da fé. Há dois caminhos a seguir: um objetivo e o outro subjetivo. O primeiro parte do agnosticismo, e tende a demonstrar que na religião, especialmente na católica, há tal energia vital, que obriga todo sábio psicólogo e historiador a admitir que na sua história se esconde alguma coisa incógnita. Para este fim é mister provar que a religião católica, qual hoje existe, é a mesma fundada por Cristo, ou melhor, é o progressivo desenvolvimento da semente a que Cristo deu origem. Convém, por conseguinte, antes de tudo, determinar qual seja essa semente.

Pretendem eles fazê-lo pela seguinte fórmula: Cristo anunciou a vida do reino de Deus, a realizar-se em breve, sendo ele o seu Messias, isto é, o executor e o organizador mandado por Deus. Depois disto convirá demonstrar como essa semente, sempre imanente na religião católica e permanente, devagar e a passo com a história se foi desenvolvendo e adaptando às sucessivas circunstâncias, assimilando vitalmente tudo o que nas mesmas lhe apresentavam de útil às formas doutrinais, cultuais, eclesiásticas; superando ao mesmo tempo os obstáculos, desbaratando os inimigos, e sobrevindo a toda sorte de contradições e lutas. Depois que todas estas coisas, a saber, os obstáculos, os inimigos, as perseguições, os combates, bem como a vitalidade e fecundidade da Igreja, se tiverem mostrado tais que, conquanto na história da mesma se vejam observadas as leis da evolução, todavia não são bastantes ainda para uma explicação cabal, virá pela frente o incógnito, que se apresentará por si mesmo. Assim dizem eles. Contudo, em todo este raciocinar há uma coisa que não percebem; que aquela determinação da semente primitiva é fruto exclusivo do apriorismo do filósofo agnóstico e evolucionista, e que a própria semente é por ele tão gratuitamente definida, que deveras parece convir à sua causa.

Mas esses apologetas, ao passo que com os referidos argumentos procuram asseverar e persuadir a religião católica, também por outra parte concedem que ela contém muitas coisas que desagradam. E também, com um prazer mal disfarçado, publicamente propalam que também em matéria dogmática encontram erros e contradições; não obstante acrescentarem que tais erros e contradições só merecem desculpas, mas, e é o  que mais se admira, devem ser legitimados e justificados. Assim também nas Sagradas Escrituras, afirmam-no, ocorrem muitos erros em matéria científica e histórica. Mas aqueles livros, acrescentam, não tratam de ciência ou história, e sim de religião e de moral. A ciência e a história ali são meros invólucros, que contornam as experiências religiosas e morais, para mais facilmente se divulgarem no povo; e como este povo não poderia entender de outro modo, não lhe seria vantajoso, porém nocivo, estar de posse de uma ciência ou de uma história mais perfeita. Demais, continuam a dizer, os livros sagrados, porque religiosos por natureza, têm necessariamente a sua vida; a vida também por sua vez tem a sua verdade e a sua lógica, certamente diversa da verdade e da lógica racional, e até mesmo de ordem assaz diversa, a saber: é verdade de comparação e proporção, quer com  o ambiente em que se vive, quer com o fim para que se vive. Chegam enfim a tal extremo, que se abalançam a afirmar, sem a menor restrição, que tudo o que se explica pela vida é verdadeiro e legítimo. – Nós, Veneráveis Irmãos, para quem a verdade é uma e única, e consideramos os livros sacros como escritos por inspiração do Espírito Santo e tendo Deus por autor (Conc. Vat. I De Ver. C.2), afirmamos que isto equivale a atribuir a Deus a mentira de utilidade ou oficiosa; e com as palavras de Santo Agostinho protestamos que, uma vez admitida em excelsa autoridade qualquer mentira oficiosa, não haverá nem uma pequena parte  daqueles livros que, parecendo a alguém difícil de praticar ou incrível de crer, com a mesma perniciosíssima regra não seja atribuída a conselho ou utilidade do mendaz autor (Epíst. 28). E daí resultará o que o Santo Doutor acrescenta: Neles, isto é, nos livros sacros, cada um dará crédito ao que quiser, e rejeitará o que não lhe agradar. Mas esses apologetas não se preocupam com isto. Concedem ainda que nos livros sacros para sustentar uma doutrina qualquer, se acham por vezes razões que não se apóiam em nenhum razoável fundamento; a estes gêneros pertencem as que se fundam nas profecias. Contudo eles também como artifício de pregação, que são legitimados pela vida. Que mais? Concedem, pior ainda, sustentam que o próprio Jesus Cristo errou manifestamente, indicando o tempo da vinda do reino  de Deus; e nem é para admirar, dizem, pois então ele ainda se achava sujeito às leis da vida! – Posto isto, que será dos dogmas da Igreja? Também estes estão cheios de evidentes contradições; mas, além de serem aceitos pela lógica da vida, não se acham em oposição com a verdade simbólica; pois, neles se trata do infinito, que tem infinitos aspectos. Enfim, tanto eles aprovam e defendem essas teorias, que não põem em dúvida em declarar que se não pode render ao Infinito maior preito de homenagens, do que afirmando acerca do mesmo coisas contraditórias!  E admitindo-se a contradição, que é o que não se admitirá?

Além dos argumentos objetivos, o crente pode também ser disposto à fé pelos subjetivos. Para este fim os apologetas voltam-se de novo para a doutrina da imanência. Empenham-se em convencer o homem de que nele mesmo e nos íntimos recantos de sua natureza e de sua vida, se oculta o desejo e a necessidade de uma religião, não já de uma religião qualquer, mas da católica; porquanto esta, dizem, é rigorosamente requerida (postulata) pelo perfeito desenvolvimento da vida. E sobre este ponto nos vemos de novo obrigados a lamentar que não faltem católicos que, conquanto rejeitem a doutrina da imanência como doutrina, todavia se utilizam dela na apologética; e fazem-no tão incautamente, que parecem admitir não somente certa capacidade ou conveniência na natureza humana para a ordem sobrenatural, (o que os apologetas católicos com as devidas restrições sempre demonstram), mas também uma estrita e verdadeira exigência. Para sermos mais exatos, dizemos ainda que esta exigência da religião católica é sustentada pelos modernistas mais moderados. Pois, aqueles que podem ser denominados integralistas, pretendem que se deve mostrar ao homem que ainda não crê, como se acha latente dentro dele mesmo o gérmen que esteve na consciência de Cristo, e que Cristo transmitiu aos homens. Eis aqui, Veneráveis Irmãos, sumariamente descrito o método apologético dos modernistas, em tudo conforme com as doutrinas; e tanto o método como as doutrinas estão cheios de erros, capazes só de destruir e não de edificar, não de formar católicos, mas de arrastar os católicos à heresia, mais ainda, à completa destruição de toda religião!
.
O modernista reformador
.
Pouco resta-nos finalmente dizer a respeito das pretensões do modernista como reformador. Já pelo que está exposto fica mais que patente a mania de inovação que move estes homens; mania esta que não poupa absolutamente nada ao catolicismo. Querem a inovação da filosofia, particularmente nos seminários; de tal sorte que, desterrada a filosofia dos escolásticos para a história da filosofia, entre os sistemas já obsoletos, seja ensinada aos moços a moderna filosofia, que é a única verdadeira correspondente aos nossos tempos. Para a reforma da teologia, querem que aquela teologia que chamamos racional, seja fundamentada na filosofia moderna. Desejam, além disto, que a teologia positiva se baseie na história dos dogmas. Querem também que a história seja escrita e ensinada pelos seus métodos e com preceitos novos. Dizem que os dogmas e a sua evolução devem entrar em acordo com a ciência e a história. Para o catecismo, exigem que nos livros de catequese se introduzam só aqueles dogmas, que tiverem sido reformados e estiverem ao alcance da inteligência do vulgo. Acerca do culto, clamam que se devem  diminuir as devoções externas e proibir que aumentem, embora, a bem da verdade, outros mais favoráveis ao simbolismo, se mostrem nisto mais indulgentes. Gritam a altas vozes que o regime eclesiástico deve ser renovado em todos os sentidos, mas especialmente na disciplina e no dogma. Por isto, dizem que por dentro e por fora se deve entrar em acordo com a consciência moderna, que se acha de todo inclinada para a democracia; e assim também dizem que o clero inferior e o laicato devem tomar parte no governo, que deve ser descentralizado. Também devem ser transformadas as Congregações romanas, e antes de todas, as do Santo Ofício e do Índice. Deve mudar-se a atitude da autoridade eclesiástica nas questões políticas e sociais, de tal sorte que não se intrometa nas disposições civis, mas procure amoldar-se a elas, para penetrá-las no seu espírito. Em moral estão pelo Americanismo, dizendo que as virtudes ativas devem antepor-se às passivas, e que convém promover o exercício daquelas de preferência a estas. Desejam que o clero volte à antiga humildade e pobreza e querem-no também de acordo no pensamento e na ação com os preceitos do modernismo. Finalmente não falta entre eles quem, obedecendo muito de boa mente aos acenos dos seus mestres protestantes, até deseje ver suprimido do sacerdócio o sacro celibato. Que restará, pois, de intacto na Igreja, que não deva por eles ou segundo os seus princípios ser reformado?
.
Crítica geral de todo o sistema
.
Talvez que na exposição da doutrina dos modernistas tenhamos parecido a alguém, Veneráveis Irmãos, demasiadamente prolixos. Isso, porém, foi de todo necessário, tanto para que não continuem a acusar-nos, como costumam, de ignorar as suas teorias, como também, para que se veja que quando se fala de modernismo, não se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser. Por isso, também quisemos servir-nos de uma forma quase didática, e nem recusamos os vocábulos bárbaros, que os modernistas adotam. Se, pois, de uma só vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a síntese de todas as heresias. Certo é que se alguém se propusesse juntar, por assim dizer, o destilado de todos os erros, que a respeito da fé têm sido até hoje levantados, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que alcançaram os modernistas. Tão longe se adiantaram eles, como já o notamos, que destruíram não só o catolicismo, mas qualquer outra religião. Com isto se explicam os aplausos do racionalistas; por isto aqueles dentre os racionalistas que falam mais clara e abertamente, se vangloriam de não ter aliados mais efetivos que os modernistas. E de fato, voltemos um pouco, Veneráveis Irmãos, à prejudicialíssima doutrina do agnosticismo. Com esta, por parte da inteligência está fechado ao homem todo o caminho para chegar a Deus, ao passo que se torna mais aberto por parte de um certo sentimento e da ação. Quem não percebe, porém, que isto se afirma em vão?

