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Archive for setembro \29\-03:00 2011

FonteFSSPX

São Pio X e o Ecumenismo

Retirado e traduzido da Revista Tradición Católica,
da Casa Autônoma da FSSPX em Espanha-Portugal nº 209. Janeiro-Fevereiro 2007,
APUD apostoladoeucaristico.blogspot.com

por José Andrés Segura Espada

Quando em 15 de julho de 1905 o Papa São Pio X mandou publicar o Catecismo Maior, para a diocese de Roma, quis que fosse de caráter obrigatório tanto para o uso público como privado da Província romana, e com o desejo de que ao menos fosse um texto unificado para toda a Itália.

Nele, então, temos um guia seguro e claro para a exposição dos rudimentos de nossa fé que, como indiquei, quis o santo Papa que fosse de uso obrigatório no coração da cristandade.

Em seu anexo Breve Resumo da História Eclesiástica, encontramos algumas passagens que coloca à mostra qual é o caráter dos hereges e cismáticos e como sempre agiu a Igreja a respeito deles, e portanto qual deve ser o verdadeiro caminho a seguir no ecumenismo.

Exponho alguns fragmentos de dito Catecismo Maior:

Já nos tempos apostólicos houve homens perversos que, por interesse e ambição, turbavam a corrompiam no povo a pureza da fé com erros abomináveis. Opuseram-se-lhes os Apóstolos com a pregação, com os escritos e com as infalíveis sentenças do primeiro Concílio que celebraram em Jerusalém“.

Já no século V escrevia São Vicente de Lerins: “foi um fato sempre muito frequente na Igreja, que quanto mais religiosa era uma pessoa com mais facilidade saía ao encontro de novas invenções” (Commo. VI, 2).

Ou seja, que diante dos hereges que corrompiam a fé dos mais simples, os Apóstolos se opuseram defendendo a Santa Fé com palavras, escritos e condenações. Nada de diálogos com os “irmãos separados”.

Desde então, aqui não cessou o espírito das trevas em seus venenosos ataques contra a Igreja e as verdades divinas de que é depositária indefectível; e suscitando constantemente novas heresias, foram atentando seguidamente contra todos os dogmas da religião cristã“.

O “espírito das trevas”. Este é o maléfico indutor de todas as heresias.

O Protestantismo ou religião reformada, como orgulhosamente a chamam seus fundadores, é o compêndio de todas as heresias que houve antes dele, que houve depois e que pode ainda nascer para a ruína das almas“.

Para a ruína das almas, são as heresias!

Com uma luta que dura sem trégua há vinte séculos, não cessou a Igreja Católica de defender o depósito sagrado da verdade que Deus lhe encomendou e de amparar os fiéis contra o veneno das doutrinas heréticas”.

A Igreja desde sempre “luta”, não dialoga -, “defende”, não entrega – o tesouro da fé que Deus lhe confiou, e protege os fiéis do veneno dos hereges.

À imitação dos Apóstolos, sempre que o exigiu a pública necessidade, a Igreja, congregada em Concílio ecumênico ou geral, definiu com toda claridade a verdade católica, propôs como dogma de fé a seus filhos e tirou de seu seio os hereges, lançando contra eles a excomunhão e condenando seus erros“.

Sempre em conformidade com os Santos Padres: “Anatematizar aqueles que anunciam algo fora do que já foi uma vez recebido, nunca deixou de ser necessário; nunca deixará de ser necessário”. (S. Vicente de Lerins, Commo. IX, S)

O concílio que condenou o protestantismo foi o Sacrosanto Concílio de Trento, denominado assim pela cidade onde foi celebrado. Ferido com esta condenação, o protestantismo (…) encerra um apinhamento, o mais monstruoso, de erros privados e individuais, recolhe todas as heresias e representa todas as formas de rebelião contra a Santa Igreja Católica“.

Conclusão: Seguindo o exemplo dos Apóstolos, a Igreja sempre condenou as heresias e expulsou de seu seio os hereges. Nada de diálogo, nem de “louvar a unidade na legítima diversidade” do falso ecumenismo, ou confraternizar publicamente em atos reprováveis com os hereges.

O verdadeiro ecumenismo, a verdadeira caridade com os que estão no erro, é mostrar-lhes a verdade plena, e rezar por eles – não “com” eles – para que se convertam à verdadeira fé, tal e como rezava toda a santa Igreja na sagrada liturgia da Sexta-feira Santa:

Oremos também pelos hereges e cismáticos, para que Deus nosso Senhor os tire de todos os seus erros, e se digne trazê-los à santa Madre Igreja Católica e Apostólica”.

Oremos também pelos incrédulos judeus; para que Deus nosso Senhor aparte o véu de seus corações, e, eles também, reconheçam nosso Senhor Jesus Cristo”.

Oremos também pelos pagãos, para que Deus Onipotente tire a perversidade de seus corações; e abandonando seus ídolos se convertam ao Deus vivo e verdadeiro e a seu único Filho e Senhor nosso Jesus Cristo”.

CONVERSÃO de judeus, maometanos e pagãos; e RETORNO de hereges e cismáticos.

Esta sim é nossa fé de sempre; a fé dos apóstolos; a fé que nos gloriamos de professar.

Glória e adoração somente a Ti, Santíssima Trindade, único e verdadeiro Deus!

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(Publicado originalmente em: 17/2/2011)

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Sancte Michael Archangele, defende nos in prælio; contra nequitiam et insidias diaboli esto præsidium. Imperet illi Deus, supplices deprecamur: tuque, Princeps militiæ cælestis, Satanam aliosque spiritus malignos, qui ad perditionem animarum pervagantur in mundo, divina virtute in infernum detrude. Amen.

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Consagração a São Miguel Arcanjo

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Ó Príncipe nobilíssimo dos Anjos, valoroso guerreiro do Altíssimo, zeloso defensor da glória do Senhor, terror dos espíritos rebeldes, amor e delícia de todos os Anjos justos, meu diletíssimo Arcanjo São Miguel, desejando eu fazer parte do número dos vossos devotos e servos, a vós hoje me consagro, me dou e me ofereço e ponho-me a mim próprio, a minha família e tudo o que me pertence, debaixo da vossa poderosíssima proteção. É pequena a oferta do meu serviço, sendo como sou um miserável pecador, mas vós engrandecereis o afeto do meu coração; recordai-vos que de hoje em diante estou debaixo do vosso sustento e deveis assistir-me em toda a minha vida e obter-me o perdão dos meus muitos e graves pecados, a graça da amar a Deus de todo coração, ao meu querido Salvador Jesus Cristo e a minha Mãe Maria Santíssima, obtende-me aqueles auxílios que me são necessários para obter a coroa da eterna glória. Defendei-me dos inimigos da alma, especialmente na hora da morte. Vinde, ó príncipe gloriosíssimo, assistir-me na última luta e com a vossa alma poderosa lançai para longe, precipitando nos abismos do inferno, aquele anjo quebrador de promessas e soberbo que um dia prostrastes no combate no Céu.
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São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate.

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SPES

Renova-se, aqui e agora, o multitudinário evento satânico “Rock in Rio” – apoiado, como sempre, por governos, meios de comunicação, etc.

A imagem acima diz tudo a seu respeito. Mas podem-se repetir algumas poucas palavras sobre ele saídas na imprensa ao longo dos anos, palavras que também expressam perfeitamente o caráter diabólico que o move e constituiu:

“O Rock in Rio II aparece com todos os seus detalhes, entre todos os seus gritos, com todas as suas convulsões, com sua espetacularidade agressiva, sua feiúra, sua monstruosidade, seu entusiasmo, sua violência e seu grotesco” (“Folha Ilustrada”, de 23-1-91);

“O Red Hot Chili Peppers parecia com pressa de encerrar seu show no Inferno, quer dizer, na Cidade do Rock” (Jornal do Brasil, de 23-1-01).

Mas não se trata somente do evento “Rock in Rio” ou semelhantes. Trata-se do próprio rock-and-roll. Demos a palavra a um de seus fundadores, Elvis Presley: “Quando o espírito move, é vão resistir; quando esse estranho feeling descia sobre mim, eu era capaz de correr sobre as teclas daquele piano como jamais o fizera. Até parecia que uma força de fora me tomava e carregava meu corpo. Tive a sensação de estar ungido pelo demônio. (…) Não sei como descrever isto, pois era completamente diferente de tudo quanto experimentara na vida. Eu sabia que isto não vinha de Deus” (in Davin Seay e Mary Neely, Stairway to Heaven, N. Y., Ballantines Books, 1985).

Para o perfeito entendimento do rock-and-roll, leia-se Bach e Pink Floyd ― Breve Estudo Comparativo entre a Música Clássica e a Música Rock, do Padre Bertrand Labouche (da FSSPX), facilmente encontrável na Internet.

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Fonte: SPES

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CARTA ENCÍCLICA
DO SUMO PONTÍFICE
PIO X
PASCENDI DOMINICI GREGIS
SOBRE AS DOUTRINAS MODERNISTAS
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Aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos,
Bispos e outros Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica
Veneráveis Irmãos, saúde e benção apostólica
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INTRODUÇÃO

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A missão, que nos foi divinamente confiada, de apascentar o rebanho do Senhor, entre os principais deveres impostos por Cristo, conta o de guardar com todo o desvelo o depósito da fé transmitida aos Santos, repudiando as profanas novidades de palavras e as oposições de uma ciência enganadora. E, na verdade, esta providência do Supremo Pastor foi em todo o tempo necessária à Igreja Católica; porquanto, devido ao inimigo do gênero humano nunca faltaram homens de perverso dizer (At 20,30), vaníloquos e sedutores (Tit 1,10), que caídos eles em erro arrastam os mais ao erro (2 Tim 3,13). Contudo, há mister confessar que nestes últimos tempos cresceu sobremaneira o número dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifícios de todo ardilosos, se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo. Por isto já não Nos é lícito calar para não parecer faltarmos ao Nosso santíssimo dever, e para que se Nos não acuse de descuido de nossa obrigação, a benignidade de que, na esperança de melhores disposições, até agora usamos.

E o que exige que sem demora falemos, é antes de tudo que os fautores do êrro já não devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, se ocultam no próprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos.

Aludimos, Veneráveis Irmãos, a muitos membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do clero que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que há de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor que, com audácia sacrílega, rebaixam à craveira de um puro e simples homem.

Pasmem, embora homens de tal casta, que Nós os ponhamos no número dos inimigos da Igreja; não poderá porém, pasmar com razão quem quer que, postas de lado as intenções de que só Deus é juiz, se aplique a examinar as doutrinas e o modo de falar e de agir de que lançam eles mão. Não se afastará, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, não já fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e por isto, é por assim dizer nas próprias veias e entranhas dela que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Além de que, não sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas raízes que são a Fé e suas fibras mais vitais, é que  meneiam eles o machado.

Batida  pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vírus por toda a árvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade católica, nenhuma verdade há que não intentem contaminar. E ainda vão mais longe; pois pondo em obra o sem número de seus maléficos ardis, não há quem os vença em manhas e astúcias:  porquanto, fazem promiscuamente o papel ora de racionalistas, ora de católicos, e isto com tal dissimulação que arrastam sem dificuldade ao erro qualquer incauto; e sendo ousados como os que mais o são, não há conseqüências de que se amedrontem e que não aceitem com obstinação e sem escrúpulos. Acrescente-se-lhes ainda, coisa aptíssima para enganar o ânimo alheio, uma operosidade incansável, uma assídua e vigorosa aplicação a todo o ramo de estudos e, o mais das vezes, a fama de uma vida austera. Finalmente, e é isto o que faz desvanecer toda esperança de cura, pelas suas mesmas doutrinas são formadas numa escola de desprezo a toda autoridade e a todo freio; e, confiados em uma consciência falsa, persuadem-se de que é amor de verdade o que não passa de soberba e obstinação. Na verdade, por algum tempo esperamos reconduzi-los a melhores sentimentos e, para êste fim, a princípio os tratamos com brandura, em seguida com severidade e, finalmente, bem a contragosto, servimo-nos de penas públicas.

Mas vós bem sabeis, Veneráveis Irmãos, como tudo foi debalde; pareceram por momento curvar a fronte, para depois reerguê-la com maior altivez. Poderíamos talvez ainda deixar isto desapercebido se tratasse somente deles; trata-se porém das garantias do nome católico.

Há, pois, mister quebrar o silêncio, que ora seria culpável, para tornar bem conhecidas à Igreja esses homens tão mal disfarçados.

E visto que os modernistas (tal é o nome com que vulgarmente e com razão são chamados) com astuciosíssimo engano costumam apresentar suas doutrinas não coordenadas e juntas como um todo, mas dispersas e como separadas umas das outras, afim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato estão firmes e constantes, convém, Veneráveis Irmãos, primeiro exibirmos aqui as mesmas doutrinas em um só quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um só corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remédios para debelar-lhes os efeitos perniciosos.

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1ª PARTE
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EXPOSIÇÃO DO SISTEMA E SUA DIVISÃO
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E para procedermos com ordem em tão abstrusa matéria, convém notar que cada modernista representa e quase compendia em si muitos personagens, isto é, o de filósofo, o de crente, o de teólogo, o de historiador, o de crítico, o de apologista, o de reformador; os quais personagens todos, um por um, cumpre bem os distinga todo aquele que quiser devidamente conhecer o seu sistema e penetrar nos princípios e nas conseqüências das suas doutrinas.
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O modernista filósofo
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Começando pelo filósofo, cumpre saber que todo o fundamento da filosofia religiosa dos modernistas assenta sobre a doutrina, que chamamos agnosticismo. Por força desta doutrina, a razão humana fica inteiramente reduzida à consideração dos fenômenos, isto é,  só das coisas perceptíveis e pelo modo como são perceptíveis; nem tem ela direito nem aptidão para transpor estes limites. E daí segue que não é dado à razão elevar-se a Deus, nem conceder-lhe a existência, nem mesmo por intermédio dos seres visíveis. Segue-se, portanto, que Deus não pode ser de maneira alguma objeto direto da ciência; e também com relação à história, não pode servir de assunto histórico. Postas estas premissas, todos percebem com clareza qual não deve ser a sorte da teologia natural, dos motivos de credibilidade, da revelação externa. Tudo isto os modernistas rejeitam e atribuem ao intelectualismo, que chamam ridículo sistema, morto já há muito tempo. Nem os abala ter a Igreja condenado formalmente erros tão monstruosos. Pois que, de fato, o Concílio Vaticano I assim definiu;

Se alguém disser que o Deus, único e verdadeiro, criador e Senhor nosso, por meio das coisas criadas não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, seja anátema (De Revel. Cân. 1);   e também:

Se alguém disser que não é possível ou não convém que, por divina revelação, seja o homem instruído acerca de Deus e do culto que lhe é devido, seja anátema (Ibid. Cân. 2); e, finalmente:

Se alguém disser que a divina revelação não pode tornar-se crível por manifestações externas, e que por isto os homens não devem ser movidos à fé senão exclusivamente pela interna experiência ou inspiração privada, seja anátema (De Fide, Cân. 3).

De que modo porém os modernistas passam do agnosticismo, que é puro estado de ignorância, para o ateísmo científico e histórico que, ao contrário, é estado de positiva negação, e por isso, com que lógica, do não saber se Deus interveio ou não na história do gênero humano, passam a tudo explicar na mesma história, pondo Deus de parte, como se na realidade não tivesse intervindo, quem  o souber  que o explique.

Há entretanto para eles uma coisa fixa e determinada, que é o dever ser atéia a ciência a par da história, em cujas raias não haja lugar senão para os fenômenos, repelido de uma vez, Deus e tudo o que é divino. E dessa absurdíssima doutrina ver-se-á, dentro em pouco, que coisas seremos obrigados a deduzir a respeito da augusta Pessoa de Cristo, dos mistérios e da sua vida e morte, da sua ressurreição e ascensão ao céu.

Este agnosticismo, porém, na doutrina dos modernistas, não constitui senão a parte negativa; a positiva acha-se toda na imanência vital.

Eis aqui o modo como eles passam de uma parte a outra. A religião, quer a natural quer a sobrenatural, é mister seja explicada como qualquer outro fato. Ora, destruída a teologia natural, impedido o acesso à revelação ao rejeitar os motivos de credibilidade, é claro que se não pode procurar fora do homem essa explicação. Deve-se, pois, procurar no mesmo homem; e visto que a religião não é de fato senão uma forma da vida, a sua explicação se deve achar mesmo na vida do homem. Daqui procede o princípio da imanência religiosa. Demais, a primeira moção, por assim dizer, de todo fenômeno vital, deve sempre ser atribuída a uma necessidade;  os primórdios, porém, falando mais especialmente da vida, devem ser atribuídos a um movimento do coração, que se chama sentimento. Por conseguinte, como o objeto da religião é Deus, devemos concluir que a fé, princípio e base de toda a religião, se deve fundar em um sentimento, nascido da necessidade da divindade.

Esta necessidade das causas divinas não se fazendo sentir no homem senão em certas e especiais circunstâncias, não pode de per si pertencer ao âmbito da consciência; oculta-se (porém), primeiro abaixo da consciência, ou, como dizem com vocábulo tirado da filosofia moderna, na subconsciência, onde a sua raiz fica também oculta e incompreensível. Se alguém, contudo lhes perguntar de que modo essa necessidade da divindade, que o homem sente em si mesmo, torna-se religião, será esta a resposta dos modernistas: a ciência e a história, dizem eles, acham-se fechadas entre dois termos: um externo, que é o mundo visível; outro interno, que é a consciência. Chegados a um ou outro destes dois termos, não se pode ir mais adiante; além destes dois limites acha-se o incognoscível. Diante deste incognoscível, seja que ele se ache fora do homem e fora de todas as coisas visíveis, seja que ele se ache oculto na subconsciência do homem, a necessidade de um quê divino, sem nenhum ato prévio da inteligência, como o quer o fideísmo, gera no ânimo já inclinado um certo sentimento particular, e este, seja como objeto seja como causa interna, tem envolvida em si a mesma realidade divina e assim, de certa maneira, une o homem com Deus. É precisamente a este sentimento que os modernistas dão o nome de fé e tem-no como princípio de religião.

Nem acaba aí o filosofar, ou melhor, o desatinar desses homens. Pois, nesse mesmo sentimento eles não encontram unicamente a fé; mas, com a fé e na mesma fé, do modo como a entendem, sustentam que também se acha a revelação. E  que é o que mais se pode exigir para a revelação? Já não será talvez revelação, ou pelo menos princípio de revelação, aquele sentimento religioso, que se manifesta na consciência? Ou também o mesmo Deus a manifestar-se às almas, embora um tanto confusamente, no mesmo sentimento religioso? eles ainda acrescentam mais, dizendo que, sendo Deus ao mesmo tempo objeto e causa da fé, essa revelação é de Deus como objeto e também provém de Deus como causa; isto é, tem a Deus ao mesmo tempo como revelante e revelado. Segue-se daqui, Veneráveis Irmãos, a absurda afirmação dos modernistas, segundo a qual toda a religião, sob diverso aspecto, é igualmente natural e sobrenatural. Segue-se daqui a promíscua significação que dão aos termos consciência e revelação. Daqui a lei que dá a consciência religiosa, a par com a revelação, como regra universal, à qual todos se devem sujeitar, inclusive a própria autoridade da Igreja, seja quando ensina seja quando legisla em matéria de culto ou disciplina.

Entretanto, em todo este processo donde, segundo os modernistas, resultam a fé e a revelação, deve atender-se principalmente a uma coisa de não pequena importância, pelas conseqüências histórico-críticas, que daí fazem derivar. Aquele Incognoscível, de que falam, não se apresenta à fé como que nu e isolado; mas, ao contrário, intimamente unido a algum fenômeno que, embora pertença ao campo da ciência ou da história, assim mesmo, de certo modo, transpõe os seus limites.

Este fenômeno poderá ser um fato qualquer da natureza, contendo em si algum quê de misterioso, ou poderá também ser um homem, cujo talento, cujos atos, cujas palavras parecem nada ter de comum com as leis ordinárias da história. A fé, pois, atraída pelo Incognoscível unido ao fenômeno, apodera-se de todo o mesmo fenômeno e de certo modo o penetra da sua vida. Donde se seguem duas coisas.

A primeira é uma certa transfiguração do fenômeno, por uma espécie de elevação das suas próprias condições, que o torna mais apto, qual matéria, para receber o divino.

A segunda é uma certa desfiguração, resultante de que, tendo a fé subtraído ao fenômeno os seus adjuntos de tempo e de lugar, facilmente lhe atribui aquilo que em realidade não tem; o que particularmente se dá em se tratando de fenômenos de antigas datas, e isto tanto mais quanto mais remotas são elas. Destes dois pressupostos, os modernistas deduzem outros tantos cânones que unidos a um terceiro já deduzido de agnosticismos, constituem a base da crítica histórica. Esclareçamos o fato com um exemplo tirado da pessoa de Jesus Cristo. Na pessoa de Cristo, dizem, a ciência e a história não acham  mais do que um homem. Portanto, em virtude do primeiro cânon deduzido do agnosticismo, da história dessa pessoa se deve riscar tudo o que sabe de divino. Ainda mais, por força do segundo cânon, a pessoa histórica de Jesus Cristo foi transfigurado pela fé; logo, convém despojá-la de tudo o que a eleva acima das condições históricas.

Finalmente, a mesma foi desfigurada pela fé, em virtude do terceiro cânon; logo, se devem remover dela as falas, as ações, tudo enfim que não corresponde ao seu caráter, condição e educação, lugar e tempo em que viveu. É em verdade estranho tal modo de raciocinar; contudo é esta a crítica dos modernistas.

O sentimento religioso, que por imanência vital surge dos esconderijos da subconsciência, é pois o gérmen de toda a religião e a razão de tudo o que tem havido e haverá ainda em qualquer religião.

Este  mesmo sentimento rudimentar e quase informe a princípio, pouco a pouco, sob o influxo do misterioso princípio que lhe deu origem, tem-se ido aperfeiçoando, a par com o progresso da vida humana, da qual, como já ficou dito, é uma forma.

Temos, pois, assim a origem de toda a religião, até mesmo da sobrenatural; e estas não passam de meras explicações do sentimento religioso. Nem se pense que a católica é excetuada; está no mesmo nível das outras, pois não nasceu senão pelo processo de imanência vital na consciência de Cristo, homem de natureza extremamente privilegiada, como outro não houve nem haverá. Fica-se pasmo em se ouvindo afirmações tão audaciosas e sacrílegas! Entretanto, Veneráveis Irmãos, não é esta linguagem usada temerariamente só pelos incrédulos. Homens católicos, até muitos sacerdotes, afirmaram estas coisas publicamente, e com delírios tais se vangloriam de reformar a Igreja.

Já não se trata aqui do velho erro, que à natureza humana atribuía um quase direito à ordem sobrenatural.

Vai-se muito mais longe ainda; chega-se até a afirmar que a nossa santíssima religião, no homem Jesus Cristo assim como em nós, é fruto inteiramente espontâneo da natureza. Nada pode vir mais a propósito para dar cabo de toda a ordem sobrenatural. Por isto com suma razão o Concílio Vaticano I definiu: Se alguém disser que o homem não pode ser por Deus elevado a conhecimento e perfeição, que supere as forças da natureza, mas por si mesmo pode e deve, com incessante progresso, chegar finalmente a possuir toda a verdade e todo o bem, seja anátema (De Revel Cân. 3).

Até agora porém, Veneráveis Irmãos, não lhes vimos dar nenhum lugar à ação da inteligência. Contudo, segundo as doutrinas dos modernistas, tem ela também a sua parte no ato de fé. Vejamos como.

Naquele sentimento, dizem, de que tantas vezes já se tem falado, precisamente porque é sentimento e não é conhecimento, Deus de fato se apresenta ao homem, mas de modo tão confuso que em nada ou mal se distingue desse mesmo crente. Faz-se, pois, mister lançar algum raio de luz sobre aquele sentimento, de maneira que Deus se apresente fora e distinto do crente. Ora, isto é obra da inteligência, à qual somente cabe o pensar e o analisar, e por meio da qual o homem a princípio traduz em representações mentais os fenômenos de vida, que nele aparecem, e depois os manifesta com expressões verbais.

Segue-se daí esta vulgar expressão dos modernistas: o homem religioso deve pensar à sua fé. – Sobrevindo, pois, a inteligência ao sentimento, inclina-se sobre este, elabora-o  todo, a modo de um pintor que ilumina e reanima os traços de um quadro estragado pelo tempo. O paralelo é de um dos mestres do modernismo. Neste trabalho a inteligência procede de dois modos: primeiro, por um ato natural e espontâneo, exprimindo a sua noção por uma proposição simples e vulgar; depois, com reflexão e penetração mais íntima, ou, como dizem, elaborando o seu pensamento, exprime o que pensou com proposições secundárias, se forem finalmente sancionadas pelo supremo magistério da Igreja, constituirão o dogma.

Assim pois, na doutrina dos modernistas, chegamos a um dos pontos mais importantes, que é a origem e mesmo a natureza do dogma. A origem do dogma põem-na eles, pois, naquelas primitivas fórmulas simples que, debaixo de certo aspecto, devem considerar-se como essenciais à fé, pois que a revelação, para ser verdadeiramente tal, requer uma clara aparição de Deus na consciência. O mesmo dogma porém, ao que parece, é propriamente constituído pelas fórmulas secundárias. Mas, para bem se  conhecer a natureza do dogma, é preciso primeiro indagar que relações há entre as fórmulas religiosas e o sentimento religioso.

Não haverá dificuldade em o compreender para quem já tiver como certo que estas fórmulas não têm outro fim, senão o de facilitarem ao crente um modo de dar razão da própria fé. De sorte que essas fórmulas são como que umas intermediárias entre o crente e a sua fé; com relação à fé, são expressões inadequadas do seu objeto e pelos modernistas se denominam símbolos; com relação ao crente, reduzem-se a meros instrumentos.

Não é portanto de nenhum modo lícito afirmar que elas exprimem uma verdade absoluta; portanto, como símbolos, são meras imagens de verdade, e portanto devem adaptar-se ao sentimento religioso, enquanto este se refere ao homem; como instrumentos, são veículos de verdade e assim, por sua vez, devem adaptar-se ao homem, enquanto se refere ao sentimento religioso. E, pois que este sentimento, tem por objeto o absoluto, apresenta infinitos aspectos, dos quais pode aparecer, hoje um, amanhã outro e da mesma sorte como aquele que crê pode  passar por essas e aquelas condições, segue-se que também as fórmulas, que chamamos dogmas, devem estar sujeitas a iguais vicissitudes, e por isso também a variarem.

Assim pois, temos o caminho aberto à íntima evolução do dogma. Eis aí um acervo de sofismas, que subvertem e destroem toda a religião!

Ousadamente afirmam os modernistas, e isto mesmo se conclui das suas doutrinas, que os dogmas não somente podem, mas positivamente devem evoluir e mudar-se. De fato, entre os pontos principais da sua doutrina, contam também este, que deduzem da imanência vital: as fórmulas religiosas, para que realmente sejam tais e não só meras especulações da inteligência, precisam ser vitais e viver da mesma vida do sentimento religioso. Daí porém não se deve concluir que essas fórmulas, particularmente se forem só imaginárias, sejam  formadas a bem desse mesmo sentimento religioso; porquanto nada importa a sua origem, nem o seu número, nem a sua qualidade; segue-se, porém, que o sentimento religioso, embora modificando-as, se houver mister, as torna vitais e fá-las viver de sua própria vida. Em outros termos, é preciso a fórmula primitiva seja aceita e confirmada pelo coração, e que a subseqüente elaboração das fórmulas secundárias seja feita sob a direção do coração. Procede daí que tais fórmulas para serem vitais, hão de ser e ficar adaptadas tanto à fé quanto ao crente. Pelo que, se por qualquer motivo cessar essa adaptação, perdem sua primitiva significação e devem ser mudadas. Ora, sendo assim mutável o valor e a sorte das fórmulas dogmáticas, não é de admirar que os modernistas tanto as escarneçam e desprezem, e que por conseguinte só reconheçam e exaltem o sentimento e a vida religiosa. Por isto, com o maior atrevimento criticam a Igreja acusando-a de caminhar fora da estrada, e de não saber distinguir entre o sentido material das fórmulas e sua significação religiosa e moral, e ainda mais, agarrando-se obstinadamente, mas em vão, a fórmulas falhas de sentido, de deixar a própria religião rolar no abismo. Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, são esses homens que inchados de orgulhosa ciência, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuíno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, não procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostólicas tradições, apegam-se a doutrinas ocas, fúteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultíssimos julgam fortalecer e sustentar  a verdade (Gregório XVI, Encíclica “Singulari Nos” 7 Jul. 1834).

Assim, Veneráveis Irmãos, pensa o modernista como filósofo.
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O modernista crente
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Agora, passando a considerá-lo como crente, se quisermos conhecer de que modo, no modernismo, o crente difere do filósofo, convém observar que, embora o filósofo reconheça por objeto da fé a realidade divina, contudo esta realidade não se acha noutra parte senão na alma do crente, como objeto de sentimento e afirmação; porém, se ela em si mesma existe ou não fora daquele sentimento e daquela afirmação, isto não importa ao filósofo. Se, porém, procurarmos saber que fundamento tem esta asserção do crente, respondem os modernistas: é a experiência individual. Com esta afirmação, enquanto na verdade discordam dos racionalistas, caem na opinião dos protestantes e dos pseudo-místicos.

Eis como eles o declaram: no sentimento religioso deve reconhecer-se uma espécie de intuição do coração, que pôs o homem em contato imediato com a própria realidade de Deus e lhe infunde tal persuasão da existência dele e da sua ação, tanto dentro como fora do homem, que excede a força de qualquer persuasão, que a ciência possa adquirir. Afirmam, portanto, uma verdadeira experiência, capaz de vencer qualquer experiência racional; e se esta for negada por alguém, como pelos racionalistas, dizem que isto sucede porque estes não querem pôr-se nas condições morais que são necessárias para consegui-la. Ora, tal experiência é a que faz própria e verdadeiramente crente a todo aquele que a conseguir. Quanto vai dessa à doutrina católica! Já vimos essas idéias condenadas pelo Concílio Vaticano I. Veremos ainda como, com semelhantes teorias, unidos a outros erros já mencionados, se abre caminho para o ateísmo. Cumpre, entretanto, desde já, notar que, posta esta doutrina da experiência unida à outra do simbolismo, toda religião, não executada sequer a dos idólatras, deve ser tida por verdadeira. E na verdade, porque não fora possível o se acharem tais experiências em qualquer religião? E não poucos presumem que de fato já se as tenha encontrado. Com que direito, pois, os modernistas negarão a verdade a uma experiência afirmada, por exemplo, por um maometano? Com que direito reivindicarão experiências verdadeiras só para os católicos? E os modernistas de fato não negam, ao contrário, concedem, uns confusa e outros manifestamente, que todas as religiões são verdadeiras. É claro, porém, que eles não poderiam pensar de outro modo.

Em verdade, postos os seus princípios, em que se poderiam porventura fundar para atribuir falsidade a  uma religião qualquer? Sem dúvida seria por algum destes dois princípios: ou por falsidade do sentimento religioso, ou por falsidade da fórmula proferida pela inteligência. Ora, o sentimento religioso, ainda que às vezes menos perfeito, é sempre o mesmo; e a fórmula intelectual para ser verdadeira basta que corresponda ao sentimento religioso e ao crente, seja qual for a força do engenho deste. Quando muito, no conflito entre as diversas religiões, os modernistas poderão sustentar que a católica tem mais verdade, porque é mais viva, e merece mais o título de cristã, porque mais completamente corresponde às origens do cristianismo. A ninguém pode parecer absurdo que estas conseqüências todas dimanem daquelas premissas. Absurdíssimo é, porém, que católicos e sacerdotes que, como preferimos crer, têm horror a tão monstruosas afirmações, se ponham quase em condição de admiti-las. Pois, tais são os louvores que tributam aos mestres desses erros, tais as homenagens que publicamente lhes prestam, que facilmente dão a entender que as suas honras não atingem as pessoas, que talvez de todo não desmereçam, antes, porém, aos erros, que elas professam às claras, e entre o povo procuram com todos os esforços propagar.

Há ainda outra face, além da que já vimos, nesta doutrina da experiência, de todo contrária à verdade católica. Pois, ela se estende e se aplica à tradição que a Igreja tem sustentado até hoje, e a destrói. E com efeito, os modernistas concebem a tradição como uma comunicação da experiência original, feita a outrem pela pregação, mediante a fórmula intelectual.

Por isto a esta fórmula, além do valor representativo, atribuem certa eficácia de sugestão, tanto naquele que crê, para despertar o sentimento religioso quiçá entorpecido, e restaurar a experiência de há muito adquirida, como naqueles que ainda não crêem, para despertar neles, pela primeira vez, o sentimento religioso e produzir a experiência. Por esta maneira a experiência religiosa abundantemente se propaga entre os povos: não só entre os existentes, pela pregação, mas também entre os vindouros, quer pelo livro, quer pela transmissão oral de uns a outros. Esta comunicação da experiência às vezes lança raízes e vinga; outras vezes se esteriliza logo e morre. O viver para os modernistas é prova de verdade; e a razão disto é que verdade e vida para eles são uma e a mesma coisa. E daqui, mais uma vez, se infere que todas as religiões existentes são verdadeiras, do contrário já não existiriam.

Levadas as coisas até este ponto, Veneráveis Irmãos, já temos muito para bem conhecermos a ordem que os modernistas estabelecem entre a fé e a ciência; notando-se que neste nome de ciência incluem também a história. Antes de tudo se deve ter por certo que o objeto de uma é de todo estranho e separado do objeto de outra. Porquanto a fé unicamente se ocupa de uma coisa, que a ciência declara ser para si incognoscível. Segue-se, pois, que é diversa a tarefa de cada uma; a ciência acha-se toda na realidade dos fenômenos, onde a fé por maneira alguma penetra; a fé, pelo contrário, ocupa-se da realidade divina, que de todo é desconhecido à ciência. Conclui-se, portanto, que nunca poderá haver conflito entre a fé e a ciência; porque, se cada uma se restringir a seu campo, nunca poderão encontrar-se, nem portanto contradizer-se. Se, entretanto, alguém objetar que no mundo visível há coisas que também pertencem à fé, como a vida humana de Cristo, responderão os modernistas negando.  E a razão é que, conquanto tais coisas estejam no número dos fenômenos, todavia, enquanto viveram pela fé e, no modo já indicado, foram pela mesma transfiguradas e desfiguradas, foram subtraídas ao mundo sensível e passaram a ser matéria do divino. Por este motivo, se ainda se quisesse saber se Cristo fez verdadeiros milagres e profecias, se verdadeiramente ressuscitou e subiu ao céu, a ciência agnóstica o negará e a fé o afirmará; e nem assim haverá luta entre as duas. Nega-o o filósofo como filósofo, falando a filósofos e considerando Cristo na sua realidade histórica; afirma-o o crente, como crente, falando a crentes e considerando a vida de Cristo a reviver pela fé e na fé.

De muito se enganaria quem, postas estas teorias, se julgasse autorizado a crer que a ciência e a fé são independentes uma da outra. Por parte da ciência, essa independência está fora de dúvida; mas, já não é assim por parte da fé, que não por um só, mas por três motivos, se deve submeter à ciência. Efetivamente é de notar, em primeiro lugar, que em todo  fato religioso, tirada a realidade divina e a experiência que o crente tem da mesma, tudo o mais, e principalmente as fórmulas religiosas, não sai do campo dos fenômenos; cai portanto sob o domínio da ciência. Afaste-se embora do mundo o crente, se lhe aprouver; mas, enquanto se achar no mundo, nunca poderá se furtar, queira-o ou não, às leis, às vistas, ao juízo da ciência e da história. Ainda mais, embora se tenha dito que Deus só é objeto da fé, isto entretanto não se deve entender senão da realidade divina e não da idéia de Deus.

Esta é dependente da ciência; a qual, enquanto se deleita na ordem lógica, também se eleva até o absoluto e o ideal. É, pois, direito da filosofia ou da ciência indagar da idéia de Deus, dirigi-la na sua evolução, corrigi-la quando se lhe misturar qualquer elemento estranho. Fundados nisto é que os modernistas sustentam que a evolução religiosa deve ser coordenada com a evolução moral e intelectual; isto é, como ensina um dos seus mestres, deve ser-lhes subordinada. Deve-se enfim observar que o homem, em si, não suporta um dualismo, por conseguinte o crente experimenta em si mesmo uma íntima necessidade de harmonizar de tal sorte a fé com a ciência, que aquela não se oponha à idéia geral que a ciência forma do universo. Conclui-se, pois, que a ciência é de todo independente da fé; esta, ao contrário, embora se declame que é estranha à ciência, deve-lhe submissão. Todas estas coisas, Veneráveis Irmãos, são diametralmente contrárias ao que o Nosso antecessor Pio IX ensinava, dizendo (Brev. ad Ep. Wratislaw. 15 jun. 1857): Em matéria de religião, é dever da filosofia não dominar, mas servir, não prescrever o que se deve crer, mas aceitá-lo com razoável respeito, não perscrutar os profundos dos mistérios de Deus, mas piedosa e humildemente venerá-los. Os modernistas entendem isto às avessas: há, pois, sobeja razão de aplicar-se-lhes o que outro nosso predecessor, Gregório IX, escrevia de alguns teólogos do seu tempo: Alguns dentre vós, excessivamente cheios de espírito de vaidade, com profanas novidades se esforçam por transpor os limites traçados pelos Santos Padres, curvando à doutrina filosófica dos racionalistas a interpretação das páginas celestes, não proveito dos ouvintes, mas para dar mostras do saber…E estes, arrastados por doutrinas diversas, transformam em cauda a cabeça e obrigam a rainha a servir à escrava (Ep. ad  Magistros theol., Paris, julho de 1223).

Estas coisas tornar-se-ão ainda mais claras, tendo-se em vista o procedimento dos modernistas, de todo conforme com o que ensinam. Nos seus escritos e discursos parecem, não raro, sustentar ora uma ora outra doutrina, de modo a facilmente parecerem vagos e incertos. Fazem-no, porém, de caso pensado; isto é, baseados na opinião que sustentam, da mútua separação entre a fé e a ciência. É por isto que nos seus livros muitas coisas se encontram das aceitas pelo católicos; mas, ao virar a página, outras se vêem que pareceriam ditadas por um racionalista. Escrevendo, pois, história, nenhuma menção fazem da divindade de Cristo; ao passo que, pregando nas igrejas, com firmeza a professam. Da mesma sorte, na história não fazem o menor caso dos Padres nem dos Concílios; nas instruções catequéticas, porém, citam-nos com respeito. Distinguem, portanto, outrossim a exegese teológica e pastoral da exegese científica histórica. Mais ainda: fundados no princípio que a ciência em nada depende da fé, quando tratam de filosofia, de história, de crítica, não sentindo horror de pisar nas pegadas de Lutero (cf. Prop. 29 conden. por Leão X, Bulla “Exurge Domine” de 16 de maio de 1520): Temos aberta a estrada para enfrentar a autoridade dos Concílios e para contradizer à vontade as suas deliberações, e julgar os seus decretos e manifestar às claras tudo o que nos parece verdade, seja embora aprovado ou condenado por qualquer Concílio), ostentam certo desprezo das doutrinas católicas, dos Santos Padres, dos concílios ecumênicos, dos magistérios eclesiásticos; e se forem por isto repreendidos, queixam-se de que se lhes tolhe a liberdade. Finalmente, professando que a fé há de sujeitar-se à ciência, continuamente e às claras criticam a Igreja, porque irredutivelmente se recusa a acomodar os seus dogmas às opiniões da filosofia, e eles, por sua vez, posta de parte a velha teologia, empenham-se por divulgar uma nova, toda amoldada aos desvarios dos filósofos.
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O modernista teólogo
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Já é tempo, Veneráveis Irmãos, de passarmos a considerar os modernistas no campo teológico. Empenho árduo este, mas em poucas palavras diremos tudo. O fim a alcançar é a conciliação da fé com a ciência, ficando porém sempre incólume a primazia da ciência sobre a fé. Neste assunto o teólogo modernista se utiliza dos mesmos princípios da imanência  e do simbolismo. Eis com que rapidez ele executa a sua tarefa: diz o filósofo que o princípio da fé é imanente; acrescenta o crente que esse princípio é Deus; conclui pois o teólogo: logo Deus é imanente no homem. Disto se conclui a imanência teológica. Outra adaptação: o filósofo tem por certo de que as representações da fé são puramente simbólicas; o crente afirma que o objeto da fé é Deus em si mesmo; conclui pois o teólogo: logo as representações da realidade divina são simbólicas. Segue-se daqui o simbolismo teológico. São erros enormes deveras; e quanto sejam perniciosos vamos ver de um modo luminoso, observando-lhes as conseqüências. E para falarmos desde já do simbolismo, como os símbolos são: símbolos com relação ao objeto, e instrumentos com relação ao crente, dizem os modernistas que o crente, antes de tudo, não deve apegar-se demais à fórmula, que deve servir-lhe só no intuito de unir-se com a verdade absoluta, que a fórmula ao mesmo tempo revela e esconde; isto é, esforça-se por exprimi-la, sem jamais o conseguir. Querem, em segundo lugar, que o crente use de tais fórmulas tanto quanto lhe forem úteis, porquanto elas são dadas para auxílio e não para embaraço; salvo porém o respeito que, por motivos sociais, se deve às fórmulas pelo público magistério julgadas aptas para exprimir a consciência comum, e enquanto o mesmo magistério não julgar de outro modo.

Quanto à imanência, é na verdade difícil indicar o que pensam os modernistas, pois há entre eles diversas opiniões. Uns fazem-na consistir em que Deus, operando no homem, está mais intimamente no homem do que o próprio homem em si mesmo; e esta afirmação sendo bem entendida, não merece censura. Pretendem outros que a ação divina é uma e a mesma com a ação da natureza, como a causa primeira com a causa segunda; e isto já destruiria a ordem sobrenatural. Outros explicam-na, enfim, em um sentido que tem ressaibos de panteísmo; e estes, a falar a verdade, são mais coerentes com o restante das sua doutrinas.

A este postulado da imanência ainda outro se acrescenta, que pode ser chamado da permanência divina; estes entre si diferem do mesmo modo como a experiência privada difere da experiência transmitida por tradição. Esclareçamos isto com um exemplo, e seja ele tirado da Igreja e dos Sacramentos. Não se pode crer, dizem, que a Igreja e os Sacramentos foram instituídos pelo próprio Cristo. Isto não é permitido pelo agnosticismo, que em Cristo não vê mais do que um homem, cuja consciência religiosa, como  a de qualquer outro homem, pouco a pouco se formou; não o permite a lei da imanência, que não admite, como eles se exprimem, externas aplicações; proíbe-o também a lei da evolução, que para o desenvolvimento dos germens requer tempo e uma certa série de circunstâncias; proíbe-o enfim a história, que mostra que tal foi realmente o curso dos acontecimentos. Todavia deve admitir-se que a Igreja e os Sacramentos foram mediatamente instituídos por Cristo. Mas de que modo? Todas as consciências cristãs, é assim que eles o explicam, estavam virtualmente incluídas na consciência de Cristo, como a planta na semente. Ora, como os rebentos vivem a vida da semente, assim também afirmar-se deve que todos os cristãos vivem a vida de Cristo. Mas a vida de Cristo, segundo a fé, é divina; logo também a vida dos cristãos. Se pois esta vida, no correr dos séculos, deu origem à Igreja e aos Sacramentos, com toda a razão se poderá dizer que tal origem procede de Cristo e é divina. Pelo mesmo processo provam que as Escrituras e os dogmas são divinos. E com isto se conclui toda a teologia dos modernistas. É bem pouco, em verdade; porém, mais que abundante para quem professa que sempre e em tudo se devem respeitar as conclusões da ciência. Cada um entretanto poderá ir por si mesmo fazendo a aplicação destas teorias aos outros pontos, que vamos expor.

 Falamos até agora da origem e natureza da fé. Mas, como são muito os frutos da mesma, sendo os principais a Igreja, o dogma, o culto, os livros sagrados, também a respeito destes devemos saber o que dizem os modernistas. Começando pelo dogma, já sabemos, pelo que ficou dito, qual seja a sua origem e natureza. O dogma nasce da necessidade que o crente experimenta de elaborar o seu pensamento religioso, a fim de tornar sempre mais clara a sua consciência e a de outrem. Consiste todo esse trabalho em esquadrinhar e polir a fórmula primitiva, não por certo em si mesma e racionalmente, mas segundo as circunstâncias ou, como de modo pouco inteligível dizem, vitalmente. O resultado disto é que, como já dissemos, ao redor da mesma se vão formando fórmulas secundárias, que mais tarde sintetizadas e reunidas em um único todo doutrinal, quando forem ratificadas pelo magistério público como correspondentes a consciência comum, são chamados dogmas. Destas devem cuidadosamente distinguir-se as investigações teológicas; as quais porém, posto que não vivem da vida do dogma, contudo não são inúteis, seja para harmonizar a religião com a ciência e dissipar qualquer contraste entre elas, seja para iluminar a religião e defendê-la; e talvez ainda tenham a utilidade de preparar um futuro dogma. Do culto não haveria muito que dizer, se debaixo deste nome não se achassem também os Sacramentos, a respeito dos quais muito erram os modernistas. Pretendem que o culto resulta de um duplo impulso; pois que, como vimos, pelo seu sistema, tudo se deve atribuir a íntimos impulsos. O primeiro é dar à religião, alguma coisa de sensível; o segundo é a necessidade de propagá-la, coisa esta que se não poderia realizar sem uma certa forma sensível e sem atos santificantes, que se chamam Sacramentos. Os modernistas, porém, consideram os Sacramentos como meros símbolos ou sinais, bem que não destituídos de eficácia. E para indicar essa eficácia, servem-lhes de exemplo certas palavras que facilmente vingam, por terem conseguido a força de divulgar certas idéias de grande eficácia, que muito impressionam os ânimos. E assim como aquelas palavras são destinadas a despertar as referidas idéias, assim também o são os Sacramentos com relação ao sentimento religioso; nada mais do que isto. Falariam mais claro afirmando logo que os Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé. Mas esta proposição é condenada pelo Concílio de Trento (Sess. VII, de Sacramentis in genere, cân.5): “Se alguém disser que estes Sacramentos foram só instituídos para nutrirem a fé, seja anátema”.

Já alguma coisa ficou dito sobre a natureza e origem dos livros sagrados. Segundo a mente dos modernistas, bem se pode defini-los uma coleção de experiências,  não por certo das que de ordinário qualquer pessoa adquire, mas das extraordinárias e das mais elevadas que se têm dado em uma qualquer religião. É precisamente isto que os modernistas ensinam dos nossos livros do Antigo e Novo Testamento.

Todavia, a estas suas opiniões mui astutamente acrescentam que, embora a experiência deva ser do tempo presente, pode assim mesmo receber matéria do passado e do futuro, enquanto o crente pela lembrança revive o passado como se fora o presente, ou já vive do futuro por antecipação. Deste modo se explica porque os livros históricos e apocalípticos são computados entre os livros sagrados. Assim pois, nestes livros, Deus fala por meio do crente; mas, como diz a teologia modernista, só por imanência e permanência vital. Perguntar-lhes-emos, pois, que é feito da inspiração?

Respondem-nos que ela,  a não ser talvez por uma certa veemência, não se distingue da necessidade que o crente experimenta de manifestar vocalmente ou por escrito a própria fé. Nota-se aqui certa semelhança com a inspiração poética; e neste sentido um deles dizia: Deus está entre nós, e agitados por ele nós nos inflamamos. Deste modo é que se deve explicar a origem da inspiração dos livros sagrados. Sustentam ainda os modernistas que a nenhuma passagem desses livros falta essa inspiração.

Neste ponto alguém poderia julgá-los mais ortodoxos do que certos exegetas recentes, que em parte restringem a inspiração como, por exemplo, nas tais citações tácitas. Mas isto não passa de aparências e palavras.

De fato, se segundo as leis do agnosticismo, consideramos a Bíblia um trabalho humano, feito por homens para utilidade de outros homens, seja embora lícito ao teólogo apelidá-la de divina por imanência, de que modo poderia restringir-se nela a inspiração?

Tal inspiração, de fato, admitem-na os modernistas; não, porém, no sentido católico.

Maior extensão de matéria nos oferece o que os modernistas afirmam da Igreja. Pressupõem que ela é fruto de uma dupla necessidade, uma no crente, principalmente naquele que, tendo tido alguma experiência original e singular, precisa comunicar a outrem a própria fé; outra na coletividade, depois que a fé se tornou comum a muitos, para se reunir em sociedade, e conservar, dilatar e propagar o bem comum. Que é, pois, a Igreja? É um parto da consciência coletiva, isto é, da coletividade das consciências individuais que, por virtude da permanência vital, estão todas pendentes do primeiro crente, que para os católicos foi Cristo. Ora, toda sociedade precisa de uma autoridade que a reja, e cujo mister seja dirigir os membros para o fim comum e conservar com prudência os elementos de coesão, que em uma sociedade religiosa são a doutrina e o culto. Há, por isso, na Igreja Católica uma tríplice autoridade: disciplinar, dogmática e cultural. A natureza desta autoridade deve ser deduzida da sua origem; e da natureza, por sua vez, devem coligir-se os direitos e os deveres. Foi erro das eras passadas pensar-se que a autoridade da Igreja emanou de um princípio estranho, isto é, imediatamente de Deus; e por isto, com razão era ela considerada autocrática. Estas teorias, porém, já não são para os tempos que correm.

Assim como a Igreja emanou da coletividade das consciências, a autoridade emana virtualmente da mesma Igreja. A autoridade, portanto, da mesma sorte que a Igreja, nasce da consciência religiosa, e por esta razão fica dependente da mesma; e se faltar a essa dependência, torna-se tirânica. Nos tempos que correm o sentimento de liberdade atingiu o seu pleno desenvolvimento. No estado civil a consciência pública quis um regime popular. Mas a consciência do homem, assim como a vida, é uma só. Se, pois, a autoridade da Igreja não quer suscitar e manter uma intestina guerra nas consciências humanas, há também mister curvar-se a formas democráticas; tanto mais que,  se o não quiser, a hecatombe será iminente. Loucura seria crer que o vivo sentimento de liberdade, ora dominante, retroceda.

Reprimindo e enclausurando com violência, transbordará mais impetuoso, destruindo conjuntamente a religião e a Igreja. São estes os raciocínios dos modernistas que, por isto, estão todos empenhados em achar o modo de conciliar a autoridade da Igreja com a liberdade dos crentes.

Acresce ainda que não é só dentro do seu recinto que a Igreja tem com quem entender-se amigavelmente, mas também fora. Não se acha ela só no mundo a ocupá-lo; ocupam-no também outras sociedades, com as quais não pode deixar de tratar e de relacionar-se. Convém, pois, determinar quais sejam os direitos e os deveres da Igreja para com as sociedades civis; e bem se vê que tal determinação deve ser tirada  da natureza da mesma Igreja, tal qual os modernistas no-la descreveram.

As regras que hão de servir para este fim são as mesmas, que acima serviram para a ciência e a fé. Tratava-se então de objetos, aqui de fins. Assim pois, como por causa do objeto se disse que a fé e a ciência são mutuamente estranhas, também o Estado e a Igreja são estranhos um à outra, por causa do fim a que tendem, temporal para o Estado, espiritual para a Igreja. Falava-se outrora do temporal sujeito ao espiritual, de questões mistas, em que a Igreja intervinha qual senhora e rainha, porque então se tinha a Igreja como instituída imediatamente por Deus,  enquanto autor da ordem sobrenatural. Mas estas crenças já não são admitidas pela filosofia, nem pela história. Deve, portanto, a Igreja separar-se do Estado, e assim  também o católico do cidadão. E é por este motivo que o católico, não se importando com a autoridade, com os desejos, com os conselhos e com as ordens da Igreja, e até mesmo desprezando as suas repreensões, tem direito e dever de fazer o que julgar o mais oportuno ao bem da pátria.

Querer, sob qualquer pretexto, impor ao cidadão uma norma de proceder, é por por parte do poder eclesiástico verdadeiro abuso, que se deve repelir com toda a energia. – Veneráveis Irmãos, as teorias de que dimanam todos estes erros são as mesmas que o Nosso Predecessor Pio VI condenou solenemente na Constituição apostólica Auctorem fidei (Prop. 2. A proposição que afirma que o poder foi dado por Deus à Igreja, para que fosse comunicado aos Pastores, que são os seus ministros, para a salvação das almas, entendida no sentido de que o poder do ministério e regime eclesiástico passa da comunidade dos fiéis para os pastores: é heresia. Prop. 3. Também aquele que afirma que o Romano Pontífice é chefe ministerial, entendida no sentido de que, não de Cristo na pessoa do bem-aventurado Pedro, mas da Igreja recebeu como sucessor de Pedro, verdadeiro Vigário de Cristo e chefe de toda a Igreja: é herética).

No entanto, à escola dos modernistas não basta que o Estado seja separado da Igreja. Assim como a fé deve subordinar-se à ciência, quanto aos elementos fenomênicos, assim também nas coisas temporais a Igreja tem que sujeitar-se ao Estado.   Isto não afirmam talvez muito abertamente; mas por força de raciocínio são obrigados a admiti-lo. Em verdade, admitido que o Estado tenha absoluta soberania em tudo o que é temporal, se suceder que o crente, não satisfeito com a religião do espírito, se manifeste em atos exteriores, como, por exemplo, em administrar ou receber os Sacramentos, isto já deve necessariamente cair sob o domínio do Estado. Postas as coisas neste pé, para que servirá a autoridade eclesiástica? Visto que esta não tem razão de ser sem os atos externos, estará em tudo e por tudo sujeita ao poder civil. É esta inelutável conseqüência que leva muitos dentre os protestantes liberais a desembaraçar-se de todo o culto externo e até de toda a sociedade religiosa externa, procurando pôr em voga uma religião, que chamam individual. E se os modernistas, desde já, não se atiram francamente a esses extremos, insistem pelo menos em que a Igreja se deixe espontaneamente conduzir por eles até onde pretendem levá-la e se amolde às formas civis. Isto quanto à autoridade disciplinar.

Mais grave e perniciosos são suas afirmações relativamente à autoridade doutrinal e dogmática. Assim pensam eles acerca do magistério eclesiástico: a sociedade religiosa não pode ser uma, sem unidade de consciência nos seus membros e unidade de fórmula. Mas esta dupla unidade requer por assim dizer um entendimento comum, a que compete achar e determinar a fórmula que melhor corresponda à consciência comum; e a esse entendimento convém ainda atribuir a autoridade conveniente, para poder impor à comunidade a fórmula estabelecida. Nesta união e quase fusão da mente designadora de fórmula e da autoridade que a impõe, acham os modernistas o conceito de magistério eclesiástico. Visto pois que o magistério, afinal de contas, não é mais do que um produto das consciências individuais, e só para cômodo das mesmas consciências lhe é atribuído ofício público, resulta necessariamente que ele depende dessas consciências, e por conseguinte deve inclinar-se a formas democráticas. Proibir, portanto, que as consciências dos indivíduos manifestem publicamente as suas necessidades, e impedir à crítica o caminho que leva o dogma a necessárias evoluções, não é fazer uso de um poder dado para o bem público, mas abusar dele. – Da mesma sorte , no próprio uso do poder deve haver modo e medida. É quase tirania condenar um livro sem que o autor o saiba, e sem admitir nenhuma explicação nem discussões. Ainda aqui, portanto, deve adotar-se um meio termo, que ao mesmo tempo salve a autoridade e a liberdade. E nesse ínterim o católico poderá agir de tal sorte que, protestando o seu profundo respeito à autoridade, continue sempre a trabalhar à sua vontade. Em geral admoestam a Igreja de que, sendo o fim do poder eclesiástico todo espiritual, não lhe assentam bem essas exibições de aparato exterior e de magnificência, com que sói comparecer às vistas da multidão. E quando assim o dizem, procuram esquecer que a religião, conquanto essencialmente espiritual, não pode restringir-se exclusivamente às coisas do espírito, e que as honras prestadas à autoridade espiritual se referem à pessoa de Cristo que a instituiu.