O sentimento corresponde sempre à ação de um objeto, que é proposto pela inteligência ou pelos sentidos. Excluí a inteligência, e o homem seguirá mais arrebatadamente os sentidos pelos quais é já arrastado. Além de que, quaisquer que sejam as fantasias de um sentimento religioso, não podem elas vencer  o senso comum; ora, o senso comum nos ensina que toda a perturbação ou preocupação do espírito, longe de ajudar, impede a investigação da verdade (queremos dizer da verdade em si mesma); ao passo que aquela outra verdade subjetiva, fruto do sentimento íntimo e da ação, quando muito serviria para um jogo de palavras, sem nada aproveitar ao homem, que antes de tudo quer saber se, fora de si, existe ou não um Deus, em cujas mãos há de cair um dia. Recorrem outrossim e com afinco à experiência. Mas, que pode ela acrescentar ao sentimento? Nada, por certo; poderá apenas torná-lo mais intenso; e esta intensidade tornará proporcionalmente mais firme a persuasão da verdade do objeto. Estas duas coisas, porém, não farão que o sentimento deixe de ser sentimento, nem lhe mudarão a natureza, sempre sujeita a engano, se não for auxiliada pela inteligência; pelo contrário, confirmarão e reforçarão o sentimento, pois que este, quanto mais intenso for, tanto mais direito terá a ser sentimento. Como porém tratamos aqui do sentimento religioso e da experiência, que nele se contém, sabeis por certo, Veneráveis Irmãos, com quanta prudência convém tratar esta matéria, e quanta ciência se requer para regular esta mesma prudência. Vós o sabeis, pelo contacto que tendes com as almas, especialmente aquelas em que domina o sentimento; Vós o sabeis pelo estudo dos tratados de ascética que, não obstante serem menosprezados pelos modernistas, contém doutrina mais sólida e mais fina observação do que aquela de que se vangloriam os modernistas.

E a Nós, na verdade, parece-Nos ser só de um demente ou pelo menos de um rematado imprudente o admitir, sem mais exame, por verdadeiras, as tais experiências íntimas apregoadas pelos modernistas. Por que será então, dizemo-lo aqui de passagem, que tendo essas experiências tão grande força e certeza, não o possa também ter a experiência de milhares de católicos, quando afirmam que os modernistas vagueiam por um caminho errado? A maior parte dos homens sustenta e há de sempre sustentar com firmeza que, só com o sentimento e a experiência, sem a guia e a luz da inteligência, nunca se chegará ao conhecimento de Deus. Resta, portanto, ainda uma vez, ou o ateísmo ou a absoluta falta de religião. Não esperem os modernistas melhores resultados da sua doutrina do simbolismo. De fato, se todos os elementos, que chamam intelectuais, não passam de meros símbolos de Deus, por que motivo não será também um símbolo o mesmo nome de Deus ou de personalidade divina? E se assim for, bem se poderia duvidar da mesma personalidade divina, e teremos aberta a estrada para o panteísmo. Do mesmo modo, a um puro e simples panteísmo leva a outra doutrina da imanência divina. Pois, se perguntarmos: essa imanência distingue ou não distingue Deus do homem? Se distingue, que divergência então pode haver entre essa doutrina e a católica? Ou então, por que rejeitam os modernistas a doutrina da revelação externa? Se, pelo contrário, não se distingue, temos de novo o panteísmo.

Mas, de fato, a imanência dos modernistas quer e admite que todo o fenômeno de consciência proceda do homem enquanto homem. Com legítimo raciocínio deduzimos portanto que Deus e o homem são uma e a mesma coisa; e daqui o panteísmo. Também a distinção que fazem entre as ciência e a fé, não leva a outro resultado. Põem o objeto da ciência na realidade do cognoscível, e o da fé na realidade do incognoscível. Ora, o incognoscível é produzido pela completa desproporção entre o objeto e a inteligência. E esta desproporção, acrescentam, nunca poderá cessar. Logo, o incognoscível ficará sempre incognoscível, tanto para o crente quanto para o filósofo. Se, pois, alguma religião houver, o seu objeto será sempre a realidade do incognoscível; e não sabemos por que motivo essa realidade não poderá ser a alma universal do mundo, como querem certos racionalistas. Isto já é bastante para bem nos certificarmos de que muitos são os caminhos, pelos quais a doutrina modernista vai acabar no ateísmo e na destruição de toda religião. Neste caminho os protestantes deram o primeiro passo; os modernistas o segundo; pouco falta para o completo ateísmo.
.
II ª PARTE
.
AS CAUSAS DO MODERNISMO
.
Para mais a fundo conhecermos o modernismo e o mais apropriado remédio acharmos para tão grande mal, cumpre agora, Veneráveis Irmãos, indagar algum tanto das causas donde se originou e porque se tem desenvolvido. Não há duvidar que a causa próxima e imediata é a aberração do entendimento. As remotas, reconhecemo-las duas: o amor de novidades e o orgulho. O amor de novidades basta por si só para explicar toda a sorte de erros. Por esta razão o Nosso sábio predecessor Gregório XVI, com toda a verdade escreveu (Encicl. “Singulari Nos” 7/07/1834): «Muito lamentável é ver até onde se atiram os delírios da razão humana, quando o homem corre após as novidades e, contra as admoestações de São Paulo, se empenha em saber mais do que convém e, confiando demasiado em si, pensa que deve procurar a verdade fora da Igreja Católica, onde ela se acha sem a menor sombra de erro». Contudo, o orgulho tem muito maior força para arrastar ao erro os entendimentos; e é o orgulho que, estando na doutrina modernista como em sua própria casa, aí acha à larga de que se cevar e com que ostentar as suas manifestações.

Efetivamente, o orgulho fá-los confiar tanto em si que se julgam e dão a si mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os únicos que possuem o saber, e dizem desvanecidos e inchados: Nós cá não somos como os outros homens. E, de fato, para o não serem, abraçam e devaneiam toda a sorte de novidades, até das mais absurdas. Por orgulho repelem toda a sujeição, e afirmam que a autoridade deve aliar-se com a liberdade.

Por orgulho, esquecidos de si mesmos, pensam unicamente em reformar os outros, sem respeitarem nisto qualquer posição, nem mesmo a suprema autoridade. Para se chegar ao modernismo não há, com efeito, caminho mais direto do que o orgulho. Se algum leigo ou também algum sacerdote católico esquecer o preceito da vida cristã, que nos manda negarmos a nós mesmos para podermos seguir a Cristo, e se não afastar de seu coração o orgulho, ninguém mais do ele se acha naturalmente disposto a abraçar o modernismo! – Seja portanto, Veneráveis Irmãos, o vosso primeiro dever   resistir a esses homens soberbos, ocupá-los nos misteres mais humildes e obscuros, a fim de serem tanto mais deprimidos  quanto mais se enaltecem, e, postos na ínfima plana, tenham menor campo a prejudicar. Além disto, por vós mesmos ou pelos reitores dos seminários, procurai com cuidado conhecer os jovens que se apresentam candidatos às fileiras do clero; e se algum deles for de natural orgulhoso, riscai-o resolutamente do número dos ordinandos. Neste ponto, quisera Deus que se tivesse sempre agido com a vigilância e fortaleza que era mister!

Passando das causas morais às que se relacionam com a inteligência, surge sempre a ignorância. Todos os modernistas que pretendem ser ou parecer doutores na Igreja, exaltando em voz clamorosa a moderna  filosofia e desdenhando a Escolástica, abraçaram a primeira, iludidos pelo seu falso brilho, porque, ao ignorarem completamente a segunda, careceram dos meios convenientes para reconhecerem a confusão das idéias e refutar os sofismas. É, pois, da aliança da falsa filosofia com a fé que surgiu o seu sistema, formado de tantos e tamanhos erros.