Para concluir toda esta matéria da fé e seus diversos frutos, resta-nos por fim, Veneráveis Irmãos, ouvir as teorias dos modernistas acerca do desenvolvimento dos mesmos. Têm eles por princípio geral que numa religião viva, tudo deve ser mutável e mudar-se de fato. Por aqui abrem caminho para uma das suas principais doutrinas, que é a evolução. O dogma, pois, a Igreja, o culto, os livros sagrados e até mesmo a fé, se não forem coisas mortas, devem sujeitar-se às leis da evolução. Quem se lembrar de tudo o que os modernistas ensinam sobre cada um desses assuntos, já não ouvirá com pasmo a afirmação deste princípio. Posta a lei da evolução, os próprios modernistas passam a descrever-nos o modo como ela se efetua. E começam pela fé. Dizem que a forma primitiva da fé foi rudimentar e indistintamente comum a todos os homens; porque se originava da própria natureza e vida do homem. Progrediu por evolução vital; quer dizer, não pelo acréscimo de novas formas, vindas de fora, mas por uma crescente penetração do sentimento religioso na consciência. Esse mesmo progresso se realizou de duas maneiras: primeiro negativamente, eliminando todo o elemento estranho, como seja o sentimento de família ou de nacionalidade; em  seguida positivamente, com o aperfeiçoamento intelectual e moral do homem, donde resultou maior clareza para a idéia divina e excelência para o sentimento religioso. As mesmas causas que serviram para explicar a origem da fé, explicam também o seu progresso. A estas, porém, devem acrescentar-se aqueles gênios religiosos, a que chamamos profetas, dos quais o mais iminente foi Cristo; seja porque eles na sua vida ou nas suas palavras tinham algo de misterioso, que a fé atribuía à divindade, seja porque alcançaram novas e desconhecidas experiências em plena harmonia com as exigências do seu tempo.

O progresso do dogma nasce principalmente da necessidade de vencer os obstáculos da fé, derrotar os adversários, repelir as dificuldades. Deve-se ainda acrescentar um contínuo esforço, para se penetrar cada vez mais nos arcanos da fé. Deixando de parte outros exemplos, assim sucedeu com Cristo: aquilo de divino que a fé a princípio lhe atribuía, foi-se gradualmente aumentando, até que definitivamente foi tido por Deus.

O principal estímulo de evolução para o culto, é a necessidade de se adaptar aos costumes e tradições dos povos e bem assim de gozar da eficácia de certos atos, já admitidos pelo uso. A Igreja acha finalmente a razão do seu evoluir na necessidade de se acomodar às condições históricas e às formas do governo publicamente adotadas. Isto dizem os modernistas de cada um daqueles princípios. E aqui, antes de passarmos adiante, queremos insistir em que se atente nessa doutrina das necessidades, porque ela, além do que já vimos, é como que a base e o fundamento desse famoso método que chamam histórico.

Detendo-nos ainda na doutrina da evolução, observamos que, embora as necessidades  sirvam de estímulo para a evolução, se ela não tivesse outros estímulos senão esses, facilmente transporia os limites da tradição, e assim desligada do primitivo princípio vital, já não levaria ao progresso, mas à ruína. Estudando, pois, mais a fundo o pensar dos modernistas, deve-se dizer que a evolução é como o resultado de duas forças que se combatem, sendo uma delas progressiva e outra conservadora. A força conservadora está na Igreja e é a tradição. O exercício desta é próprio da autoridade religiosa, quer de direito, pois que é de natureza de toda autoridade adstringir-se o mais possível à tradição; quer de fato, pois que, retraída das contingências da vida, pouco ou talvez nada sente dos estímulos que impelem ao progresso. Ao contrário, a força que, correspondendo às necessidades, arrasta ao progresso, oculta-se e trabalha nas consciências individuais, principalmente naquelas que, como eles dizem, se acham mais em contato com  vida. Neste ponto, Veneráveis Irmãos, já se percebe o despontar daquela perniciosíssima doutrina que introduz na Igreja o laicato como fator de progresso.

De uma espécie de convenção entre as forças de conservação e de progresso, isto é, entre a autoridade e as consciências individuais, nascem as transformações e os progressos. As consciências individuais, ou pelo menos algumas delas, fazem pressão sobre a consciência coletiva; e esta, por sua vez, sobre a autoridade, obrigando-a a capitular e pactuar. Admitido isto, não é de admirar ver-se como os modernistas pasmam por serem admoestados ou punidos. O que se lhes imputou como culpa, consideram um dever sagrado. Ninguém melhor do que eles conhece as necessidades das consciências, porque são eles e não a autoridade eclesiástica, os que se acham mais em contato com elas. Julgam quase ter em si encarnadas todas essas necessidades; daí a persuasão que têm de falar e escrever sem medo. Nada se lhes dá das censuras da autoridade; porque se sentem fortes com a consciência do dever, e por íntima experiência sabem que merecem aplausos e não censuras. Nem tão pouco ignoram que os progressos não se alcançam sem combates, nem há combates sem vítimas, como o foram os profetas e Cristo. Ainda que a autoridade os maltrate, não a odeiam; sabem que assim está cumprindo o seu dever. Lamentam apenas que se lhes não prestem ouvidos, porque isto será causa de atraso ao progresso dos espíritos; mas, há de vir a hora de se romperem as barreiras, porque as leis da evolução poderão ser refreadas; quebradas, porém, nunca. Traçado este caminho, eles continuam; continuam, com desprezo das repreensões e condenações, ocultando audácia inaudita com o véu de aparente humildade. Simulam finalmente curvar a cabeça; mas, no entanto a mão e o pensamento prosseguem o seu trabalho com ousadia ainda maior. E assim avançam com toda a reflexão e prudência, tanto porque estão persuadidos de que a autoridade deve ser estimulada e não destruída, como também porque precisam de permanecer no seio da Igreja, para conseguirem pouco a pouco assenhorear-se da consciência coletiva, transformando-a; mal percebem porém, quando assim se exprimem, que estão confessando que a consciência coletiva diverge dos seus sentimentos, e que portanto não têm direito de declarar-se intérpretes da mesma.

Nada, portanto, Veneráveis Irmãos, se pode dizer estável ou imutável na Igreja, segundo o modo de agir e de pensar dos modernistas. Para o que também não lhes faltaram precursores, esses de quem o nosso predecessor Pio IX escreveu: estes inimigos da revelação divina, que exaltam com os maiores louvores o progresso humano, desejariam com temerário e sacrílego atrevimento introduzi-lo na religião católica, como se a mesma não fosse obra de Deus, mas obra dos homens, ou algum sistema filosófico, que se possa aperfeiçoar por meios humanos (Enc. “Qui pluribus”, 9 de nov. de 1846). acerca da revelação particularmente, e do dogma, os modernistas nada acharam de novo; pois, a sua mesma doutrina, antes deles, já fora condenada no Silabo de Pio IX nestes termos: A divina revelação é imperfeita e por isto está sujeita a contínuo e indefinido progresso, correspondente ao da razão humana (Syllabo, proposição condenada  5); e mais solenemente ainda a proscreve o Concílio Vaticano I por estas palavras: A doutrina da fé por Deus revelada, não é proposta à inteligência humana para ser aperfeiçoada, como uma doutrina filosófica, mas é um depósito confiado à esposa de Cristo, para ser guardado com fidelidade e declarado com infalibilidade. Segue-se pois que também se deve conservar sempre aquele mesmo sentido dos sagrados dogmas, já uma vez declarado pela Santa Mãe Igreja, nem se deve jamais afastar daquele sentido sob pretexto e em nome de mais elevada compreensão (Const. “Dei Fillius”, cap. IV).  De maneira alguma poderá seguir-se daí que fique impedida a explicação dos nossos conhecimentos, mesmo relativamente à fé; ao contrário, isto a auxilia e promove. Neste sentido é que o Concílio prossegue dizendo: Cresça, pois, e com ardor progrida a compreensão, a ciência, a sapiência tanto de cada um como de todos, tanto de um só homem como de toda a Igreja com o passar das idades e dos séculos; mas no seu gênero somente, isto é, no mesmo dogma, no mesmo sentido, no mesmo parecer (Lugar citado).
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O modernista historiador e crítico
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Já entre os sequazes do modernismo consideramos o filósofo, o crente e o teólogo; resta agora examinarmos também o historiador, o crítico e o apologista.

Há certos modernistas que se atiram a escrever história, que parecem muito preocupados em não passar por filósofos e chegam até a declarar-se totalmente alheios aos conhecimentos filosóficos. É isto um rasgo de finíssima  astúcia; para que ninguém os julgue embebidos de preconceitos filosóficos e assim pareçam, como eles dizem, completamente objetivos. Em verdade, porém, a sua história ou crítica não fala senão filosofia e as suas deduções procedem por bom raciocínio dos seus princípios filosóficos. Isto se faz manifesto a quem refletir com ponderação. Os três primeiros cânones desses tais historiadores ou críticos são aqueles mesmos princípios que acima deduzimos dos filósofos, isto é, o agnosticismo, o teorema da transfiguração das coisas pela fé, e o outro que Nos pareceu poder denominar da desfiguração. Vamos examinar-lhes já, em separado, as conseqüências. Segundo o agnosticismo, a história, bem como a ciência, só trata de fenômenos. Por conseguinte, tanto Deus como qualquer intervenção divina nas causas humanas deve ser relegado para a fé, como de sua exclusiva competência. Se tratar, pois, de uma causa em que intervier duplo elemento, isto é, o divino e o humano, como Cristo, a Igreja, os Sacramentos e coisas semelhantes, devem separar-se e discriminar-se tais elementos, de tal modo que o que é humano passe   para a história, o que é divino para a fé. É este o motivo da distinção que soem fazer os modernistas entre um Cristo da história e um Cristo da fé, e uma Igreja da história e uma Igreja da fé, entre Sacramentos da história e Sacramentos da fé, e assim por diante. Em seguida, esse mesmo elemento  humano que vemos o historiador tomar para si, tal qual se manifesta nos monumentos, deve ser tido como elevado pela fé, por transfiguração, acima das condições históricas. Convém, portanto, subtrair-lhe de novo os acréscimos feitos pela fé, e restituí-los à mesma fé e à história da fé;

Assim se deve proceder, tratando-se de Jesus Cristo, em tudo o que excede as condições de homem, seja natural, como a psicologia no-la apresenta, seja conforme as condições do lugar e tempo em que viveu. Demais, em virtude do terceiro princípio filosófico, também as coisas que não saem fora das condições da história, fazem-nas eles como que passar pela joeira, e eliminam, relegando à fé, tudo o que, a juízo seu não entrar na lógica dos fatos nem for conforme à índole das pessoas. Assim, querem que Cristo não tenha dito aquelas coisas que parecem não estar ao alcance do vulgo.

Por isto eliminam da sua história real e transportam para a fé todas as alegorias que se encontram nos seus discursos. E com que critério, perguntamos, se guiam eles nesta escolha? Pela consideração do caráter do homem, das condições em que se achou a sociedade, da educação, das circunstâncias de cada fato; em uma palavra, por uma norma que, se bem a entendemos, se resume em mero subjetivismo. Isto é, procuram apoderar-se da pessoa de Jesus Cristo e como que revestir-se dela, e assim lhe atribuem, nem mais nem menos, tudo o que eles mesmos fariam em circunstâncias idênticas. Assim pois, para concluirmos, a priori, e  partindo de certos princípios que admitem, embora afirmem que os ignoram, na história real afirmam que Cristo nem foi Deus, nem fez coisa alguma de divino; e como homem, que ele fez e disse apenas aquilo que eles, referindo-se ao tempo em que viveu, acham que podia ter feito e dito.

Assim pois, como a história recebe da filosofia as suas conclusões, assim também a crítica, por sua vez, as recebe da história. O crítico, seguindo a pista do historiador, divide todos os documentos em duas partes. Depois de fazer o tríplice corte acima referido, passa todo o restante para a história real, e entrega a outra parte à história da fé, ou noutros termos, à história interna. Os modernistas põem grande empenho em distinguir estas duas histórias; e, note-se bem, contrapõem à história da fé a história real, enquanto real. Daí resulta, como já vimos, um duplo Cristo; um real, e outro que, de fato, nunca existiu, mas pertence à fé; um que viveu em determinado lugar e tempo, outro que se encontra nas piedosas meditações da fé; tal, por exemplo, é o Cristo descrito no Evangelho de São João, o qual Evangelho, pretendem-no os modernistas, do princípio ao fim é mera meditação.

Mas o domínio da filosofia na história ainda vai além. Feita, como dissemos, a divisão dos documentos em duas partes, apresenta-se de novo o filósofo com o seu princípio de imanência vital, e prescreve que tudo o que se acha na história da Igreja deve ser aplicado por emanação vital. E visto como a causa ou condição de qualquer emanação vital procede de alguma necessidade, todo acontecimento deve ser a conseqüência de uma necessidade, e deve considerar-se historicamente posterior a ela.

Que faz então o historiador? Entregue de novo ao estudo dos documentos, tanto nos livros sacros quanto nos demais, vai formando um catálogo de cada uma das necessidades que por sua vez se apresentaram à Igreja, quer relativos ao dogma, quer ao culto ou a outras matérias. Feito este catálogo, passa-o ao crítico. Este, pois, manuseia os documentos destinados à história da fé e os distribui de idade em idade, de maneira que correspondam ao elenco que lhe foi dado; e tudo isto faz tendo sempre em vista o preceito de que o fato é precedido da necessidade, e a narração, do fato.

Bem poderia ser que certas partes da Escritura Sagrada, como as Epístolas, também fossem um fato criado pela necessidade. Seja como for, o certo porém é que não se pode determinar a idade de nenhum documento, senão pela época em que cada necessidade se manifestou na Igreja. Convém ainda distinguir entre o começo de um fato e o seu desenrolar; porquanto, o que pode nascer em um dia, não cresce senão com o tempo. Esta é a razão pela qual o crítico ainda deve bipartir os documentos, já dispostos segundo as idades, segregando os que se referem às origens de um fato dos que pertencem ao seu desenvolvimento, e dispondo de novo estes últimos em ordem cronológica.

Feito isto, reaparece  o filósofo e obriga o historiador a conformar os seus estudos com os preceitos e as leis da evolução. E o historiador, conformando-se, torna a esquadrinhar os documentos; a procurar com cuidado as circunstâncias em que se achou a Igreja, no correr dos tempos, as necessidades internas e externas que a impeliram ao progresso, os obstáculos que se levantaram, numa palavra, tudo o que puder servir para determinar o modo pelo qual se realizaram as leis da evolução. Concluído este trabalho, ele esboça em suas linhas principais a história do desenvolvimento dos fatos. Segue-se-lhe o crítico, que a este esqueleto histórico adapta os demais documentos.

Escreve-se então a narração; está completa a história; – mas agora perguntamos, essa história a quem se deve atribuir? Ao historiador ou ao crítico? A nenhum dos dois, por certo; mas ao filósofo. Tudo foi exarado por apriorismo, e certamente por um apriorismo abundante em heresias. São  na verdade para lastimar esses homens, dos quais o Apóstolo disse: Desvairaram em seus pensamentos…gabando-se de sábios, estultos é que se tornaram (Rom 1,21-22); mas ao mesmo tempo provocam a indignação, quando acusam a Igreja de corromper os documentos para fazê-los servir aos próprios interesses. Isto é, atiram sobre a Igreja aquilo de que a própria consciência manifestamente os acusa.

Dessa desagregação e da disseminação dos documentos pelo decurso do tempo, segue-se naturalmente que os livros sagrados não podem absolutamente ser atribuídos aos autores de quem trazem o nome. E esta é a razão porque os modernistas não hesitam em afirmar a miúdo que esses livros, especialmente o Pentateuco e os três primeiros Evangelhos, de uma breve narração primitiva, foram pouco a pouco se avolumando por acréscimos e interpolações, seja a modo de interpretações teológicas ou alegóricas, seja a modo de transições para ligarem entre si as diversas partes.

Noutros termos mais breves e mais claros, querem que se deva admitir a evolução vital dos livros sacros, nascida da evolução da fé e correspondente à mesma. Acrescentam ainda que os sinais de tal evolução aparecem tão manifestos, que se poderia escrever a história dos mesmos. E chegam mesmo a escrever essa história, e com tanta persuasão que parecem eles mesmos  ter visto com seus próprios olhos cada um dos escritores, que nos diversos séculos estenderam a mão sobre a Escritura para ampliá-la. Para confirmá-lo, recorrem à crítica que chamam textual, e se esforçam em persuadir que este ou aquele fato, estes ou aqueles dizeres não se acham no seu lugar, e aduzem ainda outras razões deste mesmo quilate. Dir-se-ia, na verdade, que se preestabeleceram certos tipos de narrações ou alocuções que servem de critério certíssimo para julgar se uma coisa está no seu lugar ou fora dele. Com semelhante método,  julgue quem puder fazê-lo, se eles podem ser capazes de discernir. E no entanto, quem os ouvir discorrer a respeito dos seus estudos relativos à Escritura, na qual lograram descobrir tantas incongruências, é levado a crer que antes deles ninguém manuseou aqueles livros, e que não houve uma infinita multidão de Doutores, em talento, em sabedoria, e na santidade da vida muito superiores a eles, que os esquadrinharam em todos os sentidos.

E para esses sapientíssimos doutores tão longe estavam as Sagradas Escrituras de ter alguma coisa de repreensível que, ao contrário, quanto mais eles as aprofundavam, tanto mais agradeciam a Deus ter-se dignado de assim falar aos homens.

Mas é que os nossos doutores não se entregaram ao estudo da Escrituras  com os meios de que se proviram os modernistas! Isto é, não se deixaram amestrar nem guiar por uma filosofia que tem a negação de Deus por ponto de partida, e nem se arvoraram a si mesmos em norma de bem julgar. Parece-nos, pois, já estar bem declarado o método histórico dos modernistas. O filósofo abre o caminho; segue-o o historiador; logo após, por seu turno, a crítica interna e textual. E como é próprio da primeira causa comunicar sua virtude às segundas, claro está que tal crítica não é uma qualquer crítica, mas por direito deve chamar-se agnóstica, imanentista, evolucionista; e por isso quem a professa ou dela se utiliza, professa os erros que se contém nela e se põe em oposição com a doutrina católica. Por esta razão é muito de admirar que tal gênero de crítica possa hoje ter tão grande aceitação entre católicos. Isto assim sucede por dois motivos: primeiro é a aliança íntima que há entre os historiadores e críticos desse gênero, não obstante qualquer diversidade de nacionalidade ou de crenças; o outro é a incrível audácia com que, qualquer parvoíce que algum deles diga, é pelos outros sublimada e decantada como progresso da ciência; se alguém o negar leva a pecha de ignorante; se, porém, o aceitar e defender, será coberto de louvores. Disto se segue que não poucos ficam enganados; entretanto, se melhor considerassem as coisas, ficariam, ao contrário, horrorizados. Desta prepotente imposição dos extraviados, deste incauto assentimento dos pusilânimes produz-se uma certa corrupção de atmosfera, que penetra em toda a parte e difunde o contágio. Mas passemos ao apologista.
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O modernista apologeta
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Entre os modernistas também este depende duplamente do filósofo. Primeiro indiretamente, tomando para matéria a história escrita  sob a direção do filósofo, como vimos; depois diretamente, aceitando do filósofo os princípios e os juízos. Vem daqui o preceito comum da escola modernista, que a nova apologética deve dirimir as controvérsias religiosas por meio de indagações históricas e psicológicas.

Por isso, esses apologetas começam o seu trabalho advertindo os racionalistas de que não defendem a religião com os livros sacros, nem com as histórias vulgarmente usadas na Igreja e escritas à moda antiga; fazem-no, porém, com a história real, composta segundo os preceitos modernos e com método moderno. Assim o dizem, não como se argumentassem ad hominem, mas porque de fato acreditam que só em tal história se acha a verdade. Quando escrevem também não se preocupam de insistir na própria sinceridade; já são bastante conhecidos entre os racionalistas, já foram louvados como combatentes sob um mesmo estandarte; e desses louvores, que um verdadeiro católico deverá rechaçar, eles muito se lisonjeiam e se servem como de escudo contra as censuras da Igreja. Vejamos como qualquer um deles faz praticamente semelhante apologética. O fim que se propõe é de conduzir o homem que ainda não crê, a sentir em si aquela experiência da religião católica que, para os modernistas, é base da fé. Há dois caminhos a seguir: um objetivo e o outro subjetivo. O primeiro parte do agnosticismo, e tende a demonstrar que na religião, especialmente na católica, há tal energia vital, que obriga todo sábio psicólogo e historiador a admitir que na sua história se esconde alguma coisa incógnita. Para este fim é mister provar que a religião católica, qual hoje existe, é a mesma fundada por Cristo, ou melhor, é o progressivo desenvolvimento da semente a que Cristo deu origem. Convém, por conseguinte, antes de tudo, determinar qual seja essa semente.

Pretendem eles fazê-lo pela seguinte fórmula: Cristo anunciou a vida do reino de Deus, a realizar-se em breve, sendo ele o seu Messias, isto é, o executor e o organizador mandado por Deus. Depois disto convirá demonstrar como essa semente, sempre imanente na religião católica e permanente, devagar e a passo com a história se foi desenvolvendo e adaptando às sucessivas circunstâncias, assimilando vitalmente tudo o que nas mesmas lhe apresentavam de útil às formas doutrinais, cultuais, eclesiásticas; superando ao mesmo tempo os obstáculos, desbaratando os inimigos, e sobrevindo a toda sorte de contradições e lutas. Depois que todas estas coisas, a saber, os obstáculos, os inimigos, as perseguições, os combates, bem como a vitalidade e fecundidade da Igreja, se tiverem mostrado tais que, conquanto na história da mesma se vejam observadas as leis da evolução, todavia não são bastantes ainda para uma explicação cabal, virá pela frente o incógnito, que se apresentará por si mesmo. Assim dizem eles. Contudo, em todo este raciocinar há uma coisa que não percebem; que aquela determinação da semente primitiva é fruto exclusivo do apriorismo do filósofo agnóstico e evolucionista, e que a própria semente é por ele tão gratuitamente definida, que deveras parece convir à sua causa.

Mas esses apologetas, ao passo que com os referidos argumentos procuram asseverar e persuadir a religião católica, também por outra parte concedem que ela contém muitas coisas que desagradam. E também, com um prazer mal disfarçado, publicamente propalam que também em matéria dogmática encontram erros e contradições; não obstante acrescentarem que tais erros e contradições só merecem desculpas, mas, e é o  que mais se admira, devem ser legitimados e justificados. Assim também nas Sagradas Escrituras, afirmam-no, ocorrem muitos erros em matéria científica e histórica. Mas aqueles livros, acrescentam, não tratam de ciência ou história, e sim de religião e de moral. A ciência e a história ali são meros invólucros, que contornam as experiências religiosas e morais, para mais facilmente se divulgarem no povo; e como este povo não poderia entender de outro modo, não lhe seria vantajoso, porém nocivo, estar de posse de uma ciência ou de uma história mais perfeita. Demais, continuam a dizer, os livros sagrados, porque religiosos por natureza, têm necessariamente a sua vida; a vida também por sua vez tem a sua verdade e a sua lógica, certamente diversa da verdade e da lógica racional, e até mesmo de ordem assaz diversa, a saber: é verdade de comparação e proporção, quer com  o ambiente em que se vive, quer com o fim para que se vive. Chegam enfim a tal extremo, que se abalançam a afirmar, sem a menor restrição, que tudo o que se explica pela vida é verdadeiro e legítimo. – Nós, Veneráveis Irmãos, para quem a verdade é uma e única, e consideramos os livros sacros como escritos por inspiração do Espírito Santo e tendo Deus por autor (Conc. Vat. I De Ver. C.2), afirmamos que isto equivale a atribuir a Deus a mentira de utilidade ou oficiosa; e com as palavras de Santo Agostinho protestamos que, uma vez admitida em excelsa autoridade qualquer mentira oficiosa, não haverá nem uma pequena parte  daqueles livros que, parecendo a alguém difícil de praticar ou incrível de crer, com a mesma perniciosíssima regra não seja atribuída a conselho ou utilidade do mendaz autor (Epíst. 28). E daí resultará o que o Santo Doutor acrescenta: Neles, isto é, nos livros sacros, cada um dará crédito ao que quiser, e rejeitará o que não lhe agradar. Mas esses apologetas não se preocupam com isto. Concedem ainda que nos livros sacros para sustentar uma doutrina qualquer, se acham por vezes razões que não se apóiam em nenhum razoável fundamento; a estes gêneros pertencem as que se fundam nas profecias. Contudo eles também como artifício de pregação, que são legitimados pela vida. Que mais? Concedem, pior ainda, sustentam que o próprio Jesus Cristo errou manifestamente, indicando o tempo da vinda do reino  de Deus; e nem é para admirar, dizem, pois então ele ainda se achava sujeito às leis da vida! – Posto isto, que será dos dogmas da Igreja? Também estes estão cheios de evidentes contradições; mas, além de serem aceitos pela lógica da vida, não se acham em oposição com a verdade simbólica; pois, neles se trata do infinito, que tem infinitos aspectos. Enfim, tanto eles aprovam e defendem essas teorias, que não põem em dúvida em declarar que se não pode render ao Infinito maior preito de homenagens, do que afirmando acerca do mesmo coisas contraditórias!  E admitindo-se a contradição, que é o que não se admitirá?

Além dos argumentos objetivos, o crente pode também ser disposto à fé pelos subjetivos. Para este fim os apologetas voltam-se de novo para a doutrina da imanência. Empenham-se em convencer o homem de que nele mesmo e nos íntimos recantos de sua natureza e de sua vida, se oculta o desejo e a necessidade de uma religião, não já de uma religião qualquer, mas da católica; porquanto esta, dizem, é rigorosamente requerida (postulata) pelo perfeito desenvolvimento da vida. E sobre este ponto nos vemos de novo obrigados a lamentar que não faltem católicos que, conquanto rejeitem a doutrina da imanência como doutrina, todavia se utilizam dela na apologética; e fazem-no tão incautamente, que parecem admitir não somente certa capacidade ou conveniência na natureza humana para a ordem sobrenatural, (o que os apologetas católicos com as devidas restrições sempre demonstram), mas também uma estrita e verdadeira exigência. Para sermos mais exatos, dizemos ainda que esta exigência da religião católica é sustentada pelos modernistas mais moderados. Pois, aqueles que podem ser denominados integralistas, pretendem que se deve mostrar ao homem que ainda não crê, como se acha latente dentro dele mesmo o gérmen que esteve na consciência de Cristo, e que Cristo transmitiu aos homens. Eis aqui, Veneráveis Irmãos, sumariamente descrito o método apologético dos modernistas, em tudo conforme com as doutrinas; e tanto o método como as doutrinas estão cheios de erros, capazes só de destruir e não de edificar, não de formar católicos, mas de arrastar os católicos à heresia, mais ainda, à completa destruição de toda religião!
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O modernista reformador
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Pouco resta-nos finalmente dizer a respeito das pretensões do modernista como reformador. Já pelo que está exposto fica mais que patente a mania de inovação que move estes homens; mania esta que não poupa absolutamente nada ao catolicismo. Querem a inovação da filosofia, particularmente nos seminários; de tal sorte que, desterrada a filosofia dos escolásticos para a história da filosofia, entre os sistemas já obsoletos, seja ensinada aos moços a moderna filosofia, que é a única verdadeira correspondente aos nossos tempos. Para a reforma da teologia, querem que aquela teologia que chamamos racional, seja fundamentada na filosofia moderna. Desejam, além disto, que a teologia positiva se baseie na história dos dogmas. Querem também que a história seja escrita e ensinada pelos seus métodos e com preceitos novos. Dizem que os dogmas e a sua evolução devem entrar em acordo com a ciência e a história. Para o catecismo, exigem que nos livros de catequese se introduzam só aqueles dogmas, que tiverem sido reformados e estiverem ao alcance da inteligência do vulgo. Acerca do culto, clamam que se devem  diminuir as devoções externas e proibir que aumentem, embora, a bem da verdade, outros mais favoráveis ao simbolismo, se mostrem nisto mais indulgentes. Gritam a altas vozes que o regime eclesiástico deve ser renovado em todos os sentidos, mas especialmente na disciplina e no dogma. Por isto, dizem que por dentro e por fora se deve entrar em acordo com a consciência moderna, que se acha de todo inclinada para a democracia; e assim também dizem que o clero inferior e o laicato devem tomar parte no governo, que deve ser descentralizado. Também devem ser transformadas as Congregações romanas, e antes de todas, as do Santo Ofício e do Índice. Deve mudar-se a atitude da autoridade eclesiástica nas questões políticas e sociais, de tal sorte que não se intrometa nas disposições civis, mas procure amoldar-se a elas, para penetrá-las no seu espírito. Em moral estão pelo Americanismo, dizendo que as virtudes ativas devem antepor-se às passivas, e que convém promover o exercício daquelas de preferência a estas. Desejam que o clero volte à antiga humildade e pobreza e querem-no também de acordo no pensamento e na ação com os preceitos do modernismo. Finalmente não falta entre eles quem, obedecendo muito de boa mente aos acenos dos seus mestres protestantes, até deseje ver suprimido do sacerdócio o sacro celibato. Que restará, pois, de intacto na Igreja, que não deva por eles ou segundo os seus princípios ser reformado?
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Crítica geral de todo o sistema
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Talvez que na exposição da doutrina dos modernistas tenhamos parecido a alguém, Veneráveis Irmãos, demasiadamente prolixos. Isso, porém, foi de todo necessário, tanto para que não continuem a acusar-nos, como costumam, de ignorar as suas teorias, como também, para que se veja que quando se fala de modernismo, não se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser. Por isso, também quisemos servir-nos de uma forma quase didática, e nem recusamos os vocábulos bárbaros, que os modernistas adotam. Se, pois, de uma só vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a síntese de todas as heresias. Certo é que se alguém se propusesse juntar, por assim dizer, o destilado de todos os erros, que a respeito da fé têm sido até hoje levantados, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que alcançaram os modernistas. Tão longe se adiantaram eles, como já o notamos, que destruíram não só o catolicismo, mas qualquer outra religião. Com isto se explicam os aplausos do racionalistas; por isto aqueles dentre os racionalistas que falam mais clara e abertamente, se vangloriam de não ter aliados mais efetivos que os modernistas. E de fato, voltemos um pouco, Veneráveis Irmãos, à prejudicialíssima doutrina do agnosticismo. Com esta, por parte da inteligência está fechado ao homem todo o caminho para chegar a Deus, ao passo que se torna mais aberto por parte de um certo sentimento e da ação. Quem não percebe, porém, que isto se afirma em vão?

O sentimento corresponde sempre à ação de um objeto, que é proposto pela inteligência ou pelos sentidos. Excluí a inteligência, e o homem seguirá mais arrebatadamente os sentidos pelos quais é já arrastado. Além de que, quaisquer que sejam as fantasias de um sentimento religioso, não podem elas vencer  o senso comum; ora, o senso comum nos ensina que toda a perturbação ou preocupação do espírito, longe de ajudar, impede a investigação da verdade (queremos dizer da verdade em si mesma); ao passo que aquela outra verdade subjetiva, fruto do sentimento íntimo e da ação, quando muito serviria para um jogo de palavras, sem nada aproveitar ao homem, que antes de tudo quer saber se, fora de si, existe ou não um Deus, em cujas mãos há de cair um dia. Recorrem outrossim e com afinco à experiência. Mas, que pode ela acrescentar ao sentimento? Nada, por certo; poderá apenas torná-lo mais intenso; e esta intensidade tornará proporcionalmente mais firme a persuasão da verdade do objeto. Estas duas coisas, porém, não farão que o sentimento deixe de ser sentimento, nem lhe mudarão a natureza, sempre sujeita a engano, se não for auxiliada pela inteligência; pelo contrário, confirmarão e reforçarão o sentimento, pois que este, quanto mais intenso for, tanto mais direito terá a ser sentimento. Como porém tratamos aqui do sentimento religioso e da experiência, que nele se contém, sabeis por certo, Veneráveis Irmãos, com quanta prudência convém tratar esta matéria, e quanta ciência se requer para regular esta mesma prudência. Vós o sabeis, pelo contacto que tendes com as almas, especialmente aquelas em que domina o sentimento; Vós o sabeis pelo estudo dos tratados de ascética que, não obstante serem menosprezados pelos modernistas, contém doutrina mais sólida e mais fina observação do que aquela de que se vangloriam os modernistas.

E a Nós, na verdade, parece-Nos ser só de um demente ou pelo menos de um rematado imprudente o admitir, sem mais exame, por verdadeiras, as tais experiências íntimas apregoadas pelos modernistas. Por que será então, dizemo-lo aqui de passagem, que tendo essas experiências tão grande força e certeza, não o possa também ter a experiência de milhares de católicos, quando afirmam que os modernistas vagueiam por um caminho errado? A maior parte dos homens sustenta e há de sempre sustentar com firmeza que, só com o sentimento e a experiência, sem a guia e a luz da inteligência, nunca se chegará ao conhecimento de Deus. Resta, portanto, ainda uma vez, ou o ateísmo ou a absoluta falta de religião. Não esperem os modernistas melhores resultados da sua doutrina do simbolismo. De fato, se todos os elementos, que chamam intelectuais, não passam de meros símbolos de Deus, por que motivo não será também um símbolo o mesmo nome de Deus ou de personalidade divina? E se assim for, bem se poderia duvidar da mesma personalidade divina, e teremos aberta a estrada para o panteísmo. Do mesmo modo, a um puro e simples panteísmo leva a outra doutrina da imanência divina. Pois, se perguntarmos: essa imanência distingue ou não distingue Deus do homem? Se distingue, que divergência então pode haver entre essa doutrina e a católica? Ou então, por que rejeitam os modernistas a doutrina da revelação externa? Se, pelo contrário, não se distingue, temos de novo o panteísmo.

Mas, de fato, a imanência dos modernistas quer e admite que todo o fenômeno de consciência proceda do homem enquanto homem. Com legítimo raciocínio deduzimos portanto que Deus e o homem são uma e a mesma coisa; e daqui o panteísmo. Também a distinção que fazem entre as ciência e a fé, não leva a outro resultado. Põem o objeto da ciência na realidade do cognoscível, e o da fé na realidade do incognoscível. Ora, o incognoscível é produzido pela completa desproporção entre o objeto e a inteligência. E esta desproporção, acrescentam, nunca poderá cessar. Logo, o incognoscível ficará sempre incognoscível, tanto para o crente quanto para o filósofo. Se, pois, alguma religião houver, o seu objeto será sempre a realidade do incognoscível; e não sabemos por que motivo essa realidade não poderá ser a alma universal do mundo, como querem certos racionalistas. Isto já é bastante para bem nos certificarmos de que muitos são os caminhos, pelos quais a doutrina modernista vai acabar no ateísmo e na destruição de toda religião. Neste caminho os protestantes deram o primeiro passo; os modernistas o segundo; pouco falta para o completo ateísmo.
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II ª PARTE
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AS CAUSAS DO MODERNISMO
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Para mais a fundo conhecermos o modernismo e o mais apropriado remédio acharmos para tão grande mal, cumpre agora, Veneráveis Irmãos, indagar algum tanto das causas donde se originou e porque se tem desenvolvido. Não há duvidar que a causa próxima e imediata é a aberração do entendimento. As remotas, reconhecemo-las duas: o amor de novidades e o orgulho. O amor de novidades basta por si só para explicar toda a sorte de erros. Por esta razão o Nosso sábio predecessor Gregório XVI, com toda a verdade escreveu (Encicl. “Singulari Nos” 7/07/1834): «Muito lamentável é ver até onde se atiram os delírios da razão humana, quando o homem corre após as novidades e, contra as admoestações de São Paulo, se empenha em saber mais do que convém e, confiando demasiado em si, pensa que deve procurar a verdade fora da Igreja Católica, onde ela se acha sem a menor sombra de erro». Contudo, o orgulho tem muito maior força para arrastar ao erro os entendimentos; e é o orgulho que, estando na doutrina modernista como em sua própria casa, aí acha à larga de que se cevar e com que ostentar as suas manifestações.

Efetivamente, o orgulho fá-los confiar tanto em si que se julgam e dão a si mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os únicos que possuem o saber, e dizem desvanecidos e inchados: Nós cá não somos como os outros homens. E, de fato, para o não serem, abraçam e devaneiam toda a sorte de novidades, até das mais absurdas. Por orgulho repelem toda a sujeição, e afirmam que a autoridade deve aliar-se com a liberdade.

Por orgulho, esquecidos de si mesmos, pensam unicamente em reformar os outros, sem respeitarem nisto qualquer posição, nem mesmo a suprema autoridade. Para se chegar ao modernismo não há, com efeito, caminho mais direto do que o orgulho. Se algum leigo ou também algum sacerdote católico esquecer o preceito da vida cristã, que nos manda negarmos a nós mesmos para podermos seguir a Cristo, e se não afastar de seu coração o orgulho, ninguém mais do ele se acha naturalmente disposto a abraçar o modernismo! – Seja portanto, Veneráveis Irmãos, o vosso primeiro dever   resistir a esses homens soberbos, ocupá-los nos misteres mais humildes e obscuros, a fim de serem tanto mais deprimidos  quanto mais se enaltecem, e, postos na ínfima plana, tenham menor campo a prejudicar. Além disto, por vós mesmos ou pelos reitores dos seminários, procurai com cuidado conhecer os jovens que se apresentam candidatos às fileiras do clero; e se algum deles for de natural orgulhoso, riscai-o resolutamente do número dos ordinandos. Neste ponto, quisera Deus que se tivesse sempre agido com a vigilância e fortaleza que era mister!

Passando das causas morais às que se relacionam com a inteligência, surge sempre a ignorância. Todos os modernistas que pretendem ser ou parecer doutores na Igreja, exaltando em voz clamorosa a moderna  filosofia e desdenhando a Escolástica, abraçaram a primeira, iludidos pelo seu falso brilho, porque, ao ignorarem completamente a segunda, careceram dos meios convenientes para reconhecerem a confusão das idéias e refutar os sofismas. É, pois, da aliança da falsa filosofia com a fé que surgiu o seu sistema, formado de tantos e tamanhos erros.

Quem dera que eles fossem no entanto menos zelosos e sagazes na propaganda destes erros! Mas, em vez disto, é tal a sua esperteza, é tão indefeso o seu trabalho, que deveras causa pesar ver consumirem-se em prejuízo da Igreja tantas forças, que bem empregadas lhe seriam muito vantajosas. Para conduzirem os espíritos ao erro, usam de dois meios: removem primeiro os obstáculos, e em seguida procuram com máxima cautela os ardis que lhes poderão servir, e põem-nos em prática, incessante e pacientemente. Dentre os obstáculos, três principalmente se opõem aos seus esforços: o método escolástico de raciocinar, a autoridade dos Padres com a Tradição, o Magistério eclesiástico. Tudo isto é para eles objeto de uma luta encarniçada. Por isso, continuamente escarnecem e desprezam a filosofia e a teologia escolástica. Quer o façam por ignorância, quer  por temor, quer mais provavelmente por um e outra, o certo é que a mania da novidade neles se acha aliada com ódio à escolástica; e não há sinal mais manifesto de que começa alguém a volver-se para o modernismo do que começar a aborrecer a escolástica. Lembrem-se os modernistas os seus fautores da condenação que Pio IX infligiu a esta proposição (Syll. prop. 13):

«O método e os princípios com que os antigos doutores escolásticos trataram a teologia, não condizem mais com as necessidades dos nossos tempos e com os progressos da ciência». São também muito astuciosos em desvirtuar a natureza e a eficácia da Tradição, a fim de privá-la de todo o peso e autoridade. Porém, nós, os católicos, teremos sempre do nosso lado a autoridade do segundo Concílio de Nicéia, que condenou «aqueles que ousam…, à maneira de perversos hereges, desprezar as tradições eclesiásticas e imaginar qualquer novidade… ou pensar maliciosa e astutamente em destruir o que quer que seja das legítimas tradições da Igreja católica». Teremos sempre a profissão do quarto Concílio de Constantinopla: «Professamos, portanto, conservar e defender as regras que, tanto pelos santos e célebres Apóstolos quanto pelos Concílios universais e locais, ortodoxos, mesmo por qualquer deíloquo Padre e Mestre da Igreja, foram dadas à Santa Igreja Católica e apostólica. Por esta razão os Pontífices Romanos Pio IV e Pio IX quiseram que se acrescentassem estas palavras à profissão de fé: Creio firmemente e professo as tradições apostólicas e eclesiásticas e todas as demais determinações e constituições da mesma Igreja. O mesmo juízo que fazem da Tradição, estendem-no os modernistas também aos santos Padres da Igreja. Com a maior temeridade, tendo-os embora como muito dignos de toda a veneração, fazem-nos passar por muito ignorantes da crítica e da história, no que seriam indesculpáveis, se outros houveram sido os tempos em que viveram. Põem, finalmente, todo o empenho em diminuir e enfraquecer o magistério eclesiástico, ora deturpando-lhe sacrilegamente a origem, a natureza, os direitos, ora repetindo livremente contra  ele as calúnias dos inimigos. À grei dos modernistas quadram estas palavras que muito a contragosto escreveu Nosso Predecessor: «Para atirarem sobre a mística Esposa de Jesus Cristo, que é verdadeira luz, o desprezo e o ódio, os filhos das trevas tomaram o costume de deprimi-la em público com uma insensata calúnia e, trocando a noção das coisas e das palavras, de chamá-la amiga do obscurantismo, sustentáculo da ignorância, inimiga da luz, da ciência e do progresso (Motu-proprio. “Ut mysticam”,14/03/1891). Em vista disto, Veneráveis Irmãos, não é para admirar que os católicos, denodados defensores da Igreja, sejam alvo do ódio mais desapoderado dos modernistas. Não há injúria que lhes não atirem em rosto; mas de preferência os chamam ignorantes e obstinados. Se a erudição e o acerto de quem os refuta os atemoriza, procuram descartá-lo, recorrendo ao silêncio. Este modo de proceder com os católicos torna-se ainda mais odioso, porque eles ao mesmo tempo exaltam descompassadamente com incessantes louvores os que seguem o seu partido; acolhem e batem palmas aos seus livros, eriçados de novidades; e quanto mais alguém mostra ousadia em destruir as coisas antigas, em rejeitar as tradições e o magistério eclesiástico, tanto mais encarecem a sua sabedoria; e por fim, o que a todo espírito reto causa horror, não só elogiam pública e encarecidamente, mas veneram como mártir quem quer por acaso for condenado pela Igreja. Movidos e abalados por toda essa celeuma de louvores e impropérios, com o fito,  ou de não passarem por ignorantes, ou de serem tidos por sábios, os ânimos juvenis, instigados interiormente pelo orgulho e pelo amor das novidades dão-se por vencidos e desertam para o modernismo.

Com isto já chegamos aos artifícios com que os modernistas passam as suas mercadorias. Que recursos deixam eles de empregar para angariar sectários? Procuram conseguir cátedras nos seminários e nas Universidades, para tornarem-se insensivelmente cadeiras de pestilência. Inculcam as suas doutrinas, talvez disfarçadamente, pregando nas igrejas; expõem-nas mais claramente nos congressos; introduzem e exaltam-nas nos institutos sociais sob o próprio nome ou sob o de outrem; publicam livros, jornais, periódicos.

Às vezes  um mesmo escritor se serve de diversos nomes, para enganar os incautos, simulando grande número de autores. Numa palavra, pela ação, pela palavra, pela imprensa, tudo experimentam, de modo as parecerem agitados por uma violenta febre. Que resultado terão eles alcançado? Infelizmente lamentamos a perda de grande número de moços, que davam ótimas esperanças de poderem um dia prestar relevantes serviços à Igreja, atualmente fora do bom caminho.

Lamentamos esses muitos que, embora não se tenham adiantado tanto, tendo contudo respirado esse ar infeccionado, já pensam, falam e escrevem com tal liberdade, que em católicos não assenta bem.

Vemo-los entre os leigos; vemo-los entre os sacerdotes; e, quem o diria? Vemo-los até no seio das famílias religiosas. Tratam a Escritura à maneira dos modernistas. Escrevendo sobre a história tudo o que pode desdourar a Igreja divulgam cuidadosamente e com disfarçado prazer. Guiados por um certo apriorismo, procuram sempre desfazer as piedosas tradições populares. Mostram desdenhar as sagradas relíquias, respeitáveis pela sua antigüidade. Enfim, vivem preocupados em fazer o mundo falar de suas pessoas; e sabem que isto não será possível, se disserem as mesmas coisas que sempre se disseram.

Podem estar eles na persuasão de fazerem coisa agradável a Deus e à Igreja; na realidade, porém, ofendem gravemente a Deus e à Igreja, se não com suas obras, de certo com o espírito que os anima e com o auxílio que prestam ao atrevimento dos modernistas.
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III ª PARTE
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REMÉDIOS
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A esta torrente de gravíssimos erros, que às claras e às ocultas se vai avolumando, o Nosso Predecessor Leão XIII, de feliz memória, procurou energicamente   levantar um dique, principalmente no que se refere às Sagradas Escrituras. Já vimos, porém, que os modernistas não se deixam facilmente intimidar; eis porque, aparentando o maior acatamento e a mais apurada humildade, inverteram as palavras do Pontífice do modo que lhes convinha, e propalaram que os atos do mesmo eram dirigidos a outros. Destarte o mal, dia a dia, foi tomando maiores proporções.

É por isto, Veneráveis Irmãos, que decidimos lançar mãos, sem demora, de medidas mais enérgicas. Nós, porém, vos pedimos e suplicamos que em negócio de tal monta nada, de modo algum, se deixe a desejar em vossa vigilância, desvelo e fortaleza. E isto mesmo que vos pedimos e de vós esperamos, pedimo-lo também e esperamo-lo dos demais pastores das almas, dos educadores e mestres do jovem clero, e particularmente dos Superiores gerais das Ordens religiosas.

I. No que se refere aos estudos, queremos em primeiro lugar e mandamos terminantemente, que a filosofia escolástica seja tomada por base dos estudos sacros. Bem se compreende que «se os doutores escolásticos trataram certas questões com excessiva argúcia, ou foram omissas noutras; se disseram coisas que mal se acomodam com as doutrinas apuradas nos séculos posteriores, ou mesmo alguma coisa inadmissível, mui longe está de nossa intenção querer que tudo isto deva servir de exemplo a imitar nos nossos dias (Leão XIII, Enc.Aeterni Patris).

O que importa saber, antes de tudo, é que a filosofia escolástica, que mandamos adotar, é principalmente a de Santo Tomás de Aquino; a cujo respeito queremos fique em pleno vigor tudo o que foi determinado pelo Nosso Predecessor e, se há mister, renovamos, confirmamos e mandamos severamente sejam por todos observadas aquelas disposições. Se isto tiver sido descuidado nos seminários, insistam e exijam os Bispos que para o futuro se observe. Tornamos extensiva a mesma ordem aos Superiores das Ordens religiosas. E todos aqueles que ensinam fiquem cientes de que não será sem graves prejuízos que especialmente em matérias metafísicas, se afastarão de Santo Tomás.

Fundamentada assim a filosofia, sobre ela se erga com a maior diligência o edifício teológico. Veneráveis Irmãos, promovei com toda a solicitude o estudo da teologia, de tal sorte que ao saírem dos seminários os clérigos lhe tenham alta consideração e profundo amor, e sempre o conservem carinhosamente. Porquanto é de todos sabido que na quase infinitude das disciplinas que se apresentam às inteligências ávidas do saber, é tão certo que à teologia cabe o primeiro lugar, que os antigos diziam que era dever das outras ciências e artes servirem-na e auxiliarem-na como escravas (Leão XIII, carta ap. In magna, 10/12/1889). Aproveitamos esta ocasião para dizer que Nos parecem dignos de louvor aqueles que, salvando o respeito devido à Tradição, aos Santos Padres, ao magistério eclesiástico, procuram esclarecer a teologia positiva com prudente critério e normas católicas (coisa que nem sempre se observa), tirando luzes da verdadeira história. Certo é que na atualidade, à teologia positiva se deve dar maior extensão que outrora; entretanto, isto se deve fazer de tal sorte que não seja de nenhum modo em detrimento da teologia escolástica, e sejam censurados como fautores do modernismo, aqueles que de tal modo elevam a teologia positiva que parece quase desprezarem a escolástica.

Quanto às disciplinas profanas, basta lembrar o que sabiamente disse o Nosso Predecessor (Alloc. De 7/03/1880): «Aplicai-vos diligentemente ao estudo das coisas naturais; pois, assim como em nossos dias as engenhosas descobertas e os úteis empreendimentos com sobeja razão são admirados pelos contemporâneos, da mesma sorte serão alvo de perenes louvores e encarecimentos dos vindouros». Seja isto feito sem prejuízo dos estudos sacros; assim também o advertiu o mesmo Nosso Predecessor, pela seguintes palavras (lugar citado): «A causa de tais erros, se a investigarmos cuidadosamente, provém principalmente de que hoje, quanto maior intensidade se dá aos estudos das ciências naturais, tanto mais se descuram as disciplinas mais severas e mais elevadas; algumas destas são, de fato, quase atiradas ao esquecimento; outras são tratadas com pouca vontade e de leve, e, coisa indigna, perdido o esplendor de sua primitiva dignidade, são deturpadas por opiniões inverossímeis e por enormes erros. É esta a lei à qual mandamos que se conformem os estudos das ciências naturais nos seminários.

II. Em vista tanto destas Nossas disposições como da do Nosso Antecessor, convém prestar muita atenção toda vez que se tratar da escolha dos diretores e professores tanto dos seminários quanto das Universidades católicas. Todo aquele que tiver tendências modernistas, seja ele quem for, deve ser afastado quer dos cargos quer do magistério; e se já tiver de posse, cumpre ser removido.

Faça-se o mesmo com aqueles que, às ocultas ou às claras, favorecerem o modernismo, louvando os modernistas, ou atenuando-lhes a culpa, ou criticando a escolástica, os Santos Padres, o magistério eclesiástico, ou negando obediência a quem quer que se ache em exercício do poder eclesiástico; bem assim como aqueles que se mostrarem amigos da novidade em matéria histórica, arqueológica e bíblica; e finalmente com aqueles que se descuidarem dos estudos sacros ou parecerem dar preferência aos profanos. Neste ponto, Veneráveis Irmãos, e particularmente na escolha dos lentes, nunca será demasiada a vossa solicitude e constância; porquanto, é o mais das vezes ao exemplo dos mestres que se formam os discípulos. Firmados, portanto, no dever da consciência, procedei nesta matéria com prudência, mas também com energia.

Não  deve ser  menor a vossa  vigilância e severidade na escolha daqueles que devem ser admitidos ao Sacerdócio. Longe, muito longe do clero esteja o amor às novidades; Deus não vê com bons olhos os ânimos soberbos e rebeldes! A ninguém doravante se conceda a láurea da teologia ou direito canônico, se primeiro não tiver feito todo o curso de filosofia escolástica. Se, não obstante isto, ela for concedida, será nula. Tornem-se doravante extensivas a todas as nações as disposições emanadas da Sagrada Congregação dos Bispos e Regulares no ano 1896, acerca da freqüência dos clérigos regulares e seculares da Itália às Universidades. Os clérigos e sacerdotes inscritos a um Instituto ou a uma Universidade católica, não poderão freqüentar nas Universidades civis cursos também existentes nos Institutos católicos a que se inscreveram. Se, em tempos passados, isto tiver sido concedido em algum lugar, mandamos que de ora em diante não mais se permita. Ponham os Bispos que formam o conselho diretivo de tais Institutos católicos ou Universidades católicas, o maior empenho em fazer observar estas nossas determinações.

III. Compete, outrossim, aos Bispos providenciar para que os livros dos modernistas já publicados não sejam lidos, e as novas publicações sejam proibidas. Qualquer livro, jornal ou periódico desse gênero não poderá ser permitido aos alunos dos seminários ou das Universidades católicas, pois daí não lhes proviria menor mal do que o que produzem as más leituras; antes, seria ainda pior, porque ficaria contaminada a mesma raiz da vida cristã. Nem diversamente se há de julgar dos escritos de certos católicos, homens aliás de não más intenções, porém faltos de estudos teológicos e embebidos de filosofia moderna, que procuram conciliar com a fé, e fazê-la servir, como eles dizem, em proveito da mesma fé. O nome e a boa reputação dos autores faz com que tais livros sejam lidos sem o menor escrúpulo, e por isto mesmo se tornam assaz perigosos para pouco e pouco encaminharem ao modernismo.

Querendo, Veneráveis Irmãos, dar-vos normas gerais em tão grave assunto, se em vossas dioceses circularem livros perniciosos, procurai energicamente proscrevê-los, condenando-os mesmo solenemente, se o julgardes oportuno. Conquanto esta Sede Apostólica procure por todos os meios proscrever tais publicações, tornou-se hoje tão avultado o seu número que não lhe bastariam forças para condená-las todas. Disto resulta às vezes que o remédio já chega tarde, porque a demora já facilitou a infiltração do mal. Queremos, por conseguinte, que os Bispos, pondo de parte todo o receio, repelindo a prudência da carne, desdenhando a grita dos maus, com suavidade perseverante cumpram todos o que lhes cabe, lembrando-se do que na Constituição Apostólica Officiorum, Leão XIII escreveu: «Empenhem-se os Ordinários, mesmo como Delegados da Sede Apostólica, em proscrever e tirar das mãos dos fiéis os livros ou quaisquer escritos nocivos publicados ou divulgados nas suas dioceses». Com estas palavras, é verdade, concede-se um direito; mas, ao mesmo tempo, também se impõe um dever. Ninguém, contudo, julgue ter cumprido tal dever pelo fato de Nos remeter um ou outro livro, deixando entretanto muitíssimos outros serem publicados e divulgados. Nem se julguem desobrigados disto por terem ciência de que certo livro alcançou de outrem o Imprimatur, porquanto tal concessão pode ser falsa, como também pode ter sido por descuido, por excesso de benignidade, ou por demasiada fé no autor; e este último caso pode muito facilmente dar-se nas Ordens religiosas. Acresce também saber que, assim como todo e qualquer alimento não serve igualmente para todos, da mesma sorte um livro que pode ser inocente num lugar, já noutro, por certas circunstâncias, pode tornar-se nocivo. Se, por conseguinte, o Bispo, depois de ouvir o parecer de pessoas prudentes, julgar que em sua diocese deve ser condenado algum desses livros, damos-lhe para isto ampla faculdade, e até o oneramos com este dever. Desejamos entretanto se conservem as devidas atenções, e talvez baste num ou noutro caso restringir ao clero essa proibição; e ainda mesmo neste caso os livreiros católicos estão obrigados a não dar à venda as publicações proibidas pelo Bispo. E já que nos caiu sob a pena este assunto, atendam os Bispos a que os livreiros, por avidez de lucro, não vendam livros perniciosos; o certo é que nos catálogos de alguns deles não poucas vezes se vêem anunciados, e com bastante louvores, os livros dos modernistas. Se eles a isto se recusarem, não ponham dúvida os Bispos em privá-los do título de livreiros católicos; da mesma sorte, e por mais forte razão, se gozarem do título de episcopais; mas, se tiverem o título de pontifícios, seja o caso deferido à Santa Sé. A todos finalmente lembramos o artigo XXVI da citada Constituição apostólica Officiorum: «Todas as pessoas que tiverem obtido faculdade apostólica de ler e conservar livros proibidos, não se acham por esse mesmo fato autorizadas a ler livros ou jornais proscritos pelos Ordinários locais, salvo se no indulto apostólico se achar expressamente declarada a licença de ler e conservar livros condenados por quem quer seja».

IV. No entanto não basta impedir a leitura ou a venda de livros maus; cumpre, outrossim, impedir-lhes a impressão. Usem pois, os Bispos a maior severidade em conceder licença para impressão. E visto como é grande o número de livros que, segundo a Constituição Officiorum, hão mister da autorização do Ordinário, é costume em certas dioceses designar, em número conveniente, Censores, por ofício, para o exame dos manuscritos. Louvamos com efusão de ânimo essa instituição de censura; e não só exortamos, mas mandamos que se estenda a todas as dioceses. Haja, portanto, em todas as Cúrias episcopais censores para a revisão dos escritos em via de publicação. Sejam estes escolhidos no clero secular e regular, homens idosos, sábios e prudentes, que ao aprovar ou reprovar uma doutrina tomem um meio termo seguro. Terão eles o encargo de examinar tudo o que, segundo os artigos XLI e XLII da referida Constituição, precisar de licença para ser publicado. O Censor dará o seu parecer por escrito. Se for favorável, o Bispo permitirá a impressão com a palavra Imprimatur, que deverá ser precedida do Nihil obstat e do nome do Censor. Também na Cúria romana, como nas outras, serão estabelecidos Censores de Ofício. Serão estes designados pelo Mestre do Sagrado Palácio Apostólico, depois de consultar o Cardeal Vigário de Roma e obtido também o consentimento e aprovação do Sumo Pontífice. O mesmo determinará qual dos Censores deverá examinar cada escrito. A licença de impressão será concedida pelo referido Mestre juntamente com o Cardeal Vigário ou o seu Vice-gerente, antepondo-se, porém, como acima se disse, o Nihil obstat e o nome do Censor. Somente em circunstâncias extraordinárias e raríssimas, a prudente juízo do Bispo, poderá omitir-se a menção do Censor. Nunca se dará a conhecer ao autor o nome do Censor, antes que este tenha dado seu juízo favorável, afim de que o Censor não venha sofrer vexames, enquanto examinar os escritos ou depois que os tiver desaprovado. Nunca se escolham Censores entre as Ordens religiosas, sem primeiro pedir secretamente o parecer ao Superior provincial, ou, se se tratar de Roma, ao Geral; estes deverão em consciência dar atestado dos costumes, do saber, da integridade e das doutrinas do escolhido. Avisamos aos Superiores religiosos do gravíssimo dever que têm de nunca permitir que algum de seus súditos publique alguma coisa, sem a prévia autorização juntamente com a do Ordinário. Declaramos em último lugar, que o título de Censor, com que alguém for honrado, nenhuma eficácia terá nem jamais poderá ser aduzido para corroborar as suas opiniões particulares.