Quem dera que eles fossem no entanto menos zelosos e sagazes na propaganda destes erros! Mas, em vez disto, é tal a sua esperteza, é tão indefeso o seu trabalho, que deveras causa pesar ver consumirem-se em prejuízo da Igreja tantas forças, que bem empregadas lhe seriam muito vantajosas. Para conduzirem os espíritos ao erro, usam de dois meios: removem primeiro os obstáculos, e em seguida procuram com máxima cautela os ardis que lhes poderão servir, e põem-nos em prática, incessante e pacientemente. Dentre os obstáculos, três principalmente se opõem aos seus esforços: o método escolástico de raciocinar, a autoridade dos Padres com a Tradição, o Magistério eclesiástico. Tudo isto é para eles objeto de uma luta encarniçada. Por isso, continuamente escarnecem e desprezam a filosofia e a teologia escolástica. Quer o façam por ignorância, quer  por temor, quer mais provavelmente por um e outra, o certo é que a mania da novidade neles se acha aliada com ódio à escolástica; e não há sinal mais manifesto de que começa alguém a volver-se para o modernismo do que começar a aborrecer a escolástica. Lembrem-se os modernistas os seus fautores da condenação que Pio IX infligiu a esta proposição (Syll. prop. 13):

«O método e os princípios com que os antigos doutores escolásticos trataram a teologia, não condizem mais com as necessidades dos nossos tempos e com os progressos da ciência». São também muito astuciosos em desvirtuar a natureza e a eficácia da Tradição, a fim de privá-la de todo o peso e autoridade. Porém, nós, os católicos, teremos sempre do nosso lado a autoridade do segundo Concílio de Nicéia, que condenou «aqueles que ousam…, à maneira de perversos hereges, desprezar as tradições eclesiásticas e imaginar qualquer novidade… ou pensar maliciosa e astutamente em destruir o que quer que seja das legítimas tradições da Igreja católica». Teremos sempre a profissão do quarto Concílio de Constantinopla: «Professamos, portanto, conservar e defender as regras que, tanto pelos santos e célebres Apóstolos quanto pelos Concílios universais e locais, ortodoxos, mesmo por qualquer deíloquo Padre e Mestre da Igreja, foram dadas à Santa Igreja Católica e apostólica. Por esta razão os Pontífices Romanos Pio IV e Pio IX quiseram que se acrescentassem estas palavras à profissão de fé: Creio firmemente e professo as tradições apostólicas e eclesiásticas e todas as demais determinações e constituições da mesma Igreja. O mesmo juízo que fazem da Tradição, estendem-no os modernistas também aos santos Padres da Igreja. Com a maior temeridade, tendo-os embora como muito dignos de toda a veneração, fazem-nos passar por muito ignorantes da crítica e da história, no que seriam indesculpáveis, se outros houveram sido os tempos em que viveram. Põem, finalmente, todo o empenho em diminuir e enfraquecer o magistério eclesiástico, ora deturpando-lhe sacrilegamente a origem, a natureza, os direitos, ora repetindo livremente contra  ele as calúnias dos inimigos. À grei dos modernistas quadram estas palavras que muito a contragosto escreveu Nosso Predecessor: «Para atirarem sobre a mística Esposa de Jesus Cristo, que é verdadeira luz, o desprezo e o ódio, os filhos das trevas tomaram o costume de deprimi-la em público com uma insensata calúnia e, trocando a noção das coisas e das palavras, de chamá-la amiga do obscurantismo, sustentáculo da ignorância, inimiga da luz, da ciência e do progresso (Motu-proprio. “Ut mysticam”,14/03/1891). Em vista disto, Veneráveis Irmãos, não é para admirar que os católicos, denodados defensores da Igreja, sejam alvo do ódio mais desapoderado dos modernistas. Não há injúria que lhes não atirem em rosto; mas de preferência os chamam ignorantes e obstinados. Se a erudição e o acerto de quem os refuta os atemoriza, procuram descartá-lo, recorrendo ao silêncio. Este modo de proceder com os católicos torna-se ainda mais odioso, porque eles ao mesmo tempo exaltam descompassadamente com incessantes louvores os que seguem o seu partido; acolhem e batem palmas aos seus livros, eriçados de novidades; e quanto mais alguém mostra ousadia em destruir as coisas antigas, em rejeitar as tradições e o magistério eclesiástico, tanto mais encarecem a sua sabedoria; e por fim, o que a todo espírito reto causa horror, não só elogiam pública e encarecidamente, mas veneram como mártir quem quer por acaso for condenado pela Igreja. Movidos e abalados por toda essa celeuma de louvores e impropérios, com o fito,  ou de não passarem por ignorantes, ou de serem tidos por sábios, os ânimos juvenis, instigados interiormente pelo orgulho e pelo amor das novidades dão-se por vencidos e desertam para o modernismo.

Com isto já chegamos aos artifícios com que os modernistas passam as suas mercadorias. Que recursos deixam eles de empregar para angariar sectários? Procuram conseguir cátedras nos seminários e nas Universidades, para tornarem-se insensivelmente cadeiras de pestilência. Inculcam as suas doutrinas, talvez disfarçadamente, pregando nas igrejas; expõem-nas mais claramente nos congressos; introduzem e exaltam-nas nos institutos sociais sob o próprio nome ou sob o de outrem; publicam livros, jornais, periódicos.

Às vezes  um mesmo escritor se serve de diversos nomes, para enganar os incautos, simulando grande número de autores. Numa palavra, pela ação, pela palavra, pela imprensa, tudo experimentam, de modo as parecerem agitados por uma violenta febre. Que resultado terão eles alcançado? Infelizmente lamentamos a perda de grande número de moços, que davam ótimas esperanças de poderem um dia prestar relevantes serviços à Igreja, atualmente fora do bom caminho.

Lamentamos esses muitos que, embora não se tenham adiantado tanto, tendo contudo respirado esse ar infeccionado, já pensam, falam e escrevem com tal liberdade, que em católicos não assenta bem.

Vemo-los entre os leigos; vemo-los entre os sacerdotes; e, quem o diria? Vemo-los até no seio das famílias religiosas. Tratam a Escritura à maneira dos modernistas. Escrevendo sobre a história tudo o que pode desdourar a Igreja divulgam cuidadosamente e com disfarçado prazer. Guiados por um certo apriorismo, procuram sempre desfazer as piedosas tradições populares. Mostram desdenhar as sagradas relíquias, respeitáveis pela sua antigüidade. Enfim, vivem preocupados em fazer o mundo falar de suas pessoas; e sabem que isto não será possível, se disserem as mesmas coisas que sempre se disseram.

Podem estar eles na persuasão de fazerem coisa agradável a Deus e à Igreja; na realidade, porém, ofendem gravemente a Deus e à Igreja, se não com suas obras, de certo com o espírito que os anima e com o auxílio que prestam ao atrevimento dos modernistas.
.
III ª PARTE
.
REMÉDIOS
.
A esta torrente de gravíssimos erros, que às claras e às ocultas se vai avolumando, o Nosso Predecessor Leão XIII, de feliz memória, procurou energicamente   levantar um dique, principalmente no que se refere às Sagradas Escrituras. Já vimos, porém, que os modernistas não se deixam facilmente intimidar; eis porque, aparentando o maior acatamento e a mais apurada humildade, inverteram as palavras do Pontífice do modo que lhes convinha, e propalaram que os atos do mesmo eram dirigidos a outros. Destarte o mal, dia a dia, foi tomando maiores proporções.

É por isto, Veneráveis Irmãos, que decidimos lançar mãos, sem demora, de medidas mais enérgicas. Nós, porém, vos pedimos e suplicamos que em negócio de tal monta nada, de modo algum, se deixe a desejar em vossa vigilância, desvelo e fortaleza. E isto mesmo que vos pedimos e de vós esperamos, pedimo-lo também e esperamo-lo dos demais pastores das almas, dos educadores e mestres do jovem clero, e particularmente dos Superiores gerais das Ordens religiosas.

I. No que se refere aos estudos, queremos em primeiro lugar e mandamos terminantemente, que a filosofia escolástica seja tomada por base dos estudos sacros. Bem se compreende que «se os doutores escolásticos trataram certas questões com excessiva argúcia, ou foram omissas noutras; se disseram coisas que mal se acomodam com as doutrinas apuradas nos séculos posteriores, ou mesmo alguma coisa inadmissível, mui longe está de nossa intenção querer que tudo isto deva servir de exemplo a imitar nos nossos dias (Leão XIII, Enc.Aeterni Patris).

O que importa saber, antes de tudo, é que a filosofia escolástica, que mandamos adotar, é principalmente a de Santo Tomás de Aquino; a cujo respeito queremos fique em pleno vigor tudo o que foi determinado pelo Nosso Predecessor e, se há mister, renovamos, confirmamos e mandamos severamente sejam por todos observadas aquelas disposições. Se isto tiver sido descuidado nos seminários, insistam e exijam os Bispos que para o futuro se observe. Tornamos extensiva a mesma ordem aos Superiores das Ordens religiosas. E todos aqueles que ensinam fiquem cientes de que não será sem graves prejuízos que especialmente em matérias metafísicas, se afastarão de Santo Tomás.

Fundamentada assim a filosofia, sobre ela se erga com a maior diligência o edifício teológico. Veneráveis Irmãos, promovei com toda a solicitude o estudo da teologia, de tal sorte que ao saírem dos seminários os clérigos lhe tenham alta consideração e profundo amor, e sempre o conservem carinhosamente. Porquanto é de todos sabido que na quase infinitude das disciplinas que se apresentam às inteligências ávidas do saber, é tão certo que à teologia cabe o primeiro lugar, que os antigos diziam que era dever das outras ciências e artes servirem-na e auxiliarem-na como escravas (Leão XIII, carta ap. In magna, 10/12/1889). Aproveitamos esta ocasião para dizer que Nos parecem dignos de louvor aqueles que, salvando o respeito devido à Tradição, aos Santos Padres, ao magistério eclesiástico, procuram esclarecer a teologia positiva com prudente critério e normas católicas (coisa que nem sempre se observa), tirando luzes da verdadeira história. Certo é que na atualidade, à teologia positiva se deve dar maior extensão que outrora; entretanto, isto se deve fazer de tal sorte que não seja de nenhum modo em detrimento da teologia escolástica, e sejam censurados como fautores do modernismo, aqueles que de tal modo elevam a teologia positiva que parece quase desprezarem a escolástica.

Quanto às disciplinas profanas, basta lembrar o que sabiamente disse o Nosso Predecessor (Alloc. De 7/03/1880): «Aplicai-vos diligentemente ao estudo das coisas naturais; pois, assim como em nossos dias as engenhosas descobertas e os úteis empreendimentos com sobeja razão são admirados pelos contemporâneos, da mesma sorte serão alvo de perenes louvores e encarecimentos dos vindouros». Seja isto feito sem prejuízo dos estudos sacros; assim também o advertiu o mesmo Nosso Predecessor, pela seguintes palavras (lugar citado): «A causa de tais erros, se a investigarmos cuidadosamente, provém principalmente de que hoje, quanto maior intensidade se dá aos estudos das ciências naturais, tanto mais se descuram as disciplinas mais severas e mais elevadas; algumas destas são, de fato, quase atiradas ao esquecimento; outras são tratadas com pouca vontade e de leve, e, coisa indigna, perdido o esplendor de sua primitiva dignidade, são deturpadas por opiniões inverossímeis e por enormes erros. É esta a lei à qual mandamos que se conformem os estudos das ciências naturais nos seminários.

II. Em vista tanto destas Nossas disposições como da do Nosso Antecessor, convém prestar muita atenção toda vez que se tratar da escolha dos diretores e professores tanto dos seminários quanto das Universidades católicas. Todo aquele que tiver tendências modernistas, seja ele quem for, deve ser afastado quer dos cargos quer do magistério; e se já tiver de posse, cumpre ser removido.

Faça-se o mesmo com aqueles que, às ocultas ou às claras, favorecerem o modernismo, louvando os modernistas, ou atenuando-lhes a culpa, ou criticando a escolástica, os Santos Padres, o magistério eclesiástico, ou negando obediência a quem quer que se ache em exercício do poder eclesiástico; bem assim como aqueles que se mostrarem amigos da novidade em matéria histórica, arqueológica e bíblica; e finalmente com aqueles que se descuidarem dos estudos sacros ou parecerem dar preferência aos profanos. Neste ponto, Veneráveis Irmãos, e particularmente na escolha dos lentes, nunca será demasiada a vossa solicitude e constância; porquanto, é o mais das vezes ao exemplo dos mestres que se formam os discípulos. Firmados, portanto, no dever da consciência, procedei nesta matéria com prudência, mas também com energia.

Não  deve ser  menor a vossa  vigilância e severidade na escolha daqueles que devem ser admitidos ao Sacerdócio. Longe, muito longe do clero esteja o amor às novidades; Deus não vê com bons olhos os ânimos soberbos e rebeldes! A ninguém doravante se conceda a láurea da teologia ou direito canônico, se primeiro não tiver feito todo o curso de filosofia escolástica. Se, não obstante isto, ela for concedida, será nula. Tornem-se doravante extensivas a todas as nações as disposições emanadas da Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares no ano 1896, acerca da freqüência dos clérigos regulares e seculares da Itália às Universidades. Os clérigos e sacerdotes inscritos a um Instituto ou a uma Universidade católica, não poderão freqüentar nas Universidades civis cursos também existentes nos Institutos católicos a que se inscreveram. Se, em tempos passados, isto tiver sido concedido em algum lugar, mandamos que de ora em diante não mais se permita. Ponham os Bispos que formam o conselho diretivo de tais Institutos católicos ou Universidades católicas, o maior empenho em fazer observar estas nossas determinações.

III. Compete, outrossim, aos Bispos providenciar para que os livros dos modernistas já publicados não sejam lidos, e as novas publicações sejam proibidas. Qualquer livro, jornal ou periódico desse gênero não poderá ser permitido aos alunos dos seminários ou das Universidades católicas, pois daí não lhes proviria menor mal do que o que produzem as más leituras; antes, seria ainda pior, porque ficaria contaminada a mesma raiz da vida cristã. Nem diversamente se há de julgar dos escritos de certos católicos, homens aliás de não más intenções, porém faltos de estudos teológicos e embebidos de filosofia moderna, que procuram conciliar com a fé, e fazê-la servir, como eles dizem, em proveito da mesma fé. O nome e a boa reputação dos autores faz com que tais livros sejam lidos sem o menor escrúpulo, e por isto mesmo se tornam assaz perigosos para pouco e pouco encaminharem ao modernismo.

Querendo, Veneráveis Irmãos, dar-vos normas gerais em tão grave assunto, se em vossas dioceses circularem livros perniciosos, procurai energicamente proscrevê-los, condenando-os mesmo solenemente, se o julgardes oportuno. Conquanto esta Sede Apostólica procure por todos os meios proscrever tais publicações, tornou-se hoje tão avultado o seu número que não lhe bastariam forças para condená-las todas. Disto resulta às vezes que o remédio já chega tarde, porque a demora já facilitou a infiltração do mal. Queremos, por conseguinte, que os Bispos, pondo de parte todo o receio, repelindo a prudência da carne, desdenhando a grita dos maus, com suavidade perseverante cumpram todos o que lhes cabe, lembrando-se do que na Constituição Apostólica Officiorum, Leão XIII escreveu: «Empenhem-se os Ordinários, mesmo como Delegados da Sede Apostólica, em proscrever e tirar das mãos dos fiéis os livros ou quaisquer escritos nocivos publicados ou divulgados nas suas dioceses». Com estas palavras, é verdade, concede-se um direito; mas, ao mesmo tempo, também se impõe um dever. Ninguém, contudo, julgue ter cumprido tal dever pelo fato de Nos remeter um ou outro livro, deixando entretanto muitíssimos outros serem publicados e divulgados. Nem se julguem desobrigados disto por terem ciência de que certo livro alcançou de outrem o Imprimatur, porquanto tal concessão pode ser falsa, como também pode ter sido por descuido, por excesso de benignidade, ou por demasiada fé no autor; e este último caso pode muito facilmente dar-se nas Ordens religiosas. Acresce também saber que, assim como todo e qualquer alimento não serve igualmente para todos, da mesma sorte um livro que pode ser inocente num lugar, já noutro, por certas circunstâncias, pode tornar-se nocivo. Se, por conseguinte, o Bispo, depois de ouvir o parecer de pessoas prudentes, julgar que em sua diocese deve ser condenado algum desses livros, damos-lhe para isto ampla faculdade, e até o oneramos com este dever. Desejamos entretanto se conservem as devidas atenções, e talvez baste num ou noutro caso restringir ao clero essa proibição; e ainda mesmo neste caso os livreiros católicos estão obrigados a não dar à venda as publicações proibidas pelo Bispo. E já que nos caiu sob a pena este assunto, atendam os Bispos a que os livreiros, por avidez de lucro, não vendam livros perniciosos; o certo é que nos catálogos de alguns deles não poucas vezes se vêem anunciados, e com bastante louvores, os livros dos modernistas. Se eles a isto se recusarem, não ponham dúvida os Bispos em privá-los do título de livreiros católicos; da mesma sorte, e por mais forte razão, se gozarem do título de episcopais; mas, se tiverem o título de pontifícios, seja o caso deferido à Santa Sé. A todos finalmente lembramos o artigo XXVI da citada Constituição apostólica Officiorum: «Todas as pessoas que tiverem obtido faculdade apostólica de ler e conservar livros proibidos, não se acham por esse mesmo fato autorizadas a ler livros ou jornais proscritos pelos Ordinários locais, salvo se no indulto apostólico se achar expressamente declarada a licença de ler e conservar livros condenados por quem quer seja».