Ditas estas coisas em geral, particularmente mandamos a mais rigorosa observância do que se prescreve no artigo XLII da citada Constituição Officiorum, a saber: «É proibido aos sacerdotes seculares tomarem a direção de jornais ou periódicos, sem prévia autorização do Ordinário». Será privado desta licença quem, depois de ter recebido advertência, continuar a fazer mau uso dela. Como há certos sacerdotes, que, com o nome de correspondentes, ou colaboradores, escrevem nos jornais ou periódicos, artigos infectos de modernismo, tomem providências os Bispos para que tal não aconteça; e, acontecendo, advirtam-nos e proíbam-nos de escrever. Com toda a   autoridade mandamos que os Superiores das Ordens religiosas façam o mesmo; e se estes se mostrarem descuidados neste ponto, façam-no os Bispos com autoridade delegada do Sumo Pontífice. Sempre que for possível tenham os jornais e periódicos publicados pelos católicos um determinado Censor. Será este obrigado à revisão de todas as folhas ou fascículos já impressos; e se encontrar alguma coisa perigosa, fará corrigi-la quanto antes. E se o Censor tiver deixado passar alguma coisa, o Bispo tem o direito de fazê-la corrigir.

V. Já nos referimos acima aos congressos, reuniões públicas, em que os modernistas se aplicam à pública defesa e propaganda das suas opiniões. Salvo raríssimas exceções, de ora em diante os Bispos não permitirão mais os congressos de sacerdotes. Se nalgum caso o permitirem, será sob condição de não tratarem de assuntos de competência dos Bispos ou da Santa Sé, de não fazerem propostas nem petições que envolvam usurpação de jurisdição, nem se faça menção alguma de tudo o que pareça modernismo, presbiterianismo ou laicismo. A essas reuniões que devem ser autorizadas, cada uma em particular e por escrito, e na época oportuna, não poderá comparecer sacerdote algum de outra diocese, sem as cartas de recomendação do próprio Bispo. Lembrem-se todos os sacerdotes do que por estas gravíssimas palavras, Leão XIII recomendou (Carta Enc.Nobilissima Gallorum 10/02/1884): «Seja intangível para os sacerdotes a autoridade dos próprios Bispos; persuadem-se de que se o ministério sacerdotal não se exercer debaixo da direção do Bispo, não será santo, nem proveitoso nem merecedor de respeito».

VI. Mas que aproveitariam, Veneráveis Irmãos, as Nossas ordens e as Nossas prescrições, se não fossem observadas como se deve com firmeza? Para o alcançarmos, pareceu-Nos bem estender a todas as dioceses o que desde muito anos os Bispos da Úmbria, com tanta sabedoria, resolveram entre si (Atas do Congresso dos Bispos de Úmbria, nov.1849, Tit. II art.6). «Para extirpar, diziam eles, os erros já espalhados e impedir que se continue a sua difusão, ou que haja mestres de impiedade que perpetuam os perniciosos efeitos produzidos por essa mesma difusão, seguindo o exemplo de São Carlos Borromeu, este sacro Congresso determina que em cada diocese se institua um conselho de homens eméritos dos dois cleros, com a incumbência de ver se, e de que modo, os novos erros se dilatam e se propagam, e dar aviso disto ao Bispo, para que de comum acordo se providencie para a extinção do mal logo que desponte e não tenha tempo de espalhar-se com detrimento das almas, nem, o que ainda seria pior, de se avigorar e crescer. Determinamos, pois, que em cada diocese se institua um semelhante Conselho, que se denominará Conselho de Vigilância. Os membros do Conselho serão escolhidos pela normas já prescritas para os Censores dos livros. Reunir-se-ão de dois em dois meses, em dia determinado, em presença do Bispo; e as coisas tratadas ou resolvidas guardem-nas os Conselheiros com segredo inviolável.

Serão estes os deveres dos membros do Conselho: investiguem com cuidado os vestígios do modernismo, tanto nos livros como no magistério, e com prudência, rapidez e eficácia providenciem quando houver mister pela preservação do clero e da mocidade. – Combatam as novidades de palavras, e lembrem-se dos avisos de Leão XIII (Instr. S.C. NN. EE. EE. 27/01/1902): «Nas publicações católicas não se poderia aprovar uma linguagem que, inspirando-se em perniciosas novidades, parecesse escarnecer da piedade dos fiéis e falasse de nova orientação da vida cristã, de novas direções da Igreja, de novas aspirações da alma moderna, de nova vocação do clero, de nova civilização cristã». Não se tolerem tais dislates nem nos livros nem nas cátedras. – Não se descuidem dos livros em que se tratar das piedosas tradições de cada lugar, ou das sagradas Relíquias. Não permitam que se ventilem tais questões em jornais ou em periódicos destinados a nutrir a piedade, nem com expressões que tenham ares de zombaria ou de desdém, nem com afirmações decisivas, particularmente, como quase sempre sucede, quando o que se afirma não passa as raias da probabilidade ou quando se baseia em opiniões e preconceitos. – Acerca das sagradas Relíquias tomem-se as seguintes normas: se os Bispos, que são os únicos juízes nesta matéria, reconhecerem com certeza que uma relíquia é falsa, sem demora a subtrairão ao culto dos fiéis. Se, por ocasião de perturbações civis ou por outro motivo, se tiverem extraviado os documentos de autenticidade de uma Relíquia qualquer, não seja exposta à veneração do povo, sem que primeiro tenha sido reconhecida pelo Bispo. Só terá valor o argumento de prescrição ou de presunção fundada, quando o culto for recomendável pela sua antigüidade, conforme o Decreto da Congregação das Indulgências e das sagradas Relíquias, do ano de 1896, expresso nestes termos: «As antigas Relíquias devem ser conservadas na veneração que tiverem até agora, salvo se em casos particulares se tiverem provas certas de que são falsas ou supositícias. – Nos juízos a emitir acerca das pias tradições, tenha-se sempre diante dos olhos a suma prudência de que usa a Igreja nesta matéria, de não permitir que essas tradições sejam relatadas nos livros sem as determinadas precauções, e com a prévia declaração prescrita por Urbano VIII; e apesar disto, ainda não se segue que a Igreja tenha o fato por verdadeiro, mas apenas não proíbe que se lhe dê crédito, uma vez que para isto não faltem argumentos humanos. Foi isto precisamente o que, há trinta anos, a Sagrada Congregação dos Ritos declarou (Decr. 2/05/1877): «Essas aparições ou revelações não foram aprovadas nem condenadas pela Santa Sé, foram apenas aceitas como merecedores de piedosa crença, com fé puramente humana, em vista da tradição de que gozam, também confirmadas por testemunhas e documentos idôneos». Quem se apegar a esta regra, nada tem que temer. Com efeito, o culto de qualquer aparição, enquanto se baseia num fato e por isto se chama relativo, inclui sempre implicitamente a condição de veracidade do fato; o absoluto, porém, sempre se funda na verdade, porquanto se dirige às mesmas pessoas dos Santos, a quem se honra. Dá-se o mesmo com as Relíquias. –Recomendamos por fim ao Conselho de Vigilância, lance assídua e cuidadosamente as suas vistas sobre os institutos sociais e bem assim sobre os escritos relativos a questões sociais, afim de que nem sequer aí se dê agasalho a livros de modernismo, mas se acatem as prescrições dos Pontífices Romanos.

VII. A fim de que as coisas aqui determinadas não fiquem esquecidas, queremos e mandamos que, passado um ano da publicação das presentes Letras, e em seguida, depois de cada triênio, com exposição diligente e juramentada os Bispos informem a Santa Sé a respeito do que nestas mesmas Letras se prescreve e das doutrinas que circulam no clero e particularmente nos seminários e outros Institutos católicos, não excetuando nem sequer aqueles que estão isentos da autoridade do Ordinário. Ordenamos a mesma coisa aos Superiores gerais das Ordens religiosas, com relação aos seus súditos.
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CONCLUSÃO
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Julgamos oportuno escrever-vos estas coisas, Veneráveis Irmãos, a bem da salvação de todos os fiéis. Por certo os inimigos da Igreja hão de valer-se disto, para de novo repisarem a velha acusação, com que procuram fazer-Nos passar por inimigos da ciência e dos progressos da civilização. A fim de opormos um novo desmentido a tais acusações, que são desfeitas a cada página da história da Igreja, é Nosso propósito conceder todo o auxílio e proteção a uma nova Instituição, pela qual sob o influxo da verdade católica, será promovida toda a sorte de ciências e erudições, com o concurso dos católicos mais insignes no saber. Queira Deus secundar os Nossos desígnios, e auxiliarem-nos todos quantos têm verdadeiro amor à Igreja de Jesus Cristo.  Entretanto, Veneráveis Irmãos, para vós, em cuja obra e zelo tanto confiamos, pedimos de coração a plenitude das luzes celestiais, afim de que, nesta época de tão grande perigo para as almas, devido aos erros que de toda parte se infiltram, descortineis o que deveis fazer e o executeis com todo o ardor e fortaleza. Que vos assista com seu poder Jesus Cristo, autor e consumidor da fé; que vos assista com o seu socorro a Virgem Imaculada, destruidora de todas as heresias. E Nós, como penhor da Nossa afeição e como arras das divinas consolações no meio de vossos trabalhos, de coração vos damos a vós, ao vosso clero, e ao vosso povo a Benção Apostólica.
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Dado em Roma, junto a São Pedro, no dia 8 de setembro de 1907, no quinto ano do Nosso Pontificado.

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PIO PP. X

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Fontehttp://www.vatican.va/holy_father/pius_x/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis_po.html


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CARTA ENCÍCLICA
MORTALIUM ANIMOS
DO SUMO PONTÍFICE PIO XI
AOS REVMOS. SENHORES PADRES PATRIARCAS,
PRIMAZES, ARCEBISPOS, BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DOS LUGARES
EM PAZ E UNIÃO COM A SÉ APOSTÓLICA
SOBRE A PROMOÇÃO DA VERDADEIRA
UNIDADE DE RELIGIÃO

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Veneráveis irmãos:
Saúde e Bênção Apostólica.

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1. Ânsia Universal de Paz e Fraternidade

Talvez jamais em uma outra época os espíritos dos mortais foram tomados por um tão grande desejo daquela fraterna amizade, pela qual em razão da unidade e identidade de natureza – somos estreitados e unidos entre nós, amizade esta que deve ser robustecida e orientada para o bem comum da sociedade humana, quanto vemos ter acontecido nestes nossos tempos.

Pois, embora as nações ainda não usufruam plenamente dos benefícios da paz, antes, pelo contrário, em alguns lugares, antigas e novas discórdias vão explodindo em sedições e em conflitos civis; como não é possível, entretanto, que as muitas controvérsias sobre a tranquilidade e a prosperidade dos povos sejam resolvidas sem que exista a concórdia quanto à ação e às obras dos que governam as Cidades e administram os seus negócios; compreende-se facilmente (tanto mais que já ninguém discorda da unidade do gênero humano) porque, estimulados por esta irmandade universal, também muitos desejam que os vários povos cada dia se unam mais estreitamente.

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2. A Fraternidade na Religião. Congressos Ecumênicos

Entretanto, alguns lutam por realizar coisa não dissemelhante quanto à ordenação da Lei Nova trazida por Cristo, Nosso Senhor.

Pois, tendo como certo que rarissimamente se encontram homens privados de todo sentimento religioso, por isto, parece, passaram a Ter a esperança de que, sem dificuldade, ocorrerá que os povos, embora cada um sustente sentença diferente sobre as coisas divinas, concordarão fraternalmente na profissão de algumas doutrinas como que em um fundamento comum da vida espiritual.

Por isto costumam realizar por si mesmos convenções, assembléias e pregações, com não medíocre frequência de ouvintes e para elas convocam, para debates, promiscuamente, a todos: pagãos de todas as espécies, fiéis de Cristo, os que infelizmente se afastaram de Cristo e os que obstinada e pertinazmente contradizem à sua natureza divina e à sua missão.

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3. Os Católicos não podem aprová-lo  

Sem dúvida, estes esforços não podem, de nenhum modo, ser aprovados pelos católicos, pois eles se fundamentam na falsa opinião dos que juogam que quaisquer religiões são, mais ou menos, boas e louváveis, pois, embora não de uma única maneira, elas alargam e significam de modo igual aquele sentido ingênito e nativo em nós, pelo qual somos levados para Deus e reconhecemos obsequiosamente o seu império.

Erram e estão enganados, portanto, os que possuem esta opinião: pervertendo o conceito da verdadeira religião, eles repudiam-na e gradualmente inclinam-se para o chamado Naturalismo e para o Ateísmo. Daí segue-se claramente que quem concorda com os que pensam e empreendem tais coisas afasta-se inteiramente da religião divinamente revelada.

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4. Outro erro. A união de todos os Cristãos. Argumentos falazes  

Entretanto, quando se trata de promover a unidade entre todos os cristãos, alguns são enganados mais facilmente por uma disfarçada aparência do que seja reto.

Acaso não é justo e de acordo com o dever – costumam repetir amiúde – que todos os que invocam o nome de Cristo se abstenham de recriminações mútuas e sejam finalmente unidos por mútua caridade?

Acaso alguém ousaria afirmar que ama a Cristo se, na medida de suas forças, não procura realizar as coisas que Ele desejou, ele que rogou ao Pai para que seus discípulos fossem “UM” (Jo 17,21)?

Acaso não quis o mesmo Cristo que seus discípulos fossem identificados por este como que sinal e fossem por ele distinguidos dos demais, a saber, se mutuamente se amassem: “Todos conhecerão que sois meus discípulos nisto: se tiverdes amor um pelo outro?” (Jo 13,35).

Oxalá todos os cristão fossem “UM”, acrescentam: eles poderiam repelir muito melhor a peste da impiedade que, cada dia mais, se alastra e se expande, e se ordena ao enfraquecimento do Evangelho.

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5. Debaixo desses argumentos se oculta um erro gravíssimo

Os chamados “pancristãos” espalham e insuflam estas e outras coisas da mesma espécie. E eles estão tão longe de serem poucos e raros mas, ao contrário, cresceram em fileiras compactas e uniram-se em sociedades largamente difundidas, as quais, embora sobre coisas de fé cada um esteja imbuído de uma doutrina diferente, são, as mais das vezes, dirigidas por acatólicos.

Esta iniciativa é promovida de modo tão ativo que, de muitos modos, consegue para si a adesão dos cidadão e arrebata e alicia os espíritos, mesmo de muitos católicos, pela esperança de realizar uma união que parecia de acordo com os desejos da Santa Mãe, a Igreja, para Quem, realmente, nada é tão antigo quanto o reconvocar e o reconduzir os filhos desviados para o seu grêmio.

Na verdade, sob os atrativos e os afagos destas palavras oculta-se um gravíssimo erro pelo qual são totalmente destruídos os fundamentos da fé.

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6. A verdadeira norma nesta matéria

Advertidos, pois, pela consciência do dever apostólico, para que não permitamos que o rebanho do Senhor seja envolvido pela nocividade destas falácias, apelamos, veneráveis irmãos, para o vosso empenho na precaução contra este mal. Confiamos que, pelas palavras e escritos de cada um de vós, poderemos atingir mais facilmente o povo, e que os princípios e argumentos, que a seguir proporemos, sejam entendidos por ele pois, por meio deles, os católicos devem saber o que devem pensar e praticar, dado que se trata de iniciativas que dizem respeitos a eles, para unir de qualquer maneira em um só corpo os que se denominam cristãos.

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7. Só uma religião pode ser verdadeira: A revelada por Deus

Fomos criados por Deus, Criador de todas as coisas, para este fim: conhecê-lO e serví-lO. O nosso Criador possui, portanto, pleno direito de ser servido.

Por certo, poderia Deus ter estabelecido apenas uma lei da natureza para o governo do homem. Ele, ao criá-lo, gravou-a em seu espírito e poderia portanto, a partir daí, governar os seus novos atos pela providência ordinária dessa mesma lei. Mas, preferiu dar preceitos aos quais nós obedecêssemos e, no decurso dos tempos, desde os começos do gênero humano até a vinda e a pregação de Jesus Cristo, Ele próprio ensinou ao homem, naturalmente dotado de razão, os deveres que dele seriam exigidos para com o Criador: “Em muitos lugares e de muitos modos, antigamente, falou Deus aos nossos pais pelos profetas; ultimamente, nestes dias, falou-nos por seu Filho” (Heb 1,1 Seg).

Está, portanto, claro que a religião verdadeira não pode ser outra senão a que se funda na palavra revelada de Deus; começando a ser feita desde o princípio, essa revelação prosseguiu sob a Lei Antiga e o próprio crisot completou-a sob a Nova Lei.

Portanto, se Deus falou – e comprova-se pela fé histórica Ter ele realmente falado – não há quem não veja ser dever do homem acreditas, de modo absoluto, em deus que se revela e obedecer integralmente a Deus que impera. Mas, para a glória de Deus e para a nossa salvação, em relação a uma coisa e outra, o Filho Unigênito de Deus instituiu na terra a sua Igreja.

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8. A única religião revelada é a Igreja Católica

Acreditamos, pois, que os que afirma serem cristão, não possam fazê-lo sem crer que uma Igreja, e uma só, foi fundada por Cristo. Mas, se se indaga, além disso, qual deva ser ela pela vontade do seu Autor, já não estão todos em consenso.

Assim, por exemplo, muitíssimos destes negam a necessidade da Igreja de Cristo ser visível e perceptível, pelo menos na medida em que deva aparecer como um corpo único de fiéis, concordes em uma só e mesma doutrina, sob um só magistério e um só regime. Mas, pelo contrário, julgam que a Igreja perceptível e visível é uma Federação de várias comunidades cristãs, embora aderentes, cada uma delas, a doutrinas opostas entre si.

Entretanto, cristo Senhor instituiu a sua Igreja como uma sociedade perfeita de natureza externa e perceptível pelos sentidos, a qual, nos tempos futuros, prosseguiria a obra da reparação do gênero humano pela regência de uma só cabeça (Mt 16,18 seg.; Lc 22,32; Jo 21,15-17), pelo magistério de uma voz viva (Mc 16,15) e pela dispensação dos sacramentos, fontes da graça celeste (Jo 3,5; 6,48-50; 20,22 seg.; cf. Mt 18,18; etc.). Por esse motivo, por comparações afirmou-a semelhante a um reino (Mt, 13), a uma casa (Mt 16,18), a um redil de ovelhas (Jo 10,16) e a um rebanho (Jo 21,15-17).

Esta Igreja, fundada de modo tão admirável, ao Lhe serem retirados o seu Fundador e os Apóstolos que por primeiro a propagaram, em razão da morte deles, não poderia cessar de existir e ser extinta, uma vez que Ela era aquela a quem, sem nenhuma discriminação quanto a lugares e a tempos, fora dado o preceito de conduzir todos os homens à salvação eterna: “Ide, pois, ensinai a todos os povos” (Mt 28,19).

Acaso faltaria à Igreja algo quanto à virtude e eficácia no cumprimento perene desse múnus, quando o próprio Cristo solenemente prometeu estar sempre presente a ela: “Eis que Eu estou convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos?” (Mt 28,20).

Deste modo, não pode ocorrer que a Igreja de Cristo não exista hoje e em todo o tempo, e também que Ela não exista hoje e em todo o tempo, e também que Ela não exista como inteiramente a mesma que existiu à época dos Apóstolos. A não ser que desejemos afirmar que: Cristo Senhor ou não cumpriu o que propôs ou que errou ao afirmar que as portas do inferno jamais prevaleceriam contra Ela (Mt 16,18).

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9. Um erro capital do movimento ecumêmico na pretendida união das Igrejas cristãs

Ocorre-nos dever esclarecer e afastar aqui certa opinião falsa, da qual parece depender toda esta questão e proceder essa múltipla ação e conspiração dos acatólicos que, como dissemos, trabalham pela união das igrejas cristãs.

Os autores desta opinião acostumaram-se a citar, quase que indefinidamente, a Cristo dizendo: “Para que todos sejam um”… “Haverá um só rebanho e um só Pastos”(Jo 27,21; 10,16). Fazem-no todavia de modo que, por essas palavras, queriam significar um desejo e uma prece de cristo ainda carente de seu efeito.

Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade.

Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de muitas igreja ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os mesmos direitos, que, no máximo, a Igreja foi única e una, da época apostólica até os primeiros concílios ecumênicos.

Assim, dizem, é necessários colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiquíssimas variedade de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conhecam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto, existiria já a condição para que os progessos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso.

Estas são, Veneráveis Irmãos, as afirmações comuns.

Existem, contudo, os que estabelecem e concedem que o chamado Protestantismo, de modo bastante inconsiderado, deixou de lado certos capítulos da fé e alguns ritos do culto exterior, sem dúvida gratos e úteis, que, pelo contrário, a Igreja Romana ainda conserva.

Mas, de imediato, acrescentam que esta mesma Igreja também agiu mal, corrompendo a religião primitiva por algumas doutrinas alheias e repugnantes ao Evangelho, propondo acréscimos para serem cridos: enumeram como o principal entre estes o que versa sobre o Primado de Jurisdição atribuído a Pedro e a seus Sucessores na Sé Romana.

Entre os que assim pensam, embora não sejam muitos, estão os que indulgentemente atribuem ao Pontífice Romano um primado de honra ou uma certa jurisdição e poder que, entretanto, julgam procedente não do direito divino, mas de certo consenso dos fiéis. Chegam outros ao ponto de, por seus conselhos, que diríeis serem furta-cores, quererem presidir o próprio Pontífice.

E se é possível encontrar muitos acatólicos pregando à boca cheia a união fraterna em Jesus Cristo, entretanto não encontrareis a nenhum deles em cujos pensamentos esteja a submissão e a obediência ao Vigário de Jesus Cristo enquanto docente ou enquanto governante.

Afirmam eles que tratariam de bom grado com a Igreja Romana, mas com igualdade de direitos, isto é, iguais com um igual. Mas, se pudessem fazê-lo, não parece existir dúvida de que agiriam com a intenção de que, por um pacto que talvez se ajustasse, não fossem coagidos a afastarem-se daquelas opiniões que são a causa pela qual ainda vagueiem e errem fora do único aprisco de Cristo.

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10. A Igreja Católica não pode participar de semelhantes reuniões 

Assim sendo, é manifestamente claro que a Santa Sé, não pode, de modo algum, participar de suas assembléias e que, aos católicos, de nenhum modo é lícito aprovar ou contribuir para estas iniciativas: se o fizerem concederão autoridade a uma falsa religião cristã, sobremaneira alheia à única Igreja de Cristo.

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11. A verdade revelada não admite transações   

Acaso poderemos tolerar – o que seria bastante iníquo-, que a verdade e, em especial a revelada, seja diminuída através de pactuações?

No caso presente, trata-se da verdade revelada que deve ser defendida.

Se Jesus Cristo enviou os Apóstolos a todo o mundo, a todos os povos que deviam ser instruídos na fé evangélica e, para que não errassem em nada, quis que, anteriormente, lhes fosse ensinada toda a verdade pelo Espírito Santo, acaso esta doutrina dos Apóstolos faltou inteiramente ou foi alguma vez perturbada na Igreja em que o próprio Deus está presente como regente e guardião?

Se o nosso Redentor promulgou claramente o seu Evangelho não apenas para os tempos apostólicos, mas também para pertencer às futuras épocas, o objeto da fé pode tornar-se de tal modo obscuro e incerto que hoje seja necessários tolerar opiniões pelo menos contrárias entre si?

Se isto fosse verdade, dever-se-ia igualmente dizer que o Espírito Santo que desceu sobre os Apóstolos, que a perpétua permanência dele na Igreja e também que a própria pregação de Cristo já perderam, desde muitos séculos, toda a eficácia e utilidade: afirmar isto é, sem dúvida, blasfemo.

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12. A Igreja Católica: depositária infalível da verdade

Quando o Filho unigênito de Deus ordenou a seus enviados que ensinassem a todos os povos, vinculou então todos os homens pelo dever de crer nas coisas que lhes fossem anunciadas pela “testemunha pré-ordenadas por Deus” (At. 10,41). Entretanto, um e outro preceito de Cristo, o de ensinar e o de crer na consecução da salvação eterna, que não podem deixar de ser cumpridos, não poderiam ser entendidos a não ser que a Igreja proponha de modo íntegro e claro a doutrina evangélica e que, ao propô-la, seja imune a qualquer perigo de errar.

Afastam-se igualmente do caminho os que julgam que o depósito da verdade existe realmente na terra, mas que é necessário um trabalho difícil, com tão longos estudos e disputas para encontrá-lo e possuí-lo que a vida dos homens seja apenas suficiente para isso, com se Deus benigníssimo tivesse falado pelos profetas e pelo seu Unigênito para que apenas uns poucos, e estes mesmos já avançados em idade, aprendessem perfeitamente as coisas que por eles revelou, e não para que preceituasse uma doutrina de fé e de costumes pela qual, em todo o decurso de sua vida mortal, o homem fosse regido.

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13. Sem fé, não há verdadeira caridade 

Estes pancristãos, que empenham o seu espírito na união das igrejas, pareceriam seguir, por certo, o nobilíssimo conselho da caridade que deve ser promovida entre os cristãos. Mas, dado que a caridade se desvia em detrimento da fé, o que pode ser feito?

Ninguém ignora por certo que o próprio João, o Apóstolo da Caridade, que em seu Evangelho parece ter manifestado os segredos do Coração Sacratíssimo de Jesus e que permanentemente costumavas inculcar à memória dos seus o mandamento novo: “Amai-vos uns aos outros”, vetou inteiramente até mesmo manter relações com os que professavam de forma não íntegra e incorrupta a doutrina de Cristo: “Se alguém vem a vós e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem digais a ele uma saudação” (2 Jo. 10).

Pelo que, como a caridade se apóia na fé íntegra e sincera como que em um fundamento, então é necessário unir os discípulos de Cristo pela unidade de fé como no vínculo principal.

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14. União Irracional  

Assim, de que vale excogitar no espírito uma certa Federação cristã, na qual ao ingressar ou então quando se tratar do objeto da fé, cada qual retenha a sua maneira de pensar e de sentir, embora ela seja repugnante às opiniões dos outros?

E de que modo pedirmos que participem de um só e mesmo Conselho homens que se distanciam por sentenças contrárias como, por exemplo, os que afirmam e os que negam ser a sagrada Tradição uma fonte genuína da Revelação Divina?

Como os que adoram a Cristo realmente presente na Santíssima Eucaristia, por aquela admirável conversão do pão e do vinho que se chama transubstanciação e os que afirmam que, somente pela fé ou por sinal e em virtude do Sacramento, aí está presente o Corpo de Cristo?

Como os que reconhecem nela a natureza do Sacrifício e a do Sacramento e os que dizem que ela não é senão a memória ou comemoração da Ceia do Senhor?

Como os que crêem ser bom e útil invocar súplice os Santos que reinam junto de Cristo – Maria, Mãe de Deus, em primeiro lugar – e tributar veneração às suas imagens e os que contestam que não pode ser admitido semelhante culto, por ser contrário à honra de Jesus Cristo, “único mediador de Deus e dos homens”? (1 Tim. 2,5).

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15. Princípio até o indiferentismo e o modernismo

Não sabemos, pois, como por essa grande divergência de opiniões seja defendida o caminho para a realização da unidade da Igreja: ela não pode resultar senão de um só magistério, de uma só lei de crer, de uma só fé entre os cristãos. Sabemos, entretanto, gerar-se facilmente daí um degrau para a negligência com a religião ou o Indiferentismo e para o denominado Modernismo. os que foram miseravelmente infeccionados por ele defendem que não é absoluta, mas relativa a verdade revelada, isto é, de acordo com as múltiplas necessidades dos tempos e dos lugares e com as várias inclinações dos espíritos, uma vez que ela não estaria limitada por uma revelação imutável, mas seria tal que se adaptaria à vida dos homens.

Além disso, com relação às coisas que devem ser cridas, não é lícito utilizar-se, de modo algum, daquela discriminação que houveram por bem introduzir entre o que denominam capítulos fundamentais e capítulos não fundamentais da fé, como se uns devessem ser recebidos por todos, e, com relação aos outros, pudesse ser permitido o assentimento livre dos fiéis: a Virtude sobrenatural da fé possui como causa formal a autoridade de Deus revelante e não pode sofrer nenhuma distinção como esta.