IV. No entanto não basta impedir a leitura ou a venda de livros maus; cumpre, outrossim, impedir-lhes a impressão. Usem pois, os Bispos a maior severidade em conceder licença para impressão. E visto como é grande o número de livros que, segundo a Constituição Officiorum, hão mister da autorização do Ordinário, é costume em certas dioceses designar, em número conveniente, Censores, por ofício, para o exame dos manuscritos. Louvamos com efusão de ânimo essa instituição de censura; e não só exortamos, mas mandamos que se estenda a todas as dioceses. Haja, portanto, em todas as Cúrias episcopais censores para a revisão dos escritos em via de publicação. Sejam estes escolhidos no clero secular e regular, homens idosos, sábios e prudentes, que ao aprovar ou reprovar uma doutrina tomem um meio termo seguro. Terão eles o encargo de examinar tudo o que, segundo os artigos XLI e XLII da referida Constituição, precisar de licença para ser publicado. O Censor dará o seu parecer por escrito. Se for favorável, o Bispo permitirá a impressão com a palavra Imprimatur, que deverá ser precedida do Nihil obstat e do nome do Censor. Também na Cúria romana, como nas outras, serão estabelecidos Censores de Ofício. Serão estes designados pelo Mestre do Sagrado Palácio Apostólico, depois de consultar o Cardeal Vigário de Roma e obtido também o consentimento e aprovação do Sumo Pontífice. O mesmo determinará qual dos Censores deverá examinar cada escrito. A licença de impressão será concedida pelo referido Mestre juntamente com o Cardeal Vigário ou o seu Vice-gerente, antepondo-se, porém, como acima se disse, o Nihil obstat e o nome do Censor. Somente em circunstâncias extraordinárias e raríssimas, a prudente juízo do Bispo, poderá omitir-se a menção do Censor. Nunca se dará a conhecer ao autor o nome do Censor, antes que este tenha dado seu juízo favorável, afim de que o Censor não venha sofrer vexames, enquanto examinar os escritos ou depois que os tiver desaprovado. Nunca se escolham Censores entre as Ordens religiosas, sem primeiro pedir secretamente o parecer ao Superior provincial, ou, se se tratar de Roma, ao Geral; estes deverão em consciência dar atestado dos costumes, do saber, da integridade e das doutrinas do escolhido. Avisamos aos Superiores religiosos do gravíssimo dever que têm de nunca permitir que algum de seus súditos publique alguma coisa, sem a prévia autorização juntamente com a do Ordinário. Declaramos em último lugar, que o título de Censor, com que alguém for honrado, nenhuma eficácia terá nem jamais poderá ser aduzido para corroborar as suas opiniões particulares.

Ditas estas coisas em geral, particularmente mandamos a mais rigorosa observância do que se prescreve no artigo XLII da citada Constituição Officiorum, a saber: «É proibido aos sacerdotes seculares tomarem a direção de jornais ou periódicos, sem prévia autorização do Ordinário». Será privado desta licença quem, depois de ter recebido advertência, continuar a fazer mau uso dela. Como há certos sacerdotes, que, com o nome de correspondentes, ou colaboradores, escrevem nos jornais ou periódicos, artigos infectos de modernismo, tomem providências os Bispos para que tal não aconteça; e, acontecendo, advirtam-nos e proíbam-nos de escrever. Com toda a   autoridade mandamos que os Superiores das Ordens religiosas façam o mesmo; e se estes se mostrarem descuidados neste ponto, façam-no os Bispos com autoridade delegada do Sumo Pontífice. Sempre que for possível tenham os jornais e periódicos publicados pelos católicos um determinado Censor. Será este obrigado à revisão de todas as folhas ou fascículos já impressos; e se encontrar alguma coisa perigosa, fará corrigi-la quanto antes. E se o Censor tiver deixado passar alguma coisa, o Bispo tem o direito de fazê-la corrigir.

V. Já nos referimos acima aos congressos, reuniões públicas, em que os modernistas se aplicam à pública defesa e propaganda das suas opiniões. Salvo raríssimas exceções, de ora em diante os Bispos não permitirão mais os congressos de sacerdotes. Se nalgum caso o permitirem, será sob condição de não tratarem de assuntos de competência dos Bispos ou da Santa Sé, de não fazerem propostas nem petições que envolvam usurpação de jurisdição, nem se faça menção alguma de tudo o que pareça modernismo, presbiterianismo ou laicismo. A essas reuniões que devem ser autorizadas, cada uma em particular e por escrito, e na época oportuna, não poderá comparecer sacerdote algum de outra diocese, sem as cartas de recomendação do próprio Bispo. Lembrem-se todos os sacerdotes do que por estas gravíssimas palavras, Leão XIII recomendou (Carta Enc.Nobilissima Gallorum 10/02/1884): «Seja intangível para os sacerdotes a autoridade dos próprios Bispos; persuadem-se de que se o ministério sacerdotal não se exercer debaixo da direção do Bispo, não será santo, nem proveitoso nem merecedor de respeito».

VI. Mas que aproveitariam, Veneráveis Irmãos, as Nossas ordens e as Nossas prescrições, se não fossem observadas como se deve com firmeza? Para o alcançarmos, pareceu-Nos bem estender a todas as dioceses o que desde muito anos os Bispos da Úmbria, com tanta sabedoria, resolveram entre si (Atas do Congresso dos Bispos de Úmbria, nov.1849, Tit. II art.6). «Para extirpar, diziam eles, os erros já espalhados e impedir que se continue a sua difusão, ou que haja mestres de impiedade que perpetuam os perniciosos efeitos produzidos por essa mesma difusão, seguindo o exemplo de São Carlos Borromeu, este sacro Congresso determina que em cada diocese se institua um conselho de homens eméritos dos dois cleros, com a incumbência de ver se, e de que modo, os novos erros se dilatam e se propagam, e dar aviso disto ao Bispo, para que de comum acordo se providencie para a extinção do mal logo que desponte e não tenha tempo de espalhar-se com detrimento das almas, nem, o que ainda seria pior, de se avigorar e crescer. Determinamos, pois, que em cada diocese se institua um semelhante Conselho, que se denominará Conselho de Vigilância. Os membros do Conselho serão escolhidos pela normas já prescritas para os Censores dos livros. Reunir-se-ão de dois em dois meses, em dia determinado, em presença do Bispo; e as coisas tratadas ou resolvidas guardem-nas os Conselheiros com segredo inviolável.

Serão estes os deveres dos membros do Conselho: investiguem com cuidado os vestígios do modernismo, tanto nos livros como no magistério, e com prudência, rapidez e eficácia providenciem quando houver mister pela preservação do clero e da mocidade. – Combatam as novidades de palavras, e lembrem-se dos avisos de Leão XIII (Instr. S.C. NN. EE. EE. 27/01/1902): «Nas publicações católicas não se poderia aprovar uma linguagem que, inspirando-se em perniciosas novidades, parecesse escarnecer da piedade dos fiéis e falasse de nova orientação da vida cristã, de novas direções da Igreja, de novas aspirações da alma moderna, de nova vocação do clero, de nova civilização cristã». Não se tolerem tais dislates nem nos livros nem nas cátedras. – Não se descuidem dos livros em que se tratar das piedosas tradições de cada lugar, ou das sagradas Relíquias. Não permitam que se ventilem tais questões em jornais ou em periódicos destinados a nutrir a piedade, nem com expressões que tenham ares de zombaria ou de desdém, nem com afirmações decisivas, particularmente, como quase sempre sucede, quando o que se afirma não passa as raias da probabilidade ou quando se baseia em opiniões e preconceitos. – Acerca das sagradas Relíquias tomem-se as seguintes normas: se os Bispos, que são os únicos juízes nesta matéria, reconhecerem com certeza que uma relíquia é falsa, sem demora a subtrairão ao culto dos fiéis. Se, por ocasião de perturbações civis ou por outro motivo, se tiverem extraviado os documentos de autenticidade de uma Relíquia qualquer, não seja exposta à veneração do povo, sem que primeiro tenha sido reconhecida pelo Bispo. Só terá valor o argumento de prescrição ou de presunção fundada, quando o culto for recomendável pela sua antigüidade, conforme o Decreto da Congregação das Indulgências e das sagradas Relíquias, do ano de 1896, expresso nestes termos: «As antigas Relíquias devem ser conservadas na veneração que tiverem até agora, salvo se em casos particulares se tiverem provas certas de que são falsas ou supositícias. – Nos juízos a emitir acerca das pias tradições, tenha-se sempre diante dos olhos a suma prudência de que usa a Igreja nesta matéria, de não permitir que essas tradições sejam relatadas nos livros sem as determinadas precauções, e com a prévia declaração prescrita por Urbano VIII; e apesar disto, ainda não se segue que a Igreja tenha o fato por verdadeiro, mas apenas não proíbe que se lhe dê crédito, uma vez que para isto não faltem argumentos humanos. Foi isto precisamente o que, há trinta anos, a Sagrada Congregação dos Ritos declarou (Decr. 2/05/1877): «Essas aparições ou revelações não foram aprovadas nem condenadas pela Santa Sé, foram apenas aceitas como merecedores de piedosa crença, com fé puramente humana, em vista da tradição de que gozam, também confirmadas por testemunhas e documentos idôneos». Quem se apegar a esta regra, nada tem que temer. Com efeito, o culto de qualquer aparição, enquanto se baseia num fato e por isto se chama relativo, inclui sempre implicitamente a condição de veracidade do fato; o absoluto, porém, sempre se funda na verdade, porquanto se dirige às mesmas pessoas dos Santos, a quem se honra. Dá-se o mesmo com as Relíquias. –Recomendamos por fim ao Conselho de Vigilância, lance assídua e cuidadosamente as suas vistas sobre os institutos sociais e bem assim sobre os escritos relativos a questões sociais, afim de que nem sequer aí se dê agasalho a livros de modernismo, mas se acatem as prescrições dos Pontífices Romanos.

VII. A fim de que as coisas aqui determinadas não fiquem esquecidas, queremos e mandamos que, passado um ano da publicação das presentes Letras, e em seguida, depois de cada triênio, com exposição diligente e juramentada os Bispos informem a Santa Sé a respeito do que nestas mesmas Letras se prescreve e das doutrinas que circulam no clero e particularmente nos seminários e outros Institutos católicos, não excetuando nem sequer aqueles que estão isentos da autoridade do Ordinário. Ordenamos a mesma coisa aos Superiores gerais das Ordens religiosas, com relação aos seus súditos.
.
CONCLUSÃO
.
Julgamos oportuno escrever-vos estas coisas, Veneráveis Irmãos, a bem da salvação de todos os fiéis. Por certo os inimigos da Igreja hão de valer-se disto, para de novo repisarem a velha acusação, com que procuram fazer-Nos passar por inimigos da ciência e dos progressos da civilização. A fim de opormos um novo desmentido a tais acusações, que são desfeitas a cada página da história da Igreja, é Nosso propósito conceder todo o auxílio e proteção a uma nova Instituição, pela qual sob o influxo da verdade católica, será promovida toda a sorte de ciências e erudições, com o concurso dos católicos mais insignes no saber. Queira Deus secundar os Nossos desígnios, e auxiliarem-nos todos quantos têm verdadeiro amor à Igreja de Jesus Cristo.  Entretanto, Veneráveis Irmãos, para vós, em cuja obra e zelo tanto confiamos, pedimos de coração a plenitude das luzes celestiais, afim de que, nesta época de tão grande perigo para as almas, devido aos erros que de toda parte se infiltram, descortineis o que deveis fazer e o executeis com todo o ardor e fortaleza. Que vos assista com seu poder Jesus Cristo, autor e consumidor da fé; que vos assista com o seu socorro a Virgem Imaculada, destruidora de todas as heresias. E Nós, como penhor da Nossa afeição e como arras das divinas consolações no meio de vossos trabalhos, de coração vos damos a vós, ao vosso clero, e ao vosso povo a Benção Apostólica.
.

Dado em Roma, junto a São Pedro, no dia 8 de setembro de 1907, no quinto ano do Nosso Pontificado.

.

PIO PP. X

.

.

Fontehttp://www.vatican.va/holy_father/pius_x/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis_po.html

.

Publicado originalmente em 28/9/2011

Read Full Post »

.

.

CARTA ENCÍCLICA
MORTALIUM ANIMOS
DO SUMO PONTÍFICE PIO XI
AOS REVMOS. SENHORES PADRES PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS, BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DOS LUGARES
EM PAZ E UNIÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE A PROMOÇÃO DA VERDADEIRA
UNIDADE DE RELIGIÃO

.

Veneráveis irmãos:
Saúde e Bênção Apostólica.

.
1. Ânsia Universal de Paz e Fraternidade

Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos.

Pois, embora as nações ainda não usufruam plenamente dos benefícios da paz, antes, pelo contrário, em alguns lugares, antigas e novas discórdias vão explodindo em sedições e em conflitos civis; como não é possível, entretanto, que as muitas controvérsias sobre a tranquilidade e a prosperidade dos povos sejam resolvidas sem que exista a concórdia quanto à ação e às obras dos que governam as Cidades e administram os seus negócios; compreende-se facilmente (tanto mais que já ninguém discorda da unidade do gênero humano) porque, estimulados por esta irmandade universal, também muitos desejam que os vários povos cada dia se unam mais estreitamente.

.

2. A Fraternidade na Religião. Congressos Ecumênicos

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dissemelhante quanto à ordenação da Lei Nova trazida por Cristo, Nosso Senhor.

Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento religioso, por isto, parece, passaram a Ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual.

Por isto costumam realizar por si mesmos convenções, assembléias e pregações, com não medíocre frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão.

.

3. Os Católicos não podem aprová-lo  

Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que julgam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.

.

4. Outro erro. A união de todos os Cristãos. Argumentos falazes  

Entretanto, quando se trata de promover a unidade entre todos os cristãos, alguns são enganados mais facilmente por uma disfarçada aparência do que seja reto.

Acaso não é justo e de acordo com o dever – costumam repetir amiúde – que todos os que invocam o nome de Cristo se abstenham de recriminações mútuas e sejam finalmente unidos por mútua caridade?

Acaso alguém ousaria afirmar que ama a Cristo se, na medida de suas forças, não procura realizar as coisas que Ele desejou, ele que rogou ao Pai para que seus discípulos fossem “UM” (Jo 17,21)?

Acaso não quis o mesmo Cristo que seus discípulos fossem identificados por este como que sinal e fossem por ele distinguidos dos demais, a saber, se mutuamente se amassem: “Todos conhecerão que sois meus discípulos nisto: se tiverdes amor um pelo outro?” (Jo 13,35).

Oxalá todos os cristão fossem “UM”, acrescentam: eles poderiam repelir muito melhor a peste da impiedade que, cada dia mais, se alastra e se expande, e se ordena ao enfraquecimento do Evangelho.

.
5. Debaixo desses argumentos se oculta um erro gravíssimo

Os chamados “pancristãos” espalham e insuflam estas e outras coisas da mesma espécie. E eles estão tão longe de serem poucos e raros mas, ao contrário, cresceram em fileiras compactas e uniram-se em sociedades largamente difundidas, as quais, embora sobre coisas de fé cada um esteja imbuído de uma doutrina diferente, são, as mais das vezes, dirigidas por acatólicos.

Esta iniciativa é promovida de modo tão ativo que, de muitos modos, consegue para si a adesão dos cidadão e arrebata e alicia os espíritos, mesmo de muitos católicos, pela esperança de realizar uma união que parecia de acordo com os desejos da Santa Mãe, a Igreja, para Quem, realmente, nada é tão antigo quanto o reconvocar e o reconduzir os filhos desviados para o seu grêmio.

Na verdade, sob os atrativos e os afagos destas palavras oculta-se um gravíssimo erro pelo qual são totalmente destruídos os fundamentos da fé.

.

6. A verdadeira norma nesta matéria

Advertidos, pois, pela consciência do dever apostólico, para que não permitamos que o rebanho do Senhor seja envolvido pela nocividade destas falácias, apelamos, veneráveis irmãos, para o vosso empenho na precaução contra este mal. Confiamos que, pelas palavras e escritos de cada um de vós, poderemos atingir mais facilmente o povo, e que os princípios e argumentos, que a seguir proporemos, sejam entendidos por ele pois, por meio deles, os católicos devem saber o que devem pensar e praticar, dado que se trata de iniciativas que dizem respeitos a eles, para unir de qualquer maneira em um só corpo os que se denominam cristãos.

.

7. Só uma religião pode ser verdadeira: A revelada por Deus

Fomos criados por Deus, Criador de todas as coisas, para este fim: conhecê-lO e serví-lO. O nosso Criador possui, portanto, pleno direito de ser servido.

Por certo, poderia Deus ter estabelecido apenas uma lei da natureza para o governo do homem. Ele, ao criá-lo, gravou-a em seu espírito e poderia portanto, a partir daí, governar os seus novos atos pela providência ordinária dessa mesma lei. Mas, preferiu dar preceitos aos quais nós obedecêssemos e, no decurso dos tempos, desde os começos do gênero humano até a vinda e a pregação de Jesus Cristo, Ele próprio ensinou ao homem, naturalmente dotado de razão, os deveres que dele seriam exigidos para com o Criador: “Em muitos lugares e de muitos modos, antigamente, falou Deus aos nossos pais pelos profetas; ultimamente, nestes dias, falou-nos por seu Filho” (Heb 1,1 Seg).

Está, portanto, claro que a religião verdadeira não pode ser outra senão a que se funda na palavra revelada de Deus; começando a ser feita desde o princípio, essa revelação prosseguiu sob a Lei Antiga e o próprio Cristo completou-a sob a Nova Lei.

Portanto, se Deus falou – e comprova-se pela fé histórica Ter ele realmente falado – não há quem não veja ser dever do homem acreditar, de modo absoluto, em Deus que se revela e obedecer integralmente a Deus que impera. Mas, para a glória de Deus e para a nossa salvação, em relação a uma coisa e outra, o Filho Unigênito de Deus instituiu na terra a sua Igreja.