Por isto, todos os que são verdadeiramente de Cristo consagram, por exemplo, ao mistério da Augusta Trindade a mesma fé que possuem em relação dogma da Mãe de Deus concebida sem a mancha original e não possuem igualmente uma fé diferente com relação à Encarnação do Senhor e ao magistério infalível do Pontífice romano, no sentido definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano.

Nem se pode admitir que as verdade que a Igreja, através de solenes decretos, sancionou e definiu em outras épocas, pelo menos as proximamente superiores, não sejam, por este motivo, igualmente certas e nem devam ser igualmente acreditadas: acaso não foram todas elas reveladas por Deus?

Pois, o Magistério da Igreja, por decisão divina, foi constituído na terra para que as doutrinas reveladas não só permanecessem incólumes perpetuamente, mas também para que fossem levadas ao conhecimento dos homens de um modo mais fácil e seguro. E, embora seja ele diariamente exercido pelo Pontífice Romano e pelos Bispos em união com ele, todavia ele se completa pela tarefa de agir, no momento oportuno, definindo algo por meio de solenes ritos e decretos, se alguma vez for necessário opor-se aos erros ou impugnações dos hereges de um modo mais eficiente ou imprimir nas mentes dos fiéis capítulos da doutrina sagrada expostos de modo mais claro e pormenorizado.

Por este uso extraordinário do Magistério nenhuma invenção é introduzida e nenhuma coisa nova é acrescentada à soma de verdades que estando contidas, pelo menos implicitamente, no depósito da revelação, foram divinamente entregues à Igreja, mas são declaradas coisas que, para muitos talvez, ainda poderiam parecer obscuras, ou são estabelecidas coisas que devem ser mantidas sobre a fé e que antes eram por alguns colocados sob controvérsia.

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16. A única maneira de unir todos os cristãos

Assim, Veneráveis Irmãos, é clara a razão pela qual esta Sé Apostólica nunca permitiu aos seus estarem presentes às reuniões de acatólicos por quanto não é lícito promover a união dos cristãos de outro modo senão promovendo o retorno dos dissidentes à única verdadeira Igreja de Cristo, dado que outrora, infelizmente, eles se apartaram dela.

Dizemos à única verdadeira Igreja de Cristo: sem dúvida ela é a todos manifesta e, pela vontade de seu Autor, Ela perpetuamente permanecerá tal qual Ele próprio A instituiu para a salvação de todos.

Pois, a mística Esposa de Cristo jamais se contaminou com o decurso dos séculos nem, em época alguma, poderá ser contaminada, como Cipriano o atesta: “A Esposa de Cristo não pode ser adulterada: ela é incorrupta e pudica. Ela conhece uma só casa e guarda com casto pudor a santidade de um só cubículo” (De Cath. Ecclessiae unitate, 6).

E o mesmo santo Mártir, com direito e com razão, grandemente se admirava de que pudesse alguém acreditar que “esta unidade que procede da firmeza de Deus pudesse cindir-se e ser quebrada na Igreja pelo divórcio de vontades em conflito” (ibidem).

Portanto, dado que o Corpo Místico de Cristo, isto é, a Igreja, é um só (1 Cor. 12,12), compacto e conexo (Ef. 4,15), à semelhança do seu corpo físico, seria inépcia e estultície afirmar alguém que ele pode constar de membros desunidos e separados: quem pois não estiver unido com ele, não é membro seu, nem está unido à cabeça, Cristo (Cfr. Ef. 5,30; 1,22).

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17. A obediência ao Romano Pontífice 

Mas, ninguém está nesta única Igreja de Cristo e ninguém nela permanece a não ser que, obedecendo, reconheça e acate o poder de Pedro e de seus sucessores legítimos.

Por acaso os antepassados dos enredados pelos erros de Fócio e dos reformadores não estiveram unidos ao Bispo de Roma, ao Pastor supremo das almas?

Ai! Os filhos afastaram-se da casa paterna; todavia ela não foi feita em pedaços e nem foi destruída por isso, uma vez que estava arrimada na perene proteção de Deus. Retornem, pois, eles ao Pai comum que, esquecido das injúrias antes gravadas a fogo contra a Sé Apostólica, recebê-los-á com máximo amor.

Pois se, como repetem freqüentemente, desejam unir-se Conosco e com os nossos, por que não se apressam em entrar na Igreja, “Mãe e Mestra de todos os fiéis de Cristo” (Conc. Later 4, c.5)?

Escutem a Lactâncio chamado amiúde: “Só… a Igreja Católica é a que retém o verdadeiro culto. Aqui está a fonte da verdade, este é o domicílio da Fé, este é o templo de Deus: se alguém não entrar por ele ou se alguém dele sair, está fora da esperança da vida e salvação. é necessário que ninguém se afague a si mesmo com a pertinácia nas disputas, pois trata-se da vida e da salvação que, a não ser que seja provida de um modo cauteloso e diligente, estará perdida e extinta” (Divin. Inst. 4,30, 11-12).

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18. Apelo às seitas dissidentes

Aproximem-se, portanto, os filhos dissidentes da Sé Apostólica, estabelecida nesta cidade que os Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo consagraram com o seu sangue; daquela Sede, dizemos, que é “raiz e matriz da Igreja Católica” (S. Cypr., ep. 48 ad Cornelium, 3), não com o objetivo e a esperança de que “a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade” (1 Tim 3,15) renuncie à integridade da fé e tolere os próprios erros deles, mas, pelo contrário, para que se entreguem a seu magistério e regime.

Oxalá auspiciosamente ocorra para Nós isto que não ocorreu ainda para tantos dos nossos muitos Predecessores, a fim de que possamos abraçar com espírito fraterno os filhos que nos é doloroso estejam de Nós separados por uma perniciosa dissensão.

Prece a Nosso Senhor e a Nossa Senhora. Oxalá Deus, Senhor nosso, que “quer salvar todos os homens e que eles venham ao conhecimento da verdade”(1 Tim. 2,4) nos ouça suplicando fortemente para que Ele se digne chamar à unidade da Igreja a todos os errantes.

Nesta questão que é, sem dúvida, gravíssima, utilizamos e queremos que seja utilizada como intercessora a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe da graça divina, vencedora de todas as heresias e auxílio dos cristãos, para que Ela peça, para o quanto antes, a chegada daquele dia tão desejado por nós, em que todos os homens escutem a voz do seu Filho divino, “conservando a unidade de espírito em um vínculo de paz” (Ef. 4,3).

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19. Conclusão e Bênção Apostólica  

Compreendeis, Veneráveis Irmãos, o quanto desejamos isto e queremos que o saibam os nossos filhos, não só todos os do mundo católico, mas também os que de Nós dissentem. Estes, se implorarem em prece humilde as luzes do céu, por certo reconhecerão a única verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, por fim, nEla tendo entrado, estarão unidos conosco em perfeita caridade.

No aguardo deste fato, como auspício dos dons de Deus e como testemunho de nossa paterna benevolência, concedemos muito cordialmente a vós, Veneráveis Irmãos, e a vosso clero e povo, a bênção apostólica.

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Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia seis de janeiro, no ano de 1928, festa da Epifania de Jesus Cristo, Nosso Senhor, sexto de nosso Pontificado.

Pio, Papa XI.

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Fontehttp://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19280106_mortalium-animos_po.html

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Post publicado originalmente em: 7/6/2011

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Continuação! 

Segundo erro fundamental

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B. – Diz talvez a Bíblia que não se deve crer nada do que não está nela?
-Não diz tal, muito pelo contrário. O que diz claramente é que se devem crer as doutrinas pregadas, ainda que não escritas, pelos apóstolos: – “Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura. Aquele que crer e for  batizado se salvará; aquele porém que não crer se condenará.”
                      Já vimos nos textos anteriores que os apóstolos pregavam muitas das coisas ensinadas por Jesus, que não estavam escritas em livro algum. Logo, segundo a Bíblia, devemos crer em muitas coisas que não estão na Bíblia.
                         Além disso, antes que se escrevesse o evangelho, como podiam crer os primeiros fiéis, se não se pode crer nada do que não está na Bíblia? A Igreja já se propagou por muitíssimos países e contou inumeráveis santos, antes que se escrevesse o primeiro evangelho, de São Mateus.
Assim como os primeiros fiéis creram tudo o que pregaram os apóstolos sem a Bíblia, assim também nós devemos crer tudo o que eles pregaram, esteja ou não esteja escrito na Bíblia. E ainda que São Paulo não tivesse escrito nenhuma epístola, e os apóstolos não tivesses escrito evangelho algum, a nossa fé seria a mesma, porque a nossa fé se funda na palavra de Deus, que chega até nós por meio dos apóstolos e dos seus sucessores: “A fé provém do ouvir, e o ouvir depende da pregação da palavra de Cristo.” (Rom. 10;17)
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“O que a vós ouve, a mim ouve; o que a vós despreza, a mim despreza. 
E quem me despreza, despreza Aquele que me enviou.” (Luc.10;16).
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Continua …
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São José nos defenda!
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Protestantismo I
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O protestantismo condenado pela Bíblia

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No protestantismo devemos distinguir duas classes de erros: uns que são fundamentais e outros que são derivações ou consequências dos primeiros. Os erros fundamentais são os que constituem a razão ou a mesma natureza do protestantismo. Postos estes erros fundamentais, os erros consequentes que deles se derivam são infinitos, e daí se originam as inumeráveis seitas protestantes.
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PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROTESTANTISMO
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1º Que na Bíblia está encerrado tudo o que Deus revelou e, portanto, tudo o que se deve crer.
2º Que não se deve crer nada do que não está na Bíblia.
3º Que a Bíblia é livro claro, e que cada qual deve interpretar por si mesmo.
4º Que a fé se deve propagar, não já pelo ensinamento ou magistério da Igreja, mas pela distribuição de Bíblias.
Nestes quatro princípios se apoiam todos os erros protestantes. Não creio, dizem eles, senão o que está na Bíblia.
E nós, Católicos, retrucamos aos protestantes: – Estão porventura na Bíblia esses quatro princípios fundamentais, que constituem o vosso Credo?… Não somente não está na Bíblia, que antes a própria Bíblia os condena claramente, como havemos de ver.
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PRIMEIRO ERRO FUNDAMENTAL DOS PROTESTANTES
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A – Diz talvez a Bíblia que nela estão encerrados todos os ensinamentos de Jesus?
– Diz precisamente o contrario, a saber, que não estão na Bíblia todos os ensinamentos de Jesus, pois parte deles estão na pregação apostólica, isto é, na Tradição. Eis aqui as palavras textuais da Bíblia:
<Muitos outros prodígios fez ainda Jesus na presença de seus discípulos, que não estão escritos neste livro >. (São João, 20;30). – < Muitas outras coisas há ainda que fez Jesus; as quais, se se escrevessem uma por um, creio que nem no mundo todo poderiam caber os livros que se teriam de escrever > (São João, 21;25).
Essas coisas não escritas foram pregadas pelos apóstolos, conforme esta ordem formada do Senhor: – < Ide, pois e pregai a todos os povos… Ensinando. E eis aqui que eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo. > (Matheus. 28; 19, 20).
Por estes motivos é que os Apóstolos recomendavam tanto aos fieis que guardassem igualmente as coisas escritas e as doutrinas pregadas, porque ambas eram reveladas por Jesus Cristo Deus. -< Sede, pois constantes, irmãos meus, e conservar as tradições que aprendestes, quer por meio da nossa pregação, quer por epistola nossa>. (2.ª aos Tessal. 2; 15.)
E mandavam que essas coisas pregadas  se conservassem cuidadosamente e se transmitissem integral e fielmente, como de mão em mão, formando assim a divina Tradição. < O que de mim ouviste diante de muitas testemunhas, confia-o a homens fieis que sejam capazes de o ensinar também a outros >. (2.ª a /timoth. 2; 2).
Assim se cumprem na Igreja as palavras do profeta que anunciava a propaganda da fé, não pela leitura da Bíblia, mas pela pregação oral: – < Minhas palavras, que pus em tua boca, não se apartarão de tua boca, nem da boca dos teus filhos, diz o Senhor: desde agora e para sempre >. (Is. 59; 21)
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O Limbo

Fonte: Mosteiro da Santa Cruz

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O LIMBO: UMA DOUTRINA INCONTESTÁVEL CONFUNDIDA PELA “NOVA TEOLOGIA”

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Depois do nosso artigo “Magistério desprezado — o Batismo das crianças e o limbo” (Sim sim Não não de abril de 1996 p.1), recebemos a seguinte correspondência do Rev. Pe. Sulmont ? carta publicada no Boletim Paroquial de Domqueur de novembro de 1995 (suplemento do Boletim n°287, p. 1):

Domqueur, 25 de outubro de 1995

Senhores,

Li seu artigo em SiSiNoNO do mês de outubro..

Sem dúvida, estou inteiramente de acordo com sua posição sobre a necessidade de batizar as crianças, como ensinam o Magistério infalível da Igreja, todos os Concílios, toda a tradição, inclusive o Credo de Paulo VI, de 30 de junho de 1968.

Entretanto, permitam-me ser menos categórico a respeito do limbo e da sorte das crianças mortas sem Batismo.

O limbo das crianças é uma conclusão teológica que não é de Fé divina mas somente de Fé eclesiástica, segundo a classificação que me foi outrora ensinada no Seminário.

Dito de outra forma, o limbo não faz parte da Revelação contida no Evangelho. Quando Cristo diz a Nicodemo ‘ninguém, se não renasce da água e do Espírito Santo, pode entrar no reino de Deu´ (Jo. III, 5), funda o Batismo, mas Ele fala a pessoas que não são ainda batizadas e os próprios apóstolos não o estavam ainda, como se acredita.

Necessita-se, assim, um certo tempo para que o sacramento do Batismo seja generalizado: o reino de Deus se instaurará aqui, pouco a pouco.

O limbo, ou melhor, as franjas do reino de Deus, existe na terra, para a Igreja, antes que a evangelização se tenha realizado plenamente em seus fiéis.

Guardei a lembrança da morte de parto de uma mãe há alguns anos, e vejo ainda o pequeno caixão da sua filhinha, chamada Aurora, posto ao lado da mãe, que era boa cristã.

O senhor pensa que Deus possa abrir o céu à mãe, dar-lhe a bem-aventurança, e fechar a porta ao seu bebê, enviando-o a algum outro lugar?

Ainda que uma mãe pudesse esquecer seu filhinho, Deus não esquece os seus.

Parece-me que a solução do limbo não leva suficientemente em conta o dogma da Comunhão dos Santos que está no Credo.

Em todos os tempos, e desde o Antigo Testamento, os fiéis admitem que a morte permite o reencontro com seus pais. Os laços naturais da família não são definitivamente rompidos. Os méritos dos santos não podem ser atribuídos, com prioridade, aos membros de sua família natural e àqueles que eles amaram na terra? Senão a caridade seria uma virtude descontínua.

Eis o que sugiro: talvez os senhores possam dar-me sua opinião sobre esse assunto difícil do limbo.

De qualquer maneira, estou de acordo com os senhores em combater, o mais energicamente possível, o retorno da heresia de Pelágio e a inadmissível teoria da escolha pessoal do Batismo unicamente para os adultos.

O pelagianismo é hoje uma praga: a negação do pecado original, o culto do Homem, os sacramentos laicizados, o desprezo da graça de Deus em benefício de truques; ignora-se o texto do Evangelho: “Não foram vós que me escolheram, mas eu, diz Jesus, que vos escolhi” (Jo, XV, 16).

Cordialmente,

Pe. Sulmont

Por seu lado, uma leitora nos escreve:

Rev. Pe.,

[…] o artigo a respeito do Batismo das crianças e o limbo, no seu último número, fez-me refletir de novo.

Minha cunhada, por ocasião de uma intervenção cirúrgica, estando grávida de quatro meses, pediu que o feto fosse batizado, no caso de… Tendo sido mudada a equipe cirúrgica (durante a noite), não se fez o que ela tinha pedido.

À uma pergunta feita a […] me responderam que não havia, nesse caso, Batismo de desejo, porque não se podia intervir da mesma maneira para um adulto, que deveria acusar seus pecados.

Permita-me refazer a pergunta ao mesmo tempo em que formulo esta outra: Como encarar, nesse particular, a questão do Juízo Final?

Espero que o senhor me esclareça sobre esse ponto delicado, sabendo que no fm do mundo haverá aqueles que terão (feito…) e os que não terão (feito…) em função de sua vontade livre e esclarecida, e lhe peço que aceite, com meus agradecimentos antecipados, a expressão do meu respeito.

Carta assinada

Respondemos aqui a essas duas cartas.

UMA “DOUTRINA COMUM DA IGREJA”

“… permitam-me ser menos categórico a respeito do limbo e da sorte das crianças mortas sem Batismo”. (Pe. Sulmont).

Não se trata aqui de ser mais ou menos “categórico”. Trata-se, ao contrário, de manter a doutrina ensinada durante séculos, até às vésperas do Concílio Vaticano II, pela maioria dos Pastores, doutrina adotada pela maioria dos teólogos, acreditada por todo o povo cristão. Separar-se dela significa separar-se da doutrina comum para aderir a essas vozes discordantes e isoladas, que não faltaram em diversos períodos, no curso dos séculos, mas que se mostraram inconciliáveis com a Revelação divina ou que permaneceram como hipóteses, piedosas e caritativas, se quiserem, mas que não são fundadas sobre qualquer revelação.

Em 1935, padre J. Webert, O.P. escrevia: “Se, no curso dos tempos, houve entre os teólogos certas hesitações ou obscuridades, a doutrina da Igreja está doravante bem determinada sobre a existência do Limbo, como lugar onde repousarão eternamente as almas daqueles que morreram somente com o pecado original” (L’au dela, notas e apêndices à tradução francesa da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, ed. Desclée). O próprio Häring, que nega o limbo das crianças, reconhece que se trata de “uma doutrina comum da Igreja” (Famiglia Christiana 27 de maio de 1975) e todos os teólogos a reconhecem como tal.

Ora, um padre deve estimar no seu justo valor o peso — no domínio doutrinário — de um consenso tão longamente mantido e tão unânime na Igreja, consenso que, por sua aceitação tranqüila e sua duração, compromete a própria infalibilidade da Igreja tanto “in docendo” quanto “in credendo”.

A isto, deve-se acrescentar o favor, tácito ou expresso, do Magistério Pontifício que, pela boca de Pio VI, defendeu como ortodoxa a crença no limbo contra o concílio herético de Pistóia: “O papa declara falsa, temerária, injuriosa às escolas católicas, a proposição segundo a qual deve ser rejeitado como uma fábula pelagiana o lugar dos infernos, chamado vulgarmente limbo das crianças, no qual as almas daqueles que morrem somente com o pecado original são punidas com a pena de dano [privação da visão de Deus] sem a pena do fogo” (DB 1526).

Assim, em 1954, nas vésperas do Vaticano II, os padres jesuítas espanhóis na sua Sacrae Theologiae Summa (BAC, Madri) escreviam que “etsi de limbo plures sunt quaestiones, ejus existentia certo tenenda est [em itálico no texto] quamvis non sit doctrina de fide definita”. “Apesar de haver várias questões [a resolver] sobre os limbos, sua existência deve ser tida por certa, conquanto não haja uma fé definida” (vol. II De sacramentis p. 150). E depois de ter examinado e refutado as diversas objeções e hipóteses sobre o destino das crianças mortas sem Batismo, estes padres jesuítas lembravam o gravíssimo julgamento de Santo Agostinho: “Noli credere nec docere infantes antequam baptizantur morte praeventos pervenire posse ad originalium indulgentiam peccatorum, si vis esse catholicus [em itálico no texto]”. “Quem quer ser católico, não creia, nem diga, nem ensine que as crianças colhidas pela morte antes de serem batizadas podem obter a remissão do pecado original” (Ibid.)

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UM ERRO

“O limbo das crianças é uma conclusão teológica que não é de Fé divina mas somente de Fé eclesiástica, segundo a classificação que me foi outrora ensinada no Seminário” (Pe. Sulmont).

Sentimos muito ter que dizer que o Pe. Sulmont é aqui “categórico” e que está em erro, e isso por vários motivos. O limbo é, realmente, uma conclusão teológica, mas não uma conclusão teológica de Fé eclesiástica, sem que a Igreja tenha ainda se pronunciado sobre a questão (e veremos por que) de maneira solene e definitiva. Contudo, fosse a doutrina sobre o limbo de Fé eclesiástica, como crê nosso leitor, sua certeza seria “infalível como nos casos dos verdadeiros dogmas” (L. Ott Compendio di teologia dogmatica, Marietti 1955 p.22) e, portanto, o argumento segundo o qual o Limbo “não seria de Fé divina mas somente de Fé eclesiástica” não tem nenhum peso, em realidade.

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SENTENTIA AD FIDEM PERTINENS

“Dito de outra forma, o limbo não faz parte da Revelação contida no Evangelho” (Pe. Sulmont).

Infelizmente, não estamos de acordo com nosso reverendo leitor. O limbo é uma conclusão teológica como, aliás, ele mesmo o diz e, por conseguinte, justamente por ser uma conclusão teológica, é uma verdade virtualmente ou implicitamente revelada, como o ensina qualquer manual de teologia: “Chama-se conclusão teológica uma verdade religiosa deduzida de duas premissas, das quais uma é formalmente revelada e a outra é conhecida unicamente pela razão. Sendo tais verdades derivadas de uma raiz da Revelação, são ditas virtualmente reveladas (virtualiter revelatae)” (Bartmann Manuale di teologia dogmática, vol. I, ed. Paoline 1949, p. 20).

Por esta relação teológica com a Revelação divina, a conclusão teológica, antes mesmo de ter sido pronunciada definitivamente pela Igreja, é chamada “sententia ad fidem pertinens”, sentença que pertence à Fé. Não seremos, portanto, tão categóricos para concluir como nosso leitor que “o limbo não faz parte da Revelação, contida no Evangelho”.

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UMA OPINIÃO “MUITO SINGULAR”

“O limbo, ou melhor, as franjas do reino de Deus, existe na terra, para a Igreja, antes que a evangelização se tenha realizado plenamente em seus fiéis” (Pe. Sulmont).

E é assim que os limbos são completamente negados. Não se trata aqui, de fato, do destino das crianças mortas sem Batismo e que seus pais tenham desejado batizá-las, trata-se sim da própria existência do limbo. Não vemos como essa opinião totalmente pessoal, que situa o limbo “aqui em baixo”, sobre a terra, possa conciliar-se com o Evangelho: “Ninguém, se não renasce da água e do Espírito Santo, pode entrar no Reino de Deus” (Jo. 3,5), e com dois mil anos de reflexão teológica “in eodem sensu et eadem sententia” sobre a sorte das crianças mortas sem Batismo e com os documentos do Magistério infalível da Igreja. Se o limbo existe somente “aqui em baixo” e não existe depois da morte, quer dizer que jamais haverá o caso de almas que morrem unicamente com o pecado original, mas somente almas dignas ou do Céu (com seu anexo, o Purgatório) ou do Inferno, por terem morrido não somente com o pecado original, mas também com pecados pessoais. As definições infalíveis da Igreja, ao contrário — todas sem exceção — consideram certo que existem almas que morrem somente com o pecado original: na profissão de Fé de Michel Paleólogo e em todas as profissões de Fé impostas aos orientais (Dz. 387, 588, 870, 875), no Concílio de Lyon e no de Florença (DB 464) distingue-se sempre entre os que morrem em estado de pecado mortal e os que morrem “somente com o pecado original” (isto é, as crianças e os dementes não batizados). Daí a conclusão lógica, tirada pelos teólogos, da existência de um lugar especial que acolhe essas almas depois da morte.

Além disso, uma vez negado o limbo depois da morte com a finalidade de salvar as crianças cujos pais desejaram ardentemente o batismo, faltaria estabelecer onde vão terminar as outras crianças, inclusive as dos infiéis, cujos pais não desejaram batizar, nem mesmo vagamente. Não chegaríamos, por este caminho, a negar a própria verdade revelada, da qual o limbo não é senão uma conseqüência lógica, a saber, a necessidade absoluta do Batismo para todos? Ficaremos por aqui. Acrescentemos somente que a Igreja, hoje, sofre com opiniões “muito pessoais”. Evitemos, nós que queremos ser filhos fiéis da Igreja, dela sair.

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UMA PERGUNTA DESRESPEITOSA PARA COM O MAGISTÉRIO E A TEOLOGIA CATÓLICA

“Guardei a lembrança da morte de parto de uma mãe há alguns anos, […] O senhor pensa que Deus possa abrir o céu à mãe, […] e fechar a porta ao seu bebê, enviando-o a algum outro lugar?” (Pe. Sulmont)

Essa pergunta nos parece, antes de tudo, e é o menos que se pode dizer, desrespeitosa para com tantos grandes teólogos católicos (incluindo Santo Agostinho e São Tomás de Aquino), como para com a Igreja que – como se exprime Pio XII em Humani Generis — “deu com sua autoridade, uma aprovação tão notável a sua teologia”. De fato, esses grandes teólogos — e a Igreja com eles — não se teriam dado conta de que o limbo faz injustiça à … bondade de Deus! Na realidade, os grandes teólogos bem sabiam que a visão direta de Deus é um dom totalmente gratuito (ninguém tem “direito” à graça e à glória), que ultrapassa infinitamente as exigências e as aspirações da natureza humana (coisa negada pela “nova teologia”) e que não é permitido, portanto, pedir contas a Deus quando Ele não concede a alguém as alegrias do Céu que, apesar de querer dar a todos, não deve a ninguém. Nossa geração orgulhosa parece ter esquecido isso, mas a palavra de Deus está aí para nos lembrar: “Ó homem, quem és para altercar com Deus? Será que o vaso de argila diz a quem lhe deu a forma: Por que me fizeste assim? O oleiro não é dono da sua argila, para fazer da mesma massa um vaso de honra e um vaso de ignomínia?” (Rm 9, 20-21). Ou ainda: “Não fostes vós que me escolheram, mas eu que vos escolhi” (Jo 15, 16) recordado pelo Pe. Sulmont na conclusão de sua carta e que é uma das várias passagens evangélicas que afirmam a soberana liberdade de Deus no plano da salvação. (Lembremo-nos também de: “Não sou livre de fazer dos meus bens o que quero?”, do dono da vinha, na parábola dos operários da última hora).

É certo que Deus quer que todos os homens se salvem, mas o quer com uma vontade condicionada, não absoluta (como o quereria, contrariamente, a “nova teologia”), isto é, Ele o quer com a condição que os homens e as causas segundas, em geral, concorram para a obra de salvação e, se esse concurso falta, Deus não intervém distribuindo milagres, para enviar todos os homens ao Paraíso, a qualquer preço, violando a liberdade humana, mas deixa as causas segundas seguirem seu curso. Por isso muitas crianças morrem sem Batismo por negligência culpável dos pais e de outras pessoas (no caso exposto pela leitora, por falta de equipe médica precedente que não transmitiu à nova equipe a vontade da mãe). E mesmo se a negligencia não é evidente, como nesse caso, sempre se poderia procurar uma responsabilidade — segundo a hipótese plausível de um teólogo — na falta de utilização de todas as graças atuais que Deus distribui aos homens para que se cumpra perfeitamente seu plano de salvação. Com isto, não pretendemos que a questão esteja completamente resolvida: ela permanece sempre misteriosa para o homem porque, no fundo, trata-se de uma desigual repartição de graças, desigualdade da qual Deus se reserva o segredo. O que está dito, no entanto, basta para estabelecer que a existência do limbo não põe em questão a justiça, nem a bondade divina. Tanto é assim que, segundo o julgamento comum dos teólogos, se as alegrias do Céu são recusadas às almas do limbo (elas não lhes são devidas), as alegrias naturais, as mais elevadas, não se lhe são, no entanto, recusadas, alegrias que lhes asseguram uma felicidade pelas quais não cessam de agradecer a Deus.

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UMA DOUTRINA CONSOLADORA

Realmente, a reflexão teológica sobre os limbos, se estes são bem conhecidos (o que não parece o caso, segundo as cartas recebidas) oferece vários motivos de consolação aos pais cristãos aflitos.