.

8. A única religião revelada é a Igreja Católica

Acreditamos, pois, que os que afirma serem cristão, não possam fazê-lo sem crer que uma Igreja, e uma só, foi fundada por Cristo. Mas, se se indaga, além disso, qual deva ser ela pela vontade do seu Autor, já não estão todos em consenso.

Assim, por exemplo, muitíssimos destes negam a necessidade da Igreja de Cristo ser visível e perceptível, pelo menos na medida em que deva aparecer como um corpo único de fiéis, concordes em uma só e mesma doutrina, sob um só magistério e um só regime. Mas, pelo contrário, julgam que a Igreja perceptível e visível é uma Federação de várias comunidades cristãs, embora aderentes, cada uma delas, a doutrinas opostas entre si.

Entretanto, cristo Senhor instituiu a sua Igreja como uma sociedade perfeita de natureza externa e perceptível pelos sentidos, a qual, nos tempos futuros, prosseguiria a obra da reparação do gênero humano pela regência de uma só cabeça (Mt 16,18 seg.; Lc 22,32; Jo 21,15-17), pelo magistério de uma voz viva (Mc 16,15) e pela dispensação dos sacramentos, fontes da graça celeste (Jo 3,5; 6,48-50; 20,22 seg.; cf. Mt 18,18; etc.). Por esse motivo, por comparações afirmou-a semelhante a um reino (Mt, 13), a uma casa (Mt 16,18), a um redil de ovelhas (Jo 10,16) e a um rebanho (Jo 21,15-17).

Esta Igreja, fundada de modo tão admirável, ao Lhe serem retirados o seu Fundador e os Apóstolos que por primeiro a propagaram, em razão da morte deles, não poderia cessar de existir e ser extinta, uma vez que Ela era aquela a quem, sem nenhuma discriminação quanto a lugares e a tempos, fora dado o preceito de conduzir todos os homens à salvação eterna: “Ide, pois, ensinai a todos os povos” (Mt 28,19).

Acaso faltaria à Igreja algo quanto à virtude e eficácia no cumprimento perene desse múnus, quando o próprio Cristo solenemente prometeu estar sempre presente a ela: “Eis que Eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos?” (Mt 28,20).

Deste modo, não pode ocorrer que a Igreja de Cristo não exista hoje e em todo o tempo, e também que Ela não exista hoje e em todo o tempo, e também que Ela não exista como inteiramente a mesma que existiu à época dos Apóstolos. A não ser que desejemos afirmar que: Cristo Senhor ou não cumpriu o que propôs ou que errou ao afirmar que as portas do inferno jamais prevaleceriam contra Ela (Mt 16,18).

.

9. Um erro capital do movimento ecumêmico na pretendida união das Igrejas cristãs

Ocorre-nos dever esclarecer e afastar aqui certa opinião falsa, da qual parece depender toda esta questão e proceder essa múltipla ação e conspiração dos acatólicos que, como dissemos, trabalham pela união das igrejas cristãs.

Os autores desta opinião acostumaram-se a citar, quase que indefinidamente, a Cristo dizendo: “Para que todos sejam um”… “Haverá um só rebanho e um só Pastos”(Jo 27,21; 10,16). Fazem-no todavia de modo que, por essas palavras, queriam significar um desejo e uma prece de cristo ainda carente de seu efeito.

Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade.

Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de muitas igreja ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os mesmos direitos, que, no máximo, a Igreja foi única e una, da época apostólica até os primeiros concílios ecumênicos.

Assim, dizem, é necessários colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedade de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conhecam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto, existiria já a condição para que os progessos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso.

Estas são, Veneráveis Irmãos, as afirmações comuns.

Existem, contudo, os que estabelecem e concedem que o chamado Protestantismo, de modo bastante inconsiderado, deixou de lado certos capítulos da fé e alguns ritos do culto exterior, sem dúvida gratos e úteis, que, pelo contrário, a Igreja Romana ainda conserva.

Mas, de imediato, acrescentam que esta mesma Igreja também agiu mal, corrompendo a religião primitiva por algumas doutrinas alheias e repugnantes ao Evangelho, propondo acréscimos para serem cridos: enumeram como o principal entre estes o que versa sobre o Primado de Jurisdição atribuído a Pedro e a seus Sucessores na Sé Romana.

Entre os que assim pensam, embora não sejam muitos, estão os que indulgentemente atribuem ao Pontífice Romano um primado de honra ou uma certa jurisdição e poder que, entretanto, julgam procedente não do direito divino, mas de certo consenso dos fiéis. Chegam outros ao ponto de, por seus conselhos, que diríeis serem furta-cores, quererem presidir o próprio Pontífice.

E se é possível encontrar muitos acatólicos pregando à boca cheia a união fraterna em Jesus Cristo, entretanto não encontrareis a nenhum deles em cujos pensamentos esteja a submissão e a obediência ao Vigário de Jesus Cristo enquanto docente ou enquanto governante.

Afirmam eles que tratariam de bom grado com a Igreja Romana, mas com igualdade de direitos, isto é, iguais com um igual. Mas, se pudessem fazê-lo, não parece existir dúvida de que agiriam com a intenção de que, por um pacto que talvez se ajustasse, não fossem coagidos a afastarem-se daquelas opiniões que são a causa pela qual ainda vagueiem e errem fora do único aprisco de Cristo.

.
10. A Igreja Católica não pode participar de semelhantes reuniões 

Assim sendo, é manifestamente claro que a Santa Sé, não pode, de modo algum, participar de suas assembléias e que, aos católicos, de nenhum modo é lícito aprovar ou contribuir para estas iniciativas: se o fizerem concederão autoridade a uma falsa religião cristã, sobremaneira alheia à única Igreja de Cristo.

.

11. A verdade revelada não admite transações   

Acaso poderemos tolerar – o que seria bastante iníquo-, que a verdade e, em especial a revelada, seja diminuída através de pactuações?

No caso presente, trata-se da verdade revelada que deve ser defendida.

Se Jesus Cristo enviou os Apóstolos a todo o mundo, a todos os povos que deviam ser instruídos na fé evangélica e, para que não errassem em nada, quis que, anteriormente, lhes fosse ensinada toda a verdade pelo Espírito Santo, acaso esta doutrina dos Apóstolos faltou inteiramente ou foi alguma vez perturbada na Igreja em que o próprio Deus está presente como regente e guardião?

Se o nosso Redentor promulgou claramente o seu Evangelho não apenas para os tempos apostólicos, mas também para pertencer às futuras épocas, o objeto da fé pode tornar-se de tal modo obscuro e incerto que hoje seja necessários tolerar opiniões pelo menos contrárias entre si?

Se isto fosse verdade, dever-se-ia igualmente dizer que o Espírito Santo que desceu sobre os Apóstolos, que a perpétua permanência dele na Igreja e também que a própria pregação de Cristo já perderam, desde muitos séculos, toda a eficácia e utilidade: afirmar isto é, sem dúvida, blasfemo.

.
12. A Igreja Católica: depositária infalível da verdade

Quando o Filho unigênito de Deus ordenou a seus enviados que ensinassem a todos os povos, vinculou então todos os homens pelo dever de crer nas coisas que lhes fossem anunciadas pela “testemunha pré-ordenadas por Deus” (At. 10,41). Entretanto, um e outro preceito de Cristo, o de ensinar e o de crer na consecução da salvação eterna, que não podem deixar de ser cumpridos, não poderiam ser entendidos a não ser que a Igreja proponha de modo íntegro e claro a doutrina evangélica e que, ao propô-la, seja imune a qualquer perigo de errar.

Afastam-se igualmente do caminho os que julgam que o depósito da verdade existe realmente na terra, mas que é necessário um trabalho difícil, com tão longos estudos e disputas para encontrá-lo e possuí-lo que a vida dos homens seja apenas suficiente para isso, com se Deus benigníssimo tivesse falado pelos profetas e pelo seu Unigênito para que apenas uns poucos, e estes mesmos já avançados em idade, aprendessem perfeitamente as coisas que por eles revelou, e não para que preceituasse uma doutrina de fé e de costumes pela qual, em todo o decurso de sua vida mortal, o homem fosse regido.

.

13. Sem fé, não há verdadeira caridade 

Estes pancristãos, que empenham o seu espírito na união das igrejas, pareceriam seguir, por certo, o nobilíssimo conselho da caridade que deve ser promovida entre os cristãos. Mas, dado que a caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito?

Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente costumavas inculcar à memória dos seus o mandamento novo: “Amai-vos uns aos outros”, vetou inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta a doutrina de Cristo: “Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem digais a ele uma saudação” (2 Jo. 10).

Pelo que, como a caridade se apóia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal.

.
14. União Irracional  

Assim, de que vale excogitar no espírito uma certa Federação cristã, na qual ao ingressar ou então quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela seja repugnante às opiniões dos outros?