É certo que as almas do limbo sofrem objetivamente a pena do pecado original, que é “a privação da visão de Deus” (Inocêncio III, Dz. Enchiridion n° 341), mas é de julgamento comum dos teólogos que a justiça divina não permite que elas a sofram subjetivamente. Já havia dito Santo Agostinho que sua pena “é entre todas a mais doce” “omnium mitissima” (a dureza ulterior do doutor de Hipona é devida à controvérsia pelagiana). Foi em seguida, aprofundando a natureza do pecado original, que nos descendentes de Adão tem um caráter não de falta, mas de privação da graça, que os teólogos precisaram melhor a natureza da pena do limbo, puramente privativa também, e não aflitiva.

Seu julgamento é assim ilustrado e defendido por São Tomás: “a mesma razão vale para a ausência de sofrimento sensível e para a ausência de sofrimento espiritual (para as crianças mortas sem Batismo).

É sempre o gozo ilegítimo que merece sofrer, e o pecado original não o comporta: há, portanto, isenção de todo sofrimento.

A terceira opinião admite que as crianças possuem um perfeito conhecimento de tudo o que pode ser conhecido naturalmente, sabem que estão privadas da vida eterna e sabem a razão, e, no entanto, não experimentam nenhum sofrimento. É o que se precisa explicar.

A ausência de uma perfeição que o excede, não aflige aquele cuja razão é reta (é o caso das crianças mortas sem Batismo), por exemplo, não poder voar como os pássaros, não ser nem rei nem imperador, porque não há nenhum direito a isso; mas ele devia afligir-se por ser privado de um bem que lhe é proporcionado e ao qual é apto. Digo, pois, que todos os homens no uso de seu livre arbítrio são capazes de obter a vida eterna, porque podem preparar-se à graça, que é o meio para isso. Desde então, se faltam a ela, conservarão uma soberana dor por ter perdido o que eles poderiam possuir. Ora, essa capacidade sempre faltou às crianças: a vida eterna não lhes era devida por natureza, da qual excede totalmente as exigências, e por outro lado, não poderiam praticar nenhum ato pessoal, que as fizesse merecer tão grande bem. Portanto, elas não se afligem de nenhuma maneira por não ver a Deus, e de outra parte, gozam por participar em grande parte do bem do qual Deus é a fonte e possuir todos os dons naturais que recebem Dele.

Não se pode atribuir-lhes a capacidade de obter a vida eterna por uma ação pessoal e nem tão pouco por uma ação externa; não se pode dizer que elas poderiam ter sido batizadas, como muitas outras o foram, e que assim viessem a gozar da visão de Deus. Porque, ser recompensado por uma ação que não é pessoal é o efeito de uma graça totalmente particular, que as crianças não se entristecem de não ter recebido, assim como um homem sensato não se entristece por não ter recebido muitas graças concedidas por Deus a outros homens”. São Tomás App.q.2 a.2. Tradução francesa: Revue des Jeunes, suppl: q.70 bis art.2).

Em suma, se o limbo não é o Paraíso, também não é o inferno dos danados e, se lá as almas não gozam da visão beatifica, gozam, não obstante, de uma felicidade acidental secundária, possuindo sem dor bens naturais, de nenhum modo desprezíveis, e em primeiro lugar o conhecimento e o amor natural de Deus, como o explica São Tomás.

“Apesar de que as crianças não batizadas estejam separadas de Deus, no que concerne à visão beatifica, elas não estão completamente separadas Dele. Ao contrário, estão unidas a Deus pela participação nos bens naturais e podem assim gozar Dele também pelo conhecimento natural e o amor natural” (In IV Sent. I.II, dist. XXX, q.II a.2 ad.5).

Suarez, por seu lado, diz que as crianças mortas sem Batismo amam a Deus com um amor natural, acima de todas as coisas e gozam por estarem ao abrigo de todo pecado e de todo sofrimento (De peccatis et vitiis disp. IX sect VI).

Lessius diz que elas possuem um conhecimento natural perfeito das coisas materiais e espirituais que as leva a amar soberanamente a Deus, mesmo se se trata de um amor natural, a abençoá-Lo e louvá-Lo por toda eternidade (inclusive por tê-las poupado do combate terrestre, cujo resultado é sempre incerto) (De perfect divin. 1 XII c. XXII n° 144 ss).

O cardeal Sfondrati acrescenta que “Esse benefício da inocência pessoal e da exceção do pecado é tão grande que essas crianças prefeririam ser privadas da glória celeste a cometer um só pecado; e todo cristão deve ser desta opinião [como o foram, de fato, os Santos]. Portanto, não há lugar para queixas nem aflição a propósito dessas crianças, mas antes, convém louvar a Deus e agradecer-Lhe a esse respeito” (Nodus praedestinationis dissolutus, Roma 1687, p. 120).

Como é evidente, para consolar os pais cristãos, aflitos com a morte de seus filhos sem Batismo, não é, de modo nenhum, necessário negar a existência do limbo; basta simplesmente instruí-los sobre sua doutrina. Gostaríamos também de lembrar aqui que o cônego Didiot, da Faculdade teológica, se diz “inteiramente disposto a crer que as relações entre o céu dos eleitos e o limbo das crianças são possíveis e mesmos freqüentes; que o laço de sangue conservará sua força na eternidade, e que a família cristã, reconstituídas no céu, não será privada da alegria de reencontrar e amar seus queridos participantes de um dia” (Mortos sem Batismo, Lille 1896 p. 60). Essa é somente uma hipótese pessoal e o autor a tem por tal, mas é uma hipótese que se harmoniza com o dogma e a doutrina tradicional.

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PELOS MÉRITOS DE CRISTO E NÃO DOS SANTOS

“Parece-me que a solução do limbo não leva suficientemente em conta o dogma da Comunhão dos Santos que está no Credo. […] Os méritos dos santos não podem ser atribuídos, com prioridade, aos membros de sua família natural e àqueles que eles amaram na terra?” (Pe. Sulmont)

Esta observação também é um agravo aos grandes teólogos da Igreja e a Ela mesma que não se teriam dado conta, todos, que a conclusão teológica sobre o limbo não está bem de acordo com o “dogma da Comunhão dos Santos que está no Credo”. Na realidade os grandes teólogos não estavam esquecidos, como parece esquecer-se nosso leitor, que a primeira graça (conferida justamente pelo Batismo e restituída eventualmente pela Confissão) é concedida pelos méritos de Cristo e não dos Santos e que a Revelação divina associa absolutamente a primeira graça ao Batismo (Jo 3, 5). Esse Batismo de água pode ser substituído pelo de sangue, como no caso dos santos inocentes, assassinados pelo ódio a Cristo, ou pelo de desejo que, consistindo em atos pessoais de Fé e de contrição, não pode, no entanto, ser dado aos recém nascidos (nem aos dementes).

Não nos foi dado a conhecer outros meios de salvação, e é com justiça que os teólogos, unânimes, dizem que a uma lei tão geral e tão universal, revelada por Deus, como a do Batismo, não se pode admitir nenhuma exceção, se o próprio Deus não revelar a existência desta exceção (Sacrae theologiae Summa cit. e Dicionário de teologia católica, palavra batismo e limbo). Aí está porque todas as hipóteses sobre a questão, inclusive as piedosas, acabam por basear-se somente em razões de sentimento e carecem de fundamento sólido: “solido quidem fundamento carere”, como declara a seu respeito o Santo Ofício no Monitum de 18 de fevereiro de 1958 (AAS 50/1958, 114).

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O JULGAMENTO UNIVERSAL

Acreditamos ter assim respondido igualmente à segunda carta. Falta-nos somente responder a pergunta sobre o julgamento final. A questão não foi ignorada pela teologia católica. É verdade que o Evangelho sobre o julgamento final nada diz daqueles que não terão tido a possibilidade de “fazer ou não fazer”, mas não é permitido, de modo nenhum, deduzir daí que eles não existem. Para prová-lo há os documentos do Magistério infalível da Igreja, única à qual é dado explicar o verdadeiro sentido das Escrituras.

Esses documentos, já mencionamos, colocam sempre numa categoria à parte, distinta dos bem-aventurados e dos danados, as almas que morrem “somente com o pecado original”, quer dizer, aqueles que, como as crianças ou os dementes, não tiveram a possibilidade de agir ou não agir em função da sua vontade livre e esclarecida. Se não se faz menção dessas almas no julgamento geral é simplesmente porque esse julgamento não lhes diz respeito: elas não serão julgadas, porque não há nada para julgar, uma vez que estas almas não tiveram a possibilidade nem de merecer nem de desmerecer. É por isso que, segundo alguns teólogos, as almas do limbo nem mesmo assistirão ao julgamento final e, ignorando a felicidade dos eleitos, não sentirão nenhum pesar. Segundo outros, ao contrário, elas terão conhecimento da felicidade dos eleitos, mas igualmente não sentirão desgosto, estando sua vontade perfeitamente conforme à vontade divina, que eles sabem ser sensata, justa e boa; ao contrário, vendo a danação dos reprovados, alegrar-se-ão por seu estado e agradecerão à bondade divina de lhes haver poupado misericordiosamente a prova terrestre, que pode terminar com o céu, mas também com o inferno (do qual os danados ficariam bem contentes se as portas do limbo se abrissem para eles). Segundo Santo Tomás e os tomistas, ao contrário, mesmo se as almas do limbo assistissem ao julgamento geral, a Providência continuaria misericordiosamente mantendo-os na ignorância da felicidade dos eleitos. Todos os teólogos, sejam quais forem, estão de acordo sobre o seguinte: que o texto do Evangelho acerca do julgamento final não põe obstáculo à conclusão teológica sobre o limbo.

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UMA FÁCIL CONCLUSÃO

A Igreja, com razão, insiste no seu ensinamento sobre o dever de batizar as crianças o mais rápido possível (D.B. 712). O limbo, de fato, mesmo se não é um lugar de sofrimento, mas de prazer estimável, não é, no entanto, o Paraíso, ao qual Deus chama todos os homens. Não é nem mesmo um paraíso natural, porque as almas suportam aí, ainda que sem sofrimento, um dano real, provocado pelo pecado original: a privação da visão direta de Deus. Essa insistência justa da Igreja [sobre o Batismo precoce das crianças] não deve, no entanto, levar a comparar a danação das almas do limbo à danação dos reprovados, por que isto seria contrário ao Magistério infalível da Igreja, que os distingue bem. Tão pouco deve levar a considerar o limbo como um lugar de aflição, apesar de diferente do inferno, porque a Igreja não ensina e jamais deixou de ensinar assim, e à doutrina de Belarmino, que queria ver nas almas das crianças uma leve tristeza pela bem-aventurança perdida, ela claramente preferiu a doutrina que expusemos aqui.

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A “NOVA TEOLOGIA” CONTRA O LIMBO

Se os neo-modernistas não tivessem feito abortar, desde seu começo, o Concílio Vaticano II, a doutrina consoladora sobre o estado das almas no limbo seria hoje realmente de Fé eclesiástica (como supõe erradamente nosso leitor) e, portanto, sua certeza seria “infalível como no caso dos verdadeiros dogmas” (L. Ott. cit.).

No esquema preparado pela comissão teológica, lê-se: “O concílio declara vão e sem fundamento todos os julgamentos segundo os quais se admite para as crianças um meio [para atingir a visão de Deus] diferente do Batismo realmente recebido. Todavia, não faltam motivos para considerar que elas gozarão eternamente de uma felicidade conforme seu estado”.

Com isto o Concílio teria encorajado o aprofundamento teológico sobre o estado de felicidade acidental e secundário das almas no limbo, e teria fechado a porta à busca de outros meios de salvação diferentes do “Batismo realmente recebido”, busca essa que na véspera do Concílio tornou-se ainda mais inquieta e inquietante sob o impulso da “nova teologia”. Esta conclusão está, aliás, perfeitamente de acordo com diferentes textos do Magistério infalível, tais como, por exemplo, o decreto Pro Jacobitis do Concílio de Florença (retornado em seguida pelo Concílio de Trento), no qual se lê: “Cum ipisis (pueris) non possit alio remedio subveniri nisi per sacramentum baptismi… admonet… quamprimum commode fieri potest, debere conferri” (DB 712). “Porque as crianças só podem ser socorridas pelo Sacramento do Batismo… (a Igreja) adverte severamente… que ele deve ser administrado logo que for possível fazê-lo sem problemas” (e Pio XII lembra também essa doutrina, no seu famoso discurso às mulheres parteiras). Infelizmente, esta conclusão definitiva não foi adotada pelo Concílio, por causa do desvio que lhe impôs a minoria modernista, e os neo-modernistas aproveitaram dessa falta de definição para definir a questão no pós-concílio, à sua maneira… ou seja, eliminando o limbo, somente pelas seguintes razões:

1) ele contraria a heresia de De Lubac e de “sua turma” que, desenterrando o modernismo condenado por São Pio X, queriam que o sobrenatural (portanto a visão beatífica) não fosse um dom absolutamente gratuito, que Deus não deve a ninguém, mas ao contrário, que fosse qualquer coisa de devido, porque é um aperfeiçoamento da natureza humana (v. SiSiNoNo de 15/2/1993 p.3).

2) a existência do limbo está igualmente em desacordo com a outra heresia, própria da nova teologia, que quer a salvação incondicional de todos os homens, fiéis e infiéis, batizados ou não (V. SiSiNoNo de 15/4/1993, pp. 1 ss).

Apesar disso, o texto preparado pela comissão teológica permanece aqui para testemunhar, se for necessário, que na véspera do Concílio a doutrina sobre o limbo era comumente professada pelos Pastores, teólogos e fiéis e que somente a revolução modernista perturbou (e encontramos o eco dessa perturbação nas cartas que recebemos) a possessão tranqüila dessa conclusão teológica, tão notavelmente resumida, justamente na véspera do Concílio, pela Enciclopédia Católica: “III. O Limbo das Crianças — Existe ainda, segundo a teologia, o limbo das crianças, isto é, o estado e o lugar das crianças não batizadas, mortas sem o uso da razão, sem a remissão do pecado original. Não estando em condições, por sua idade, de praticar atos de Fé e de contrição (Batismo de desejo), elas não podem ser libertadas da falta original senão por meio do Batismo, conferido in ‘fide Ecclesiae’, não o recebendo, ‘elas não renascem na água e no Espírito Santo’ (Jo. 3,5) e portanto não são admitidas no Reino de Deus: não terão entretanto, nenhuma pena, ao contrário, segundo a opinião comum dos teólogos gozarão de certa bem-aventurança natural. Como diz São Tomás: ‘elas serão felizes, participando amplamente da bondade divina nas perfeições naturais’ (II Sent. d.33 q.11. a.2; cf. d.45, q.1, ª2: Suma Teológica supl. Q. 79. a.4). essa concepção teológica, apesar de não ser explícita [mas implícita, sim], nas Sagradas Escrituras, está fundada sobre a justiça de Deus, a qual não pode infligir castigos pessoais a quem não possui pecados pessoais. Logo, a sorte das crianças mortas sem Batismo, como observa São Gregório de Nissa (PG 46.177-80), deve-se distinguir da dos adultos que, por falta própria, desdenharam o Batismo; contudo, elas não serão admitidas à felicidade sobrenatural, como pensavam os pelagianos contra os quais se pronunciaram, o Concílio de Cartago em 418 (Dez. U. 102 note4) e Santo Agostinho (De anima e eius origine, 12, 17: PL 44. 505). O limbo das crianças dura eternamente, pois, aqueles que morreram somente com o pecado original estão fixados neste estado para sempre. Esta doutrina foi explicitada [e não inventada como o desejaria a ‘nova teologia’] pelos grandes teólogos do século XIII” (palavra limbos col. 1358).

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Em conclusão, queremos acrescentar que compreendemos perfeitamente a dor dos pais cristãos que não puderam batizar seus filhinhos e o desejo que têm de saber alguma coisa mais sobre o seu destino. Mas como já tivemos a ocasião de dizer, não há necessidade de inventar fábulas nem, menos ainda, de negar o limbo, para os consolar: o aprofundamento teológico sobre a questão oferece abundantes motivos de consolação; trata-se somente de torná-lo conhecido. Sentimo-nos, além disso, no dever de lembrar a gravidade da hora presente e a ameaça insistente do neo-modernismo, que hoje parece corromper mesmo os melhores na Igreja. Tudo isso exige, dos que querem ser e permanecer realmente filhos da Igreja, a mais rigorosa fidelidade ao seu Magistério e à teologia católica autentica, para não pôr em perigo sua própria Fé e não cooperar para essa demolição da Igreja por seus inimigos internos, expressa impropriamente por Paulo VI como “a autodemolição da Igreja”.

Gregorius

(Revista SIM SIM NÃO NÃO n° 45 ? Setembro de 1996)

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Como chegar ao Mosteiro da Santa Cruz