E de que modo pedirmos que participem de um só e mesmo Conselho homens que se distanciam por sentenças contrárias como, por exemplo, os que afirmam e os que negam ser a sagrada Tradição uma fonte genuína da Revelação Divina?

Como os que adoram a Cristo realmente presente na Santíssima Eucaristia, por aquela admirável conversão do pão e do vinho que se chama transubstanciação e os que afirmam que, somente pela fé ou por sinal e em virtude do Sacramento, aí está presente o Corpo de Cristo?

Como os que reconhecem nela a natureza do Sacrifício e a do Sacramento e os que dizem que ela não é senão a memória ou comemoração da Ceia do Senhor?

Como os que crêem ser bom e útil invocar súplice os Santos que reinam junto de Cristo – Maria, Mãe de Deus, em primeiro lugar – e tributar veneração às suas imagens e os que contestam que não pode ser admitido semelhante culto, por ser contrário à honra de Jesus Cristo, “único mediador de Deus e dos homens”? (1 Tim. 2,5).

.

15. Princípio até o indiferentismo e o modernismo

Não sabemos, pois, como por essa grande divergência de opiniões seja defendida o caminho para a realização da unidade da Igreja: ela não pode resultar senão de um só magistério, de uma só lei de crer, de uma só fé entre os cristãos. Sabemos, entretanto, gerar-se facilmente daí um degrau para a negligência com a religião ou o Indiferentismo e para o denominado Modernismo. os que foram miseravelmente infeccionados por ele defendem que não é absoluta, mas relativa a verdade revelada, isto é, de acordo com as múltiplas necessidades dos tempos e dos lugares e com as várias inclinações dos espíritos, uma vez que ela não estaria limitada por uma revelação imutável, mas seria tal que se adaptaria à vida dos homens.

Além disso, com relação às coisas que devem ser cridas, não é lícito utilizar-se, de modo algum, daquela discriminação que houveram por bem introduzir entre o que denominam capítulos fundamentais e capítulos não fundamentais da fé, como se uns devessem ser recebidos por todos, e, com relação aos outros, pudesse ser permitido o assentimento livre dos fiéis: a Virtude sobrenatural da fé possui como causa formal a autoridade de Deus revelante e não pode sofrer nenhuma distinção como esta.

Por isto, todos os que são verdadeiramente de Cristo consagram, por exemplo, ao mistério da Augusta Trindade a mesma fé que possuem em relação dogma da Mãe de Deus concebida sem a mancha original e não possuem igualmente uma fé diferente com relação à Encarnação do Senhor e ao magistério infalível do Pontífice romano, no sentido definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano.

Nem se pode admitir que as verdade que a Igreja, através de solenes decretos, sancionou e definiu em outras épocas, pelo menos as proximamente superiores, não sejam, por este motivo, igualmente certas e nem devam ser igualmente acreditadas: acaso não foram todas elas reveladas por Deus?

Pois, o Magistério da Igreja, por decisão divina, foi constituído na terra para que as doutrinas reveladas não só permanecessem incólumes perpetuamente, mas também para que fossem levadas ao conhecimento dos homens de um modo mais fácil e seguro. E, embora seja ele diariamente exercido pelo Pontífice Romano e pelos Bispos em união com ele, todavia ele se completa pela tarefa de agir, no momento oportuno, definindo algo por meio de solenes ritos e decretos, se alguma vez for necessário opor-se aos erros ou impugnações dos hereges de um modo mais eficiente ou imprimir nas mentes dos fiéis capítulos da doutrina sagrada expostos de modo mais claro e pormenorizado.

Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é acrescentada à soma de verdades que estando contidas, pelo menos implicitamente, no depósito da revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez, ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e que antes eram por alguns colocados sob controvérsia.

.

16. A única maneira de unir todos os cristãos

Assim, Veneráveis Irmãos, é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos por quanto não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.

Dizemos à única verdadeira Igreja de Cristo: sem dúvida ela é a todos manifesta e, pela vontade de seu Autor, Ela perpetuamente permanecerá tal qual Ele próprio A instituiu para a salvação de todos.

Pois, a mística Esposa de Cristo jamais se contaminou com o decurso dos séculos nem, em época alguma, poderá ser contaminada, como Cipriano o atesta: “A Esposa de Cristo não pode ser adulterada: ela é incorrupta e pudica. Ela conhece uma só casa e guarda com casto pudor a santidade de um só cubículo” (De Cath. Ecclessiae unitate, 6).

E o mesmo santo Mártir, com direito e com razão, grandemente se admirava de que pudesse alguém acreditar que “esta unidade que procede da firmeza de Deus pudesse cindir-se e ser quebrada na Igreja pelo divórcio de vontades em conflito” (ibidem).

Portanto, dado que o Corpo Místico de Cristo, isto é, a Igreja, é um só (1 Cor. 12,12), compacto e conexo (Ef. 4,15), à semelhança do seu corpo físico, seria inépcia e estultície afirmar alguém que ele pode constar de membros desunidos e separados: quem pois não estiver unido com ele, não é membro seu, nem está unido à cabeça, Cristo (Cfr. Ef. 5,30; 1,22).

.

17. A obediência ao Romano Pontífice 

Mas, ninguém está nesta única Igreja de Cristo e ninguém nela permanece a não ser que, obedecendo, reconheça e acate o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos.

Por acaso os antepassados dos enredados pelos erros de Fócio e dos reformadores não estiveram unidos ao Bispo de Roma, ao Pastor supremo das almas?

Ai! Os filhos afastaram-se da casa paterna; todavia ela não foi feita em pedaços e nem foi destruída por isso, uma vez que estava arrimada na perene proteção de Deus. Retornem, pois, eles ao Pai comum que, esquecido das injúrias antes gravadas a fogo contra a Sé Apostólica, recebê-los-á com máximo amor.

Pois se, como repetem freqüentemente, desejam unir-se Conosco e com os nossos, por que não se apressam em entrar na Igreja, “Mãe e Mestra de todos os fiéis de Cristo” (Conc. Later 4, c.5)?

Escutem a Lactâncio chamado amiúde: “Só… a Igreja Católica é a que retém o verdadeiro culto. Aqui está a fonte da verdade, este é o domicílio da Fé, este é o templo de Deus: se alguém não entrar por ele ou se alguém dele sair, está fora da esperança da vida e salvação. é necessário que ninguém se afague a si mesmo com a pertinácia nas disputas, pois trata-se da vida e da salvação que, a não ser que seja provida de um modo cauteloso e diligente, estará perdida e extinta” (Divin. Inst. 4,30, 11-12).

.

18. Apelo às seitas dissidentes

Aproximem-se, portanto, os filhos dissidentes da Sé Apostólica, estabelecida nesta cidade que os Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo consagraram com o seu sangue; daquela Sede, dizemos, que é “raiz e matriz da Igreja Católica” (S. Cypr., ep. 48 ad Cornelium, 3), não com o objetivo e a esperança de que “a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade” (1 Tim 3,15) renuncie à integridade da fé e tolere os próprios erros deles, mas, pelo contrário, para que se entreguem a seu magistério e regime.

Oxalá auspiciosamente ocorra para Nós isto que não ocorreu ainda para tantos dos nossos muitos Predecessores, a fim de que possamos abraçar com espírito fraterno os filhos que nos é doloroso estejam de Nós separados por uma perniciosa dissensão.

Prece a Nosso Senhor e a Nossa Senhora. Oxalá Deus, Senhor nosso, que “quer salvar todos os homens e que eles venham ao conhecimento da verdade”(1 Tim. 2,4) nos ouça suplicando fortemente para que Ele se digne chamar à unidade da Igreja a todos os errantes.

Nesta questão que é, sem dúvida, gravíssima, utilizamos e queremos que seja utilizada como intercessora a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe da graça divina, vencedora de todas as heresias e auxílio dos cristãos, para que Ela peça, para o quanto antes, a chegada daquele dia tão desejado por nós, em que todos os homens escutem a voz do seu Filho divino, “conservando a unidade de espírito em um vínculo de paz” (Ef. 4,3).

.

19. Conclusão e Bênção Apostólica  

Compreendeis, Veneráveis Irmãos, o quanto desejamos isto e queremos que o saibam os nossos filhos, não só todos os do mundo católico, mas também os que de Nós dissentem. Estes, se implorarem em prece humilde as luzes do céu, por certo reconhecerão a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, por fim, nEla tendo entrado, estarão unidos conosco em perfeita caridade.

No aguardo deste fato, como auspício dos dons de Deus e como testemunho de nossa paterna benevolência, concedemos muito cordialmente a vós, Veneráveis Irmãos, e a vosso clero e povo, a bênção apostólica.

.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia seis de janeiro, no ano de 1928, festa da Epifania de Jesus Cristo, Nosso Senhor, sexto de nosso Pontificado.

Pio, Papa XI.

.

Fontehttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19280106_mortalium-animos_po.html

.

Post publicado originalmente em: 7/6/2011 e 27/9/2011

Read Full Post »

Read Full Post »

clique no link abaixo para assistir o vídeo:

Levantai-vos Soldados de Cristo!!

.

.

Read Full Post »

Older Posts »