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FonteA grande guerra 
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Resumo histórico
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Duas vezes no ano lembra-se a Igreja das Dores de Maria Santíssima: na Sexta-feira que antecede ao domingo de Ramos, e no dia 15 de setembro. Já antes dessas solenidades vinha o povo cristão consagrando terna lembrança às Dores da Mãe de Deus. No século XIII a tendência geral fixa-se na celebração das Sete Dores. A Ordem dos Servitas, principalmente, fundada em 1240, muito contribuiu para propagar essa devoção. Pois seus membros deviam santificar a si e aos outros pela meditação das Dores de Maria e de Seu Filho. Pelos fins do século XV era quase geral no povo cristão o culto compassivo das dores de Maria. Os poetas de vários países consagraram-lhe inúmeras poesias. O hino Stabat Mater dolorosa tem por autor o franciscano Jacopone da Todi (1306). A festa foi primeiramente introduzida pelo Sínodo de Colônia em 1423, sob o título de Comemoração das Angústias e Dores da Bem-aventurada Virgem Maria, para expiação das injúrias cometidas pelos Hussitas contra as imagens sagradas.
Propagou-se rapidamente, tomando o nome de festa de Nossa Senhora da Piedade. Em 1725 introduziu-a o papa Bento XII no Estado Pontifício, e em 1727 estendeu-a para a Igreja universal.
Mas, porque perdia um pouco de seu valor, por estar na quaresma, Pio VII, em 1804, mandou que fosse celebrada também no terceiro domingo de setembro. Com a reforma do Breviário, por Pio X, veio a festa a ter uma data fixa no dia 15 de setembro
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(Nota do tradutor).
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I. MARIA FOI A RAINHA DOS MÁRTIRES POR CAUSA DA DURAÇÃO
E INTENSIDADE DE SUAS DORES
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Quem poderia ouvir sem comoção a história mais triste que jamais houve no mundo?
Uma nobre e santa senhora tinha um único filho, o mais amável que se possa imaginar.
Era inocente, virtuoso e belo. Ternamente retribuía o amor de sua mãe. Nunca lhe havia dado o mínimo desgosto, mas sempre lhe havia testemunhado todo respeito, toda obediência, todo afeto. Nele, por isso, a mãe tinha posto todo o seu amor, aqui na terra. Ora, que aconteceu? Pela inveja de seus inimigos, foi esse filho acusado injustamente. O juiz reconheceu, é verdade, a inocência do acusado e proclamou-a publicamente. Mas, para não desgostar os acusadores, condenou-o a uma morte infame, como lhe haviam pedido. E a pobre mãe, para sua maior pena, teve de ver como aquele tão amante e amado filho lhe era barbaramente arrancado: na flor dos anos. Fizeram-no morrer diante de seus olhos maternos, à força de torturas e esvaído em sangue num patíbulo infamante. Que dizeis, piedoso leitor? Não vos excita à compaixão a história dessa aflita mãe?
Já sabeis de quem estou falando? Esse Filho, tão cruelmente suplicado, foi Jesus, nosso amoroso Redentor. E essa Mãe foi a bem-aventurada Virgem Maria, que por nosso amor se resignou a vê-lO sacrificado à justiça divina pela crueldade dos homens. Portanto é digna de nossa piedade e gratidão essa dor imensa que Maria sofre por nosso amor. Mais Lhe custou sofrê-la, do que suportar mil mortes. E se não podemos corresponder dignamente a tanto amor, demoremo-nos hoje, ao menos por algum tempo, na consideração de Suas acerbíssimas dores. Digo, por isso: Maria é Rainha dos mártires, porque as dores de Seu martírio excederam às dos mártires 1º em duração; 2º em intensidade.
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PONTO PRIMEIRO
Duração do martírio de Maria
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1. Maria é realmente uma mártir 
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Jesus é chamado Rei das dores e Rei dos mártires, porque em Sua vida mortal padeceu mais que todos os outros mártires. Assim também é Maria chamada com razão Rainha dos Mártires, visto ter suportado o maior martírio que se possa padecer depois das dores de Seu Filho. Mártir dos mártires é por isso o nome que lhe dá Ricardo de S. Lourenço. E bem lhe pode aplicar o texto do profeta Isaías: Ele te há de coroar com uma coroa de  amargura (22, 18). A coroa, com a qual foi constituída Rainha dos mártires, foi justamente Sua dor tão acerba, que excedeu à de todos os mártires reunidos. É fora de dúvida o real martírio de Maria, como assaz o provam Dionísio Cartuxo, Pelbarto, Catarino e outros. Pois, conforme uma sentença incontestada, para ser mártir é suficiente sofrer uma dor capaz de dar a morte, ainda que em realidade se não venha a morrer. S. João Evangelista é reverenciado como mártir, não tenha embora morrido na caldeira de azeite fervendo, senão haja saído dela mais robustecido, como diz o Breviário. Para a glória do martírio, segundo Tomás, basta que uma pessoa leve a obediência ao ponto de oferecer-se à morte. Maria, no sentir do Abade Oger, foi mártir não pelas mãos dos algozes, mas sim pela acerba dor de Sua alma. Se não lhe foi o corpo dilacerado pelos golpes do algoz, foi Seu bendito coração transpassado pela Paixão de Seu Filho. E essa dor foi suficiente para dar-Lhe não uma, porém mil mortes.
Vemos por aí que Maria não só foi verdadeiramente mártir, mas que Seu martírio excedeu a todos os outros por sua duração. Pois que foi Sua vida, senão um longo e lento martírio?
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2. Duração do martírio de Maria 
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Assim como a Paixão de Jesus começou com Seu nascimento, diz S. Bernardo, também assim sofreu Maria o martírio durante toda a Sua vida por ser em tudo semelhante ao Filho. Como observa S. Alberto Magno, o nome de Maria significa, entre outras coisas, amargura do mar.
Aplica-lhe o Santo por isso o texto de Jeremias: Grande como o mar é a minha dor (Jr 2, 13). Com efeito, e o mar amargo e salgado. Assim foi também toda a vida de Maria sempre cheia de amarguras, porque não Lhe desaparecia do espírito a lembrança, da Paixão do Redentor. Mais iluminada pelo Espírito Santo que todos os profetas, compreendia melhor do que eles as predições a respeito do Messias, registradas na Escritura. Está isso acima de toda e qualquer dúvida. Assim instruiu um anjo a S. Brígida, e ainda ajuntou que Nossa Senhora sentia terna compaixão com o inocente Salvador, mesmo antes de Lhe ser Mãe. E tudo por causa do conhecimento que possuía sobre as dores a serem suportadas pelo Verbo Divino, para a salvação dos homens, e sobre a cruel morte que O aguardava em vista de nossos pecados. Já então começou, portanto o padecimento de Maria.
Mas sem medida tornou-se essa dor, desde o dia em que a Virgem ficou sendo Mãe de Jesus. Sofreu daí em diante um perene martírio, observa Roberto de Deutz, tendo em vista as dores que esperavam por Seu Filho. E também o que significa a visão de S. Brígida, em Roma, na igreja de S. Maria. Aí lhe apareceu a Santíssima Virgem em companhia de S. Simeão, e de um anjo que trazia uma longa espada a gotejar sangue.
Essa espada era um emblema da mui longa e acerba dor que dilacerou o coração de Maria, durante toda a sua vida. O supra-citado abade põe nos lábios de Maria as seguintes palavras:
Almas remidas, filhas diletas, não vos deveis compadecer de mim,  só por aquela hora em que assisti à morte de meu amado Jesus. Pois a espada, prenunciada por Simeão transpassou minha alma em todos os dias de minha vida. Quando eu aleitava Meu Filho, o aconchegava ao colo, já contemplava a morte cruel que Lhe estava reservada. Considerai por isso que áspera e intensa dor eu devia sofrer!
Maria, pois, teve razão para dizer com Davi: A minha vida se consome na dor e os meus anos em gemidos (SI 30, 11). A minha dor está sempre ante os meus olhos (SI 37, 18).
Passei toda a Minha vida entre dores e lágrimas, porque a minha dor, que era a compaixão com Meu Filho, nunca se apartava dos Meus olhos. Eu estava sempre contemplando todos os Seus tormentos e a morte que Ele um dia havia de sofrer.
Revelou a Divina Mãe a S. Brígida que, mesmo depois da morte e da ascensão de Seu Filho ao céu, continuava viva e recente em Seu materno coração, a lembrança dos sofrimentos dEle. Acompanhava-A até nos trabalhos e nas refeições. Vulgato Taulero escreve, por isso, que a Virgem passou toda a Sua vida em perpétua dor, carregando no coração luto e pesar.
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3. O tempo não mitigou os sofrimentos de Maria 
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O tempo, que costuma mitigar a dor dos aflitos, não pôde aliviá-la em Maria. Aumentava-Lhe, pelo contrário, a aflição. Crescendo, ia Jesus mostrando cada vez mais a Sua beleza e amabilidade. Mas de outro lado ia também se avizinhando da morte.
Com isso cada vez mais a dor por haver de perdê-lO apertava também o coração da Mãe. Tal como a rosa que cresce por entre espinhos, crescia a Mãe de Deus em anos no maior dos sofrimentos. E como crescem os espinhos à medida que a rosa desabrocha, cresceram também em Maria – rosa mística do Senhor – os penetrantes espinhos das aflições.
Passemos agora à consideração da intensidade das dores de Nossa Senhora.
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PONTO SEGUNDO
Intensidade do martírio de Maria
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Maria é Rainha dos mártires 
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Pois entre todos os martírios foi o Seu o mais longo e também o mais doloroso. Quem lhe poderá medir jamais a extensão? Ao considerar o sofrimento dessa Mãe dolorosa, não sabia Jeremias a quem compará-lA. Pois não exclama: A quem te compararei? Porque é grande como o mar o teu desfalecimento. Quem te remediou? (Jr 2, 13).
“O Virgem bendita, como a amargura do mar excede todas as amarguras, assim Vossa dor excede todas as outras dores”, – desta forma explica Hugo de S. Vítor o citado texto. Na opinião de Eádmero, a dor de Maria era suficiente para causar-Lhe a morte a cada instante, se Deus não Lhe tivesse conservado a vida por um singular milagre. E S. Bernardino de Sena chega a dizer que a intensidade de Seu sofrimento tão aniquiladora foi, que, dividida por todos os homens, bastaria para fazê-los morrer todos, repentinamente.
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1- Os mártires sofreram tormentos no corpo, Maria sofreu-os na alma 
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Vejamos, contudo as razões por que o martírio de Maria foi mais doloroso que o de todos, os mártires. Devemos refletir, em primeiro lugar, que, estes sofreram em seus corpos por meio do fogo e do ferro enquanto a Virgem padeceu o martírio na alma. Nesse sentido lhe dissera Simeão: E uma espada transpassará até a tua alma (Lc 2, 35).
O santo ancião queria dizer: Ó Virgem sacrossanta, os outros mártires hão de ter o corpo ferido pela espada, porém vós tereis a alma transpassada e dilacerada pela Paixão de Vosso Filho. Quanto a alma é mais nobre que o corpo, tanto a dor de Maria foi superior à de todos os mártires. Não são as dores da alma comparáveis aos tormentos do corpo, disse o Senhor a S. Catarina de Sena.
Por isso, escreve Amoldo de Chartres: Por ocasião do grande sacrifício do Cordeiro imaculado, que morria por nós na cruz, poderíamos ter visto dois altares: um no Calvário, no corpo de Jesus, outro no Coração de Maria. Enquanto que o Filho sacrificava Seu corpo pela morte, Maria sacrificava Sua alma pela compaixão.
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2- Os mártires sofreram imolando a própria vida, enquanto Maria sofreu oferecendo a vida de Seu Filho.
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A estas palavras dá S. Antonino por motivo: Maria amava a vida do Filho muito mais que a própria vida. Sofreu por isso no espírito tudo o que no corpo padeceu o Filho. Mais ainda. Seu coração afligiu-se mais presenciando os tormentos do Filho, do que se Ela própria os tivesse sofrido em Si. Sem dúvida alguma a Virgem padeceu em Seu coração todos os suplícios com que viu atormentado o Seu amado Jesus. Sabem todos que as penas dos filhos são também penas das mães que os vêem sofrer.
Quanto suplício de espírito não suportou a mãe dos Macabeus, à vista do martírio dos seus sete filhos! Isto considera S. Agostinho e diz: Vendo-os, sofreu com todos; amava-os a todos e por isso Só em vê-los sentiu o que eles experimentaram no corpo. Deu-se o mesmo com Maria. Todos os tormentos, açoites, espinhos, cravos e a cruz afligiram, juntamente com o corpo de Jesus, o coração de Maria para lhe consumar o martírio. O que Jesus suportou na Sua carne, em Seu coração o suportou a Mãe, comenta o Beato Amadeu. Este tornou-se, pois, como que um espelho, diz; S. Lourenço Justiniano. As pancadas, as chagas, os ultrajes, e tudo mais que sofreu Jesus, se via refletido nesse espelho. Segundo S. Boaventura, as mesmas chagas que estavam espalhadas pelo corpo de Jesus, se achavam todas reunidas no coração de Maria. Assim a Virgem, por Sua compaixão para com o Filho, em Seu terno coração foi flagelada, coroada de espinhos, carregada de opróbrios, pregada à cruz. Às citadas palavras que nos descrevem a Mãe no Calvário, segue-se a pergunta do suposto S. Boaventura:
Dizei-me, Senhora; onde estáveis então? Porventura junto da cruz, apenas? Não; melhor posso dizer que estáveis na própria cruz, crucificada juntamente com Vosso Filho. Com Isaías diz o Redentor: Eu calquei o lagar sozinho e das gentes não se acha homem comigo (63, 3). Sobre isto observa, Ricardo de S. Lourenço:
Senhor, tínheis razão de dizer que padecestes sozinho, quando da Redenção do gênero humano, e que nenhum homem tivestes compadecido de Vós. Porém, uma mulher, Vossa Mãe, sofreu em Seu coração tudo quando sofrestes em Vosso corpo.
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Mas tudo isso ainda é dizer pouco sobre as dores de Maria. Como já se disse, a Santíssima Virgem mais sofreu à vista de Seu atormentado e querido Jesus, do que se pessoalmente houvesse suportado os tormentos e a morte do Filho. Erasmo, falando dos pais em geral, diz: Mais do que as próprias, sentem os pais as dores dos filhos. Nem sempre isso é verdade. Mas certamente o era em Maria, porque amou imensamente mais a Seu Filho e a vida dEle, que a si mesma e as mil vidas que tivera. É bem acertada por isso a observação do Beato Amadeu, ao dizer que Maria, diante das dolorosas penas de Seu amado Jesus, padeceu muito mais do que se tivesse sofrido toda a Sua Paixão. E é clara a razão de tudo. Pois não está a alma humana mais com aquilo que ama, do que com aquilo que anima? E não afirmou o próprio Salvador: Onde está o vosso tesouro, aí estará o vosso coração? (Lc 12, 34).
Assim, pois, Maria, se pelo amor vivia mais no Filho do que em Si mesma, ao vê-lO morrer tinha de suportar dores incomparavelmente mais acerbas; do que se A fizessem sofrer a morte mais cruel do mundo.
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3. Os mártires sofreram consoladosMaria padeceu sem consolo.
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Há ainda uma circunstância a mostrar-nos como o martírio de Maria excedeu incomparavelmente ao dos mártires todos. Não só Ela sofreu dores indizíveis, como também as sofreu sem alívio algum, na Paixão de Seu Filho. Padeciam os mártires os tormentos a que os condenavam maus tiranos, porém o amor de Jesus lhes tomava as dores amáveis e suaves. Quanto não sofreu um S. Vicente, por exemplo!
Atormentaram-no sobre um cavalete descamando-o com unhas de ferro, com lâminas candentes o queimaram também. Entretanto, dele que vemos e ouvimos? S. Agostinho nos diz: Parecia ser um a sofrer e outro a falar. Com tal fortaleza de ânimo e tal desprezo dos tormentos falou o mártir ao tirano, que parecia ser um Vicente que sofria, e outro que falava. Tanta lhe era a doçura do amor com que Deus o confortava naquelas torturas! Dolorosos suplícios teve de suportar também um S. Bonifácio.
Picaram-no, meteram-lhe pontinhas de ferro debaixo das unhas, entornaram-lhe pela boca chumbo derretido. Mas o Santo repetia sem cessar: Eu vos dou graças, Senhor Jesus Cristo.
Horrivelmente sofreram igualmente um S. Marcos e S. Marcelino, com os pés pregados numa estaca. Disse-lhes então o tirano: Miseráveis, retratai-vos e sereis livres dessas penas! – Mas de que penas falais? Nunca passamos tempo tão delicioso como este, em que estamos sofrendo voluntariamente por amor de Jesus Cristo, responderam-lhe os santos. Um S. Lourenço, enquanto assava sobre uma grelha, sofria horrores. Mas a chama interior do amor divino, diz S. Leão, era mais poderosa para consolar-lhe a alma, que o fogo externo para lhe atormentar o corpo. Tal era o ânimo que lhe comunicava esse amor, que o Santo chegava a desafiar o tirano, dizendo: Queres comer minha carne? Anda depressa; já de um lado está assada, Vira e come! Ah! responde S. Agostinho, é que ele estava embriagado com o vinho do amor divino, e por isso não sentia os tormentos nem a morte. Quanto mais os santos mártires amavam, pois, a Jesus, menos sentiam os tormentos e a morte. Bastava-lhes a lembrança dos sofrimentos de um Deus crucificado para consolá-lo. Podia, porém, nossa Mãe dolorosa achar consolo no amor a Seu Filho e na lembrança de Seus sofrimentos? Não; justamente esse padecimento era todo o motivo de sua maior dor. Único e crudelíssimo algoz Lhe foi tão somente o amor que consagrava ao Filho. Todo o martírio de Maria consistiu em vê-lO, amado e inocente, sofrer tanto, e em compadecer-se de Suas dores. Tanto mais acerba e sem alívio lhe era a dor, quanto mais O amava. Grande como o maré a tua dor e quem te curará? (Jr 2, 13).
Ah! Rainha dos céus, aos outros mártires o amor mitigou as penas e pensou as feridas. A Vós, porém, quem suavizou jamais a grande aflição? Quem curou jamais as chagas doloríssimas de Vosso coração? O Filho que Vos podia dar consolo era a causa única de Vosso penar, e o amor que Lhe tínheis constituía todo o Vosso martírio. Cada um com o instrumento de seu martírio, representam-se os mártires: S. Paulo com a espada; S. André com a cruz; S. Lourenço com a grelha. No entanto Maria é representada com o Filho morto, nos braços. Só Jesus foi o instrumento de seu martírio, por causa do amor que Lhe consagrava. Ricardo de S. Vítor reduz tudo isso à concisa sentença: Nos mártires o amor era um consolo nos sofrimentos, em Maria, pelo contrário, cresciam as penas e o martírio na proporção de Seu amor. É certo que; quanto mais se ama uma pessoa, tanto mais se sente a pena de perdê-la. A morte de um irmão, de um filho, aflige mais, certamente, que a de um amigo. Cornélio a Lápide diz, por isso: Para medir a dor de Maria pela morte do Filho, é preciso ponderar a grandeza do amor que Lhe devotava.
Mas quem poderá medi-lo? Era duplo o amor de Jesus no coração de Maria, observa o Beato Amadeu: um sobrenatural, com que O amava como a Seu Deus, e natural o outro, com que O estremecia como Filho. Esse duplo amor reuniu-se num só, imenso e incalculável amor, a ponto de Guilherme de Paris ousar dizer: Tanto era o amor da Santíssima Virgem a Jesus, que uma pura criatura não seria capaz de amá-lO mais. Ora, conclui Ricardo de S. Vítor, como o amor de Maria não comporta comparações, também não as comporta a Sua dor. Imenso era o amor da Senhora a Seu Filho e também incalculável devia ser a Sua pena ao perdê-lO, observa S. Alberto Magno.
Imaginemos que a Mãe de Deus, junto ao Filho moribundo na cruz, nos dirige as palavras de Jeremias: Ó vós todos que passais pelo caminho, atendei e vede se há dor semelhante à minha dor (Jr 1, 12). Ó vós que viveis na terra, e não vos compadeceis de Mim, parai um pouco a contemplar-Me neste momento em que estou vendo morrer Meu Filho diletíssimo. Vede em seguida se, entre todos os aflitos e atormentados, há dor semelhante à Minha dor. 
Não há, nem pode haver mais amarga tortura do que a Vossa, diz o Ofício das Dores de Maria; pois nunca houve no mundo Filho mais amável que o Vosso.
Também S. Lourenço Justiniano afirma: Não houve jamais Filho mais amável que Jesus, nem mãe alguma mais amante que Maria. Se, pois, nunca houve na terra amor semelhante ao de Maria, como poderia haver então sofrimento semelhante ao Seu?
Eis por que um escritor não hesita em apresentar como testemunho de S. Ildefonso esta sentença: Ainda é pouco dizer que as dores da Virgem excedem aos tormentos, mesmo reunidos, de todos os mártires. Eádmero acrescenta que os suplícios mais cruéis infligidos aos santos mártires foram leves e como que nada, em comparação ao martírio de Maria. No mesmo sentido escreve S. Basílio de Seleucia: À semelhança do sol que ofusca o esplendor de todos os outros planetas, o sofrimento de Maria fez desaparecer o de todos os mártires. O douto Pinamonti conclui com este belíssimo pensamento: Tamanha foi a dor que essa Mãe sofreu na Paixão de Jesus, que só essa dor foi compaixão digna da morte de um Deus.
S. Boaventura, dirigindo-se à Bem-aventurada Virgem, pergunta: Quisestes, Senhora minha, ser também imolada no Calvário? Para remir-nos não bastava porventura um Deus crucificado? E por que então quisestes também Vós, sua Mãe, ser igualmente crucificada? Certamente bastava a morte de Jesus para a redenção do mundo, e até de uma infinidade de mundos. Amando-nos, porém, quis essa boa Mãe concorrer de Sua parte para nossa redenção com o merecimento de Suas dores, suportadas por nós no Calvário. De onde as palavras de S. Alberto Magno: Somos obrigados a Jesus pela Paixão que sofreu por nosso amor, mas o somos também a Maria pelo martírio que, na morte do Filho, quis sofrer espontaneamente pela nossa salvação.
Espontaneamente o fez, pois um anjo revelou a S. Brígida que nossa tão compassiva e benigna Mãe preferiu sofrer todas as penas, a ver as almas privadas de redenção e entregues à antiga miséria.
Pode-se até dizer, com Simeão de Cássia, que o único consolo de Maria, no meio da acerbíssima dor pela Paixão de Jesus, era pensar no mundo resgatado e ver reconciliados com Deus os homens inimizados outrora com Ele.
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4- Maria recompensa a veneração de Suas dores 
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Tão grande amor de Maria bem merece toda a nossa gratidão. Mostremo-lA ao menos pela meditação e compaixão de Suas dores. Queixou-Se, por isso, a Virgem Santíssima a S. Brígida que muito poucos são os que dEla se compadecem: sendo que a maior parte dos homens vivem esquecidos de Suas aflições. Recomendou-lhe em seguida, com muita insistência, que delas guardasse contínua memória. Quanto é agradável a Maria essa meditação de suas dores podemos deduzi-lo da aparição com que contemplou em 1239 aqueles 7 devotos seus, fundadores da Ordem dos Servitas.
Apresentou-Se-lhes tendo nas mãos um hábito negro, ordenou-lhes meditassem com freqüência e amor em Suas dores, e que em memória delas vestissem aquela lúgubre roupeta. O próprio Jesus Cristo revelou a S. Verônica de Binasco que Ele mais Se agrada em ver meditados os sofrimentos de Maria, que contemplados os Seus próprios.
Filha, disse o Senhor, caras Me são as lágrimas derramadas sobre Minha Paixão; mas, como amo imensamente a Minha Mãe, ainda Me é mais cara a meditação das dores que Ela padeceu, vendo-Me morrer. Assim é que Jesus prometeu graças extraordinárias aos devotos das dores de Maria. Pelbarto refere-nos a seguinte revelação de S. Isabel a esse respeito. S. João Evangelista, depois da Assunção da Senhora, muito desejava revê-lA. Obteve com efeito essa graça e sua Mãe querida apareceu-lhe em companhia de Jesus Cristo. Ouviu em seguida Maria pedir ao Filho algumas graças especiais para os devotos de Suas dores, e Jesus prometer quatro principais graças. Ei-las:
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1.º– Esses devotos terão a graça de fazer verdadeira penitência por todos os seus pecados, antes da morte;
2.º Jesus guardá-los-á em todas as tribulações em que acharem, especialmente na hora da morte;
3.º Ele lhes imprimirá no coração a memória de Sua Paixão, dando-lhes depois um prêmio especial no céu;
4.º por fim os deixará nas mãos de Sua Mãe para que deles disponha a Seu agrado, e lhes obtenha todos e quaisquer favores.
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Comprovando tudo isso, leia-se o exemplo seguinte que mostra quanto é útil à salvação eterna venerar as dores de Maria.
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Sta.Teresa inflamada de amor

EXEMPLO

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Lê-se nas Revelações de S. Brígida que havia um senhor tão nobre pelo nascimento como vil e depravado pelos costumes. Fizera pacto expresso com o demônio, a quem havia servido como escravo durante sessenta anos seguidos, sem se aproximar dos sacramentos, e levando a pior vida que se pode imaginar.
Ora, estando para morrer esse fidalgo, Jesus Cristo, para usar com ele de misericórdia, ordenou a S. Brígida que pedisse a seu diretor espiritual que o fosse visitar e exortar a confessar-se. O padre foi, mas o doente respondeu que já se tinha confessado muitas vezes, não necessitando mais de confissão. Foi segunda vez, porém o infeliz escravo do inferno obstinou-se na sua impenitência. Jesus de novo disse à Santa que o padre não devia desanimar. Este voltou terceira vez e referiu ao doente a revelação feita à Santa, dizendo-lhe que tinha voltado por ordem do Senhor, o qual queria usar de misericórdia em seu favor. Isto ouvindo, o infeliz começou a enternecer-se e a chorar.
Mas como, (exclamou em seguida), poderei ser perdoado? Durante sessenta anos servi ao demônio, e dele me fiz escravo, e tenho a alma tão carregada de inúmeros pecados! – Filho, respondeu-lhe o padre, animando-o, não duvides; se te arrependeres, prometo-te o perdão em nome de Deus. Começando então a ter confiança, disse o infeliz ao confessor: Meu Pai, eu me julgava condenado e desesperava da minha salvação; mas agora sinto uma dor de meus pecados, que me anima a ter confiança. Com efeito, confessou-se no mesmo dia quatro vezes, com muita contrição. No dia seguinte comungou, e morreu seis dias depois, muito contrito e resignado. Depois de sua morte, Jesus Cristo falou de novo a S. Brígida e disse-lhe que aquele pecador se tinha salvado, que estava no purgatório, e devia a salvação à intercessão da Virgem, sua Mãe, pois apesar da vida perversa que levara, tinha conservado a devoção às Suas dores, recordando-as sempre com compaixão.
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ORAÇÃO
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Ó minha Mãe dolorosa, Rainha dos mártires e das dores, chorastes tanto Vosso Filho, morto por minha salvação; mas de que me servirão Vossas lágrimas, se eu me perder? Pelos merecimentos, pois, de Vossas dores, impetrai-me uma verdadeira emenda de vida, com uma perpétua e terna compaixão de Jesus e Vossas dores. E já que Jesus e Vós sendo inocentes, tanto padecestes por mim, obtende-me que eu, réu do inferno, padeça também alguma coisa por amor de Vós. Digo-Vos com S. Boaventura:
“Ó minha Senhora, se eu Vos magoei, feri e enternecei meu coração, para castigar-me; se eu Vos tenho servido, fazei-o então em recompensa disso. Considero uma vergonha me ver sem chagas quando Vós e Jesus estais feridos por meu amor”.
Finalmente, ó minha Mãe, ainda um pedido. Pela aflição que sentistes vendo diante de Vossos olhos Vosso Filho, entre tantos tormentos, inclinar a cabeça e expirar na cruz, suplico-Vos que me alcanceis uma boa morte. Ah! não me abandoneis na última hora, ó advogada dos pecadores. Não deixeis de assistir minha alma aflita e combatida, na terrível e inevitável passagem da vida à eternidade. E como é possível que eu perca então a palavra e a voz, para invocar Vosso nome e o de Jesus, que sois toda a minha esperança, invoco-Vos desde já, a Vosso Filho e a Vós, pedindo-Vos que me socorrais no instante final, e dizendo: Jesus e Maria, a Vós recomendo a minha alma. Amém.
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(Glórias de Maria por Santo Afonso de Maria de Ligório)
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14 de Setembro – Exaltação da Santa Cruz
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Allelúja, alellúja.
Dulce lígnum, dulces clavos, dúlcia ferens póndera: quae sola fuísti digna sustinére Regem caelórum et Dóminum. Allelúja.
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Aleluia, aleluia.
Ó bendito lenho e benditos cravos que tão suave peso sustentastes, só vós fostes dignos de sustentar o Rei e Senhor dos Céus. Aleluia..
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Beijar a Cruz
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O sofrimento que, na intenção de Deus, se destina a purificar-nos, a santificar-nos, a aproximar-nos Dele, a levar-nos ao Céu, produz infelizmente, muitas vezes, efeito todo contrário. É que não sabemos sofrer.
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Quando a cruz vier abater-se sobre nós, quando os espinhos nos ferirem a testa, não devemos morder nem a cruz nem os espinhos, mas beijá-los, pois trazem a Jesus Cristo, nosso divino Mestre. É preciso saber elevar-se acima das tempestades e da tormenta, submeter-se a Deus humildemente, confiar-se a Ele; é preciso ter paciência e esperar o Sol de Justiça, porquanto a vida do homem é uma vida passageira, cheia de provações e de mudanças; feliz de quem coloca a virtude acima das tempestades e das tormentas que lhe irrompem aos pés.
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É preciso sobretudo descansar a sombra da árvore de vida do Calvário, sobre o Peito ardente do Salvador, e procurar viver mais Dele, para Ele e só Nele. É preciso conservar-se ainda mais unido a Deus, à sua Santa Cruz, e aguardar amorosamente a hora divina. Bem sei que, quando estamos sobre a cruz, no meio das dores da crucificação, fica-nos apenas um pensamento, um sentimento, o pensamento e o sentimento de sacrifício; tudo sofre então, tudo se torna em sofrimento, tudo aumenta as provações. Coragem! É mister amar a Jesus Cristo até a morte, até a sepultura, até a ressurreição, até a ascensão triunfante.
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(São Pedro Julião Eymard – pág. 236 e 237 – Volume V)
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“… para isto vim ao mundo, para
dar testemunho da Verdade”
(Jo 18, 37)
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Padre Frederick Faber

(século XIX)

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Se nós não odiamos o pecado como Ele há de tê-lo odiado, puramente, virilmente, deveríamos fazer mais penitência, deveríamos infligir-nos mais castigos, deveríamos sentir pesar por nossos pecados com mais constância. Logo, uma vez mais, a suprema deslealdade a Deus é a heresia. É o pecado dos pecados, a mais repugnante das coisas que Deus despreza neste mundo maligno. No entanto, quão pouco compreendemos seu excessivo caráter odioso! É a profanação da Verdade de Deus, a pior de todas as impurezas.
No entanto, quão pouca importância damos a ela! Nós a vemos, e permanecemos calmos. Nós a tocamos, e não estremecemos. Nós nos misturamos com ela, e não temos temor. Vemos que toca as coisas santas, e não temos senso do sacrilégio. Respiramos seu cheiro, e não damos sinal de aborrecimento ou repugnância. Alguns de nós aparentam sua amizade; e alguns até atenuam sua culpa. Nós não amamos a Deus o suficiente para preocupar-nos com Sua Glória. Nós não amamos o suficiente os homens para sermos verdadeiramente caridosos com sua alma.
Perdido o tato, o paladar, a visão e todos os sentidos da consciência celestial, nós podemos morar no meio dessa praga odiosa com tranquilidade imperturbável, reconciliados com sua vileza, não sem algumas profissões jactanciosas de liberal admiração, talvez até com mostra solícita de simpatia tolerante.
Por que estamos tão abaixo dos antigos santos, e até dos modernos apóstolos destes últimos tempos, na abundância de nossas conversas? Porque não temos a antiga austeridade. Carecemos do espírito da velha Igreja, do antigo gênio eclesiástico. Nossa caridade é falsa, porque não é severa; e é pouco convincente, porque é falsa.
Nós carecemos de devoção à Verdade como Verdade, como Verdade de Deus. Nosso zelo pelas almas é débil, porque não temos zelo pela honra de Deus. Nós agimos como se Deus se agradasse das conversões, quando são almas trementes resgatadas por um excesso de misericórdia.
Nós dizemos aos homens metade da Verdade, a metade que mais convenha à nossa própria pusilanimidade e vaidade; e depois nos assombramos com que tão poucos se convertam, e com que desses poucos tantos apostatem.
Nós somos tão fracos, que nos surpreendemos com que nossas meias verdades não consigam tanto quanto as verdades integrais de Deus.
Onde não há ódio à heresia, não há santidade.

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Fonte: SPES

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Fonte: SPES

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Frederico de Castro
(Adaptado de Direito Público
Pós-Moderno e a Saudade
de Deus, de Ricardo Dip)
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Nos escombros de um socialismo prático está largamente acomodado o espírito volátil e peçonhento de uma pós-modernidade. Em uma conjuntura doentia de racionalismo e imaginação, surge um fenômeno jurídico batizado de pós-positivismo, oriundo de sua vertente social chamada pós-modernidade.
Trata-se, com efeito, de uma radicalização dos princípios do liberalismo histórico (aqueles da revolução francesa), os quais sofreram uma espécie de “upgrade” em um hipermodernismo ou uma – tão assombrosa quanto o nome – “tardomodernidade”(uso tão feliz e sintética expressão com os préstimos do Professor Ricardo Dip).
De fato, o relativismo parece mesmo haver atingindo seu ápice na sociedade contemporânea. A pós-modernidade – berço do pós-positivismo – anuncia-se, pois, como um desprezo absoluto pelos fins, em uma trajetória suicida para o nada: uma verdadeira agnosia dos fins.
Essa realidade se traduz e se expressa de modo avassalador, sobretudo, nas cortes judiciais, nas quais se podem encontrar julgados para todos os gostos diante do paradoxal vazio principiológico existente nas inflacionadas legislações nacionais. Explica-se: paradoxal porque é vazio por excesso… Não, caro leitor, a lógica não me falta neste momento; com efeito, há verdadeiramente um excesso de leis e princípios que servem para tudo e, exatamente por isso, não servem para nada, e isso se dá porque estão assentados sobre uma hipertrofia de um valor, a saber, o da liberdade.
Quem acompanhou o julgamento no STF sobre a legitimidade das chamadas “marchas pela maconha” pode avaliar muito bem essa hipertrofia, bastando para tanto uma breve leitura do voto do relator, Min. Celso de Melo. Um julgamento que se traduziu em um verdadeiro escárnio jurídico, acompanhado de uma exaltação do valor da liberdade como se fora um fim em si mesmo, ou um bem superior a qualquer outro.
Ora, o resultado desse libertinismo principiológico são precisamente as incessantes demandas contraditórias e os mais escandalosos disparates jurídicos, de tirar o sono do cidadão comum.
Fato que ilustra perfeitamente essa assertiva é com muita propriedade a casuística jurisprudencial sobre o quantum das indenizações por danos morais no Brasil. E, por isso mesmo, o descaramento, “deita e rola”, nesta seara. Apenas a título de exemplo: enquanto as indenizações por negativa contratual das seguradoras de saúde (planos de saúde) nas cirurgias que envolvem aplicação dos chamados stents – que deixam uma pessoa internada, com risco de infarto, aguardando autorização do serviço, em uma afronta ao direito à vida – não ultrapassam a pífia cifra dos R$ 20.000,00 (isso nas indenizações mais altas, porque comumente são de R$ 8.000,00 em primeira instância…), alguns casos de violações de direito de imagem não saem por menos de R$ 30.000,00, a depender do status celebritatis da vítima, podendo atingir cifras de vultosos seis dígitos. Ora, o que representam R$ 10.000,00 ou R$ 20.000,00 para um banco? Nada. Portanto, as seguradoras agradecem as parcas cifras indenizatórias e, de maneira sem precedente, não tardam a descumprir seus contratos.
Portanto, o nosso “bon sauvage”, já envelhecido de suas andanças revolucionárias, não sabe mais em que tribo se formou e, nesse sentido, agora anda essencialmente não social. Ou, em outras palavras: tendo-se em conta que o direito à vida é levado em bastante menor consideração nas indenizações judiciais do que o direito de imagem e muitos outros, pode-se perceber facilmente o nível de relativismo a que estamos submetidos.
Assim é que o homem típico da sociedade pós-moderna é o homem fulmíneo, sem ontem, nem amanhã: é o homem que se gloria na desesperança do futuro; é o ateu prático ou o agnóstico de nossos dias. Por isso mesmo seu direito não pode ser mais do que uma imposição hic et nunc, sem metas possíveis, sem esperanças e sem propósitos.
Com efeito, o direito público pós-moderno desembocou na militante aversão à Cristandade de seu passado. A ideia do homem ut imago Dei – ordenado de maneira teonômica e teotrópica –, essencialmente decisiva na Cristandade medieval, é incompatível em grau máximo com a liberdade autista do imanentismo em que vivemos hoje. E estamos pagando um alto preço por isto.
Posto isso, o laicismo não é – porque não pode ser – uma espécie de neutralidade; mas é, antes, uma direta negação da transcendência, é uma teofobia e, mais precisamente, uma cristofobia. E, enquanto nossos tribunais permanecerem desnorteados e imersos em um mar de princípios absurdamente desconectados em função de um escandaloso libertinismo ateu, não será possível que os disparates e absurdos cessem em nossas cortes.

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Fonte: SPES

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Diogo dos Santos Ferreira
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Um deputado emitiu um grosseiro sofisma em vista da aprovação do projeto de lei de biossegurança em 2005, pelo qual se permite o descarte de embriões humanos em pesquisas científicas. Disse ele que o embrião é um mero amontoado de células e que somente o aparecimento de tecido nervoso é que caracterizaria um novo ser humano; esse “entendimento” é repetido como um mantra para alívio das consciências dos hipócritas, porém é tão pueril que breves considerações mesmo de ordem física já são suficientes para superá-lo, embora houvesse muito mais o que falar no plano da antropologia filosófica.
Pois bem, no monitor de meu computador, em que estou digitando este artigo, há um amontoado de células, e também há um amontoado de células no fio de cabelo que tirei a pouco do meu teclado, há um amontoado de células nas formigas que perambulam pela casa, etc. Entretanto, nenhum desses “amontoados de células” tem a aptidão de se apresentar – após desenvolvimento natural – como um ser humano “típico”, nenhum outro “amontoadinho de células” se mostra uma bela criança ao desenvolver-se… O embrião, sim.
Ademais, microanaliticamente e do ponto de vista meramente material, todos nós somos um amontoado de células, mas tanto nós quanto os embriões, fetos e bebês temos as mesmas características biogenéticas viventes, nos diferenciado apenas no grau de desenvolvimento, já que após a fecundação nada mais se acresce essencialmente no concepto.
Quanto ao aparecimento do tecido nervoso pode-se dizer com segurança que é uma das etapas do desenvolvimento e não o passe mágico que faria o embrião tornar-se vida humana, pois este já o é, com seus 46 cromossomos e informações genéticas humanas, desde a fecundação.
Deve ser o plano genotípico considerado sobremaneira na busca de subsídio científico natural para a questão, pois se nos detivermos num dado do desenvolvimento interno do concepto, ou no fenótipo, além de promover-se uma má ciência (a classificação biológica faz prevalecer o genótipo ao fenótipo na distinção de espécies e nos procedimentos de intervenção), ainda teríamos que admitir, por consequência lógica do absurdo, que um blastocisto de rato – por exemplo – teria mais valor que o embrião, pois nele há tecido nervoso uma vez desenvolvido. As mulheres não ficariam grávidas de alguém, mas de “uma coisa” que depois se tornaria ser humano. E mais, será que um homem que não tenha parte de um dos hemisférios cerebrais, por má-formação, embora alguns vivam normalmente, poderia ser tido por um “sub-humano”? Alguém é mais ou menos humano pela maior ou menor área de tecido nervoso que constitui seu corpo? Não, prezados, atendo-se a uma parte não se julga devidamente o todo; isso seria quantificar internamente uma essência, e o embrião humano é um todo com a dinâmica do próprio sistema e autocontrole (homeostase), é um ser vivo dotado de humanidade.
Não se deve fazer do embrião uma cobaia de laboratório.

